Saul Leblon no site Carta Maior
A abrangência das mutações econômicas e sociais registradas no
país desde 2004 não se fez acompanhar de uma contrapartida no plano
da representação política.
O economista Márcio Pochman, presidente da Fundação Perseu Abramo , sugere – em entrevista ao Brasil Econômico - que essa assimetria lança uma luz mais intensa do que interpretações exclamativas, sobre irrupção da violência na cena política brasileira.
Sua angulação expõe um flanco pouco debatido das políticas sociais desse período, na verdade, quase um tabu.
O carro-chefe delas, o decano Bolsa Família, chega hoje a 14 milhões de lares, reúne o formidável contingente de 50 milhões de beneficiados e não possui um fórum próprio que os expresse (leia o editorial ‘O Bolsa Família e os gastadores de gente’).
Note-se que até do ponto de vista funcional, a existência de mecanismos de participação contribuiria para o aperfeiçoamento do programa, que arregimenta 32 mil verificadores só para fiscalizar a condicionalidade escolar.
O engajamento dos principais interessados talvez até barateasse a estrutura, obsessão do conservadorismo que, todavia, vetou os comitês gestores formados por representações locais do Fome Zero, logo no início de 2003.
Nenhuma novidade.
As elites brasileiras, do alto de seus 380 anos de casa grande e senzala, são cometidas de surtos psicóticos ao menor ensaio de organização autônoma e democrática dos interesses populares.
Pochman menciona outros paradoxos associados a esse interdito subjacente à tradição liberal brasileira.
Cerca de 1,1 milhão de jovens ingressaram no ensino superior nos últimos anos, por conta do Prouni; todavia, essa legião não engendrou maior fôlego às entidades estudantis.
Mais de 20 milhões de trabalhadores conquistaram um emprego no mercado formal desde 2003. Mas a taxa de sindicalização não cresceu; ela permanece estagnada no país.
Milhões de famílias adquiriram imóveis pelo Minha Casa Minha Vida. Sem alterar, no entanto, o número de associações de moradores.
E assim por diante.
Seria importante que a Fundação Perseu Abramo abraçasse a inquietação de Porchman canalizando-a para uma pesquisa de fôlego nacional, capaz de adicionar escala e densidade a esse fenômeno.
Melhor ainda se fosse logo.
Falta ao campo progressista brasileiro ampliar a compreensão dos requisitos políticos e sociais ao passo seguinte do desenvolvimento nacional.
Certas dimensões do desafio tem sido subestimadas.
Transformações democráticas fornecem, muitas vezes, a única alavanca capaz de remover obstáculos intransponíveis quando abordados no âmbito de sua própria lógica.
Justamente porque avançou muito nos últimos anos, explorando as linhas de menor resistência, mas também indo além delas em algumas áreas, Brasil talvez esteja muito perto de ter atingido o limite nessa trajetória a frio.
Não avançará muito mais a partir de agora se menosprezar os interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.
Os bolsões de violência registrados em manifestações recentes de protestos –insista-se no termo bolsões--, dos quais o fenômeno black bloc é a marca da hora, não podem ser deduzidos mecanicamente do déficit de representação existente no país.
Há de tudo um pouco quando ações violentas se transformam em linguagem proeminente de protesto.
Existe a cota do vandalismo espontâneo e a do instrumentalizado. Um bom naco da adesão decorre do modismo. Outro, não menor, de convicções doutrinárias de consistência inescrutável.
Com um aditivo gravoso no caso brasileiro: a longa exposição da opinião pública aos efeitos danosos do elogio à loucura.
A demonização da política, dos partidos e das lideranças de esquerda, martelada insistentemente pela emissão conservadora, ao longo de todo o processo da AP 470, encontraria nos protestos de junho o altar de sua catarse.
Como convém aos rituais de uma seita, a cerimonia foi adornada de fogo e destruição purgativa.
Tudo isso é verdade. Mas não elimina o escopo mais amplo da sintomatologia.
O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ticados pelas políticas sociais nos últimos anos talvez tenha atingido seu ponto de saturação.
Desenvolvimento é transformação. É romper estruturas anacrônicas e construir outras novas, ao mesmo tempo e com igual intensidade. Quase como atravessar um rio de dupla correnteza, uma puxando para cada lado.
Quem acha que pode haver equilíbrio estático nesse ambiente açoitado por ventos e tempestades em litígio, acredita em fadas.
A fada dos mercados autorreguláveis, por exemplo.
Mas quem acredita que é possível desencadear um novo ciclo de desenvolvimento sem um protagonista social que o conduza, incorre igualmente em perigosas ilusões.
