sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A intensa (e dissimulada) guerra pela água no Brasil


                                                                     
     *José Álvaro de Lima Cardoso
        O problema da falta de água, que é diagnosticado em várias partes do mundo, afeta sempre a sociedade de forma diferenciada. Como todo direito básico existente, quem enfrenta dificuldades no acesso a água são sempre os mais pobres, o que ocorre tanto nos países imperialistas centrais, quanto nos subdesenvolvidos. Os EUA e a Europa também enfrentam grandes problemas de falta de água, a maioria dos rios dos EUA e do Velho Continente estão contaminados. No caso dos EUA, o próprio desenvolvimento recente da indústria extrativa de gás de xisto contribui para a contaminação dos lençóis de água.
   Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil, com a aprovação, nesta quarta-feira (11.12) do projeto de lei do saneamento básico (PL 4162/19, do Poder Executivo), que trata da Política Federal de Saneamento Básico e cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico. Dentre outros tópicos, a lei prevê a abertura da concessão do serviço de água e esgoto para empresas privadas. É que estão chamando de novo marco legal do Saneamento. O projeto, dentre outros, define o prazo de um ano para empresas estatais de água e esgoto anteciparem a renovação de contratos com municípios. Nesse período as estatais de água e esgoto poderão renovar os chamados “contratos de programa”, acertados sem licitação com os municípios. Segundo o relator do projeto, o objetivo dessa última medida é possibilitar que as empresas tenham uma valorização dos ativos e possam ser privatizadas por um valor mais alto. Os destaques tentados pela oposição, que visavam aliviar um pouco o projeto, foram todos rejeitados. Os defensores do projeto têm perspectivas de sancioná-lo rapidamente, talvez ainda em dezembro.  
     O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do Projeto de Lei em tela, ao longo do processo no parlamento, qualificou os parlamentares que se posicionaram contra o projeto, de “corporativistas”. Classificado recentemente, por um outro parlamentar, como o “senador Coca-Cola”, Jereissati, é direta, e financeiramente, interessado na privatização dos serviços de água e saneamento no Brasil. Seu patrimônio é estimado em R$ 400 milhões (informações de 2014), e é um dos sócios do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13 fábricas e 36 centros de distribuição.
    Na prática o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, autoriza a privatização dos serviços de saneamento no país (não nos enganemos: esse é o objetivo principal). O item mais polêmico do projeto é a vedação aos chamados “contratos de programa”, que são firmados entre estados e municípios para prestação dos serviços de saneamento. Os referidos contratos atualmente não exigem licitação, já que o contratado não é uma empresa privada. É evidente que, se não houverem os contratos de programa, a maioria dos municípios teria que contratar serviços privados, pois não dispõem de estruturas nos municípios para desenvolver atividades de saneamento. É muito evidente que o projeto visa conduzir os municípios a contratarem empresas privadas.
     Esta lei poderá quebrar as estatais de saneamento, o que abriria as portas para a privatização da água. Água é a matéria-prima mais cara para a produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida produzido, por exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não existe nenhuma transparência nas informações divulgadas, mas ao que se sabe, as empresas de alimentos e bebidas contam com uma condição privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo, por exemplo, descontos. No entanto, foram essas mesmas empresas que estiveram à frente da tentativa de aprovar o novo marco regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o setor privatizado, pagarão ainda menos pelos serviços.
        Tudo indica que os golpes desferidos na América Latina, com a coordenação geral dos EUA, têm também como favor motivador, os mananciais de água na Região. Em 2016, logo após o golpe no Brasil, o governo dos Estados Unidos iniciou negociação com o governo Macri sobre a instalação de bases militares na Argentina, uma em Ushuaia (Terra do Fogo) e a outra localizada na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Um dos objetivos na instalação destas bases, tudo indica, foi o Aquífero Guarani, maior reserva subterrânea de água doce do mundo. O Aquífero, localizado na parte sul da América do Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) coloca a Região como detentora de 47% das reservas superficiais e subterrâneas de água do mundo. Os EUA sabem que não há nação que consiga manter-se dominante sem água potável em abundância, por isso seu interesse em intensificar o domínio político e militar na Região, além do acesso à água existente em abundância no Canadá, garantida por acordos como o do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre EUA, Canadá e México).
     No começo de 2018, o “insuspeito” Temer encontrou-se com o presidente da Nestlé, Paul Bucke, para uma conversa reversada. Não é preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa foi um pouco além de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao Congresso uma Medida Provisória 844, que forçava os municípios a conceder os serviços, medida que não foi aprovada. No último dia de mandato Temer editou a MP 868, que tratava basicamente do mesmo assunto. Em março deste ano Tasso Jereissati foi nomeado relator do referido. Quando a MP 868 perdeu validade no começo de março, o senador Tasso encaminhou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que basicamente retomou o que constava da medida provisória. A proposta foi aprovada em comissão e plenário em tempo recorde, e rapidamente chegou à Câmara (o que demonstra a existência de forças muito poderosas por detrás do projeto).
     A pressão para privatização da água é muito forte, conta com organizações financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do setor de alimentos e bebidas, e conta com cobertura do Banco Mundial. Os defensores da ´privatização têm um discurso sinuoso, como se não quisessem de fato, aquilo com o que sonham noite e dia. Sabe-se que a Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões humanitárias. Uma unidade da empresa é acusada de ter secado as nascentes em Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. A fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente secaram nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda o abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que a unidade esteja provocando falta de água na região e afirma que possui todas as licenças para funcionamento.
     No referente ao problema da água tem vários casos envolvendo a Coca-Cola no mundo. Há relatos de que no México, regiões inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México, nos quais os bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns momentos, em determinados dias da semana, obrigando muitas vezes a população comprar água extra. O resultado é que, em determinados lugares, os moradores tomam Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de conseguir, além do preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes locais que consomem 2 litros de refrigerante por dia, com consequências inevitáveis sobre a saúde pública.
     Sobre o projeto de privatização das fontes de água no Brasil quase não se ouve posições contrárias. Estas são devidamente abafadas pelo monopólio da mídia. Exceto nos sites especializados e independentes. É que na área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no Congresso Nacional, nos Governos, nas associações de classes, empresariado, universidades. Os encontros realizados para discutir o assunto são patrocinados por gigantes como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses completamente antagônicos aos da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma parcela de seus lucros com propaganda, vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade ambiental e iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar de tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros, enganam muitos incautos.
   Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no Brasil o episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água de Cochabamba”. Os grandes grupos de mídia que dominam a informação, a maioria ligados aos interesses do imperialismo, por razões óbvias, escondem o acontecimento. Entre janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta popular em Cochabamba, a terceira maior cidade do país, contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (por “coincidência”, pertencente ao grupo norte-americano Bechtel) dobraram de preço. É fácil imaginar o que isso pode significar, em termos de qualidade de vida, para uma população extremamente pobre.  
    Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer, general e político de Extrema Direita que tinha assumido o governo da Bolívia através de um golpe de Estado, declarou estado de sítio. A repressão correu solta e a maioria dos líderes do movimento foram presos. Mas a população não recuou e continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em 20 de abril de 2000, com o governo percebendo que o povo não iria ceder, o general Hugo Banzer desistiu da privatização e anulou o contrato vendilhão de concessão de serviço público, firmado com a Bechtel. A intenção do governo era celebrar um contrato que iria vigorar por quarenta anos. Graças à mobilização da população, a Lei 2.029, que previa a privatização das águas do país, foi revogada. 