Mesmo sem acreditar em fadas, pode bater de frente com um exército de bruxas no meio do rio.
O economista Márcio Pochman, presidente da Fundação Perseu Abramo , sugere – em entrevista ao Brasil Econômico - que essa assimetria lança uma luz mais intensa do que interpretações exclamativas, sobre irrupção da violência na cena política brasileira.
Sua angulação expõe um flanco pouco debatido das políticas sociais desse período, na verdade, quase um tabu.
O carro-chefe delas, o decano Bolsa Família, chega hoje a 14 milhões de lares, reúne o formidável contingente de 50 milhões de beneficiados e não possui um fórum próprio que os expresse (leia o editorial ‘O Bolsa Família e os gastadores de gente’).
Note-se que até do ponto de vista funcional, a existência de mecanismos de participação contribuiria para o aperfeiçoamento do programa, que arregimenta 32 mil verificadores só para fiscalizar a condicionalidade escolar.
O engajamento dos principais interessados talvez até barateasse a estrutura, obsessão do conservadorismo que, todavia, vetou os comitês gestores formados por representações locais do Fome Zero, logo no início de 2003.
Nenhuma novidade.
As elites brasileiras, do alto de seus 380 anos de casa grande e senzala, são cometidas de surtos psicóticos ao menor ensaio de organização autônoma e democrática dos interesses populares.
Pochman menciona outros paradoxos associados a esse interdito subjacente à tradição liberal brasileira.
Cerca de 1,1 milhão de jovens ingressaram no ensino superior nos últimos anos, por conta do Prouni; todavia, essa legião não engendrou maior fôlego às entidades estudantis.
Mais de 20 milhões de trabalhadores conquistaram um emprego no mercado formal desde 2003. Mas a taxa de sindicalização não cresceu; ela permanece estagnada no país.
Milhões de famílias adquiriram imóveis pelo Minha Casa Minha Vida. Sem alterar, no entanto, o número de associações de moradores.
E assim por diante.
Seria importante que a Fundação Perseu Abramo abraçasse a inquietação de Porchman canalizando-a para uma pesquisa de fôlego nacional, capaz de adicionar escala e densidade a esse fenômeno.
Melhor ainda se fosse logo.
Falta ao campo progressista brasileiro ampliar a compreensão dos requisitos políticos e sociais ao passo seguinte do desenvolvimento nacional.
Certas dimensões do desafio tem sido subestimadas.
Transformações democráticas fornecem, muitas vezes, a única alavanca capaz de remover obstáculos intransponíveis quando abordados no âmbito de sua própria lógica.
Justamente porque avançou muito nos últimos anos, explorando as linhas de menor resistência, mas também indo além delas em algumas áreas, Brasil talvez esteja muito perto de ter atingido o limite nessa trajetória a frio.
Não avançará muito mais a partir de agora se menosprezar os interesses catalisados pelas políticas populares dos últimos dez anos.
Os bolsões de violência registrados em manifestações recentes de protestos –insista-se no termo bolsões--, dos quais o fenômeno black bloc é a marca da hora, não podem ser deduzidos mecanicamente do déficit de representação existente no país.
Há de tudo um pouco quando ações violentas se transformam em linguagem proeminente de protesto.
Existe a cota do vandalismo espontâneo e a do instrumentalizado. Um bom naco da adesão decorre do modismo. Outro, não menor, de convicções doutrinárias de consistência inescrutável.
Com um aditivo gravoso no caso brasileiro: a longa exposição da opinião pública aos efeitos danosos do elogio à loucura.
A demonização da política, dos partidos e das lideranças de esquerda, martelada insistentemente pela emissão conservadora, ao longo de todo o processo da AP 470, encontraria nos protestos de junho o altar de sua catarse.
Como convém aos rituais de uma seita, a cerimonia foi adornada de fogo e destruição purgativa.
Tudo isso é verdade. Mas não elimina o escopo mais amplo da sintomatologia.
O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ticados pelas políticas sociais nos últimos anos talvez tenha atingido seu ponto de saturação.
Desenvolvimento é transformação. É romper estruturas anacrônicas e construir outras novas, ao mesmo tempo e com igual intensidade. Quase como atravessar um rio de dupla correnteza, uma puxando para cada lado.
Quem acha que pode haver equilíbrio estático nesse ambiente açoitado por ventos e tempestades em litígio, acredita em fadas.
A fada dos mercados autorreguláveis, por exemplo.
Mas quem acredita que é possível desencadear um novo ciclo de desenvolvimento sem um protagonista social que o conduza, incorre igualmente em perigosas ilusões.
Mesmo sem acreditar em fadas, pode bater de frente com um exército de bruxas no meio do rio.
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