                                                                                                *Economista.
                                                                                                                     13.12.2019.

Legitimidade, viabilidade e importância da reivindicação dos pisos em Santa Catarina: algumas notas


                                 
                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso
     A reivindicação dos trabalhadores catarinenses, que desejam igualar os pisos do Estado aos do Paraná, o que significa reajustes entre 10% e 15%, é legítima, viável e importante. Nesse debate, alguns elementos devem ser considerados:
1.Ao destruir direitos em escala industrial e entregar a soberania, Bolsonaro está destruindo o país. A serviço de potências estrangeiras. Do ponto de vista dos interesses da população, isso não vai dar certo, porque não deu certo em nenhum país do mundo;
2.O que pode quebrar o empresário catarinense é a política suicida do Bolsonaro/Guedes e não um aumento de 10% nos salários para comprar feijão, arroz, batata e leite. Até porque na indústria, segundo a Pesquisa Industrial Anual do IBGE, o peso dos gastos de pessoal no custo total industrial está em torno dos 13%, incluindo salários e encargos sociais. É o custo do trabalho. Os problemas das indústrias, assim como das empresas em geral, estão localizados nos demais custos, como matéria-prima, câmbio, taxa de juros, etc.;
3.A tentativa que Bolsonaro está fazendo, por orientação dos EUA, de destruição do Mercosul, está dando muito mais prejuízo para o empresariado catarinense e brasileiro em geral, do que qualquer aumento moderado de salários, que só iria beneficiar o mercado consumidor interno;
4.Estamos falando em aumentar o custo da força de trabalho (no custo total industrial) em 1,3% ou 2%, exatamente na parte do custo empresarial que produz valor novo. Máquinas e equipamentos não produzem valor, apenas o transferem. Estamos querendo proporcionar cerca de R$ 100 mensais, para quem produz toda a riqueza do País e do estado;  
5.Força de trabalho essa, que depois irá consumir a maioria dos bens produzidos. Os trabalhadores são fundamentais na produção e no consumo. Quem vive do seu trabalho alcança a cifra no Brasil, por baixo, de 90% da população. Porque o País está há cinco anos ou em recessão ou estagnado? Porque, dentre outras coisas, o mercado consumidor está sendo destruído pelo golpe de Estado de 2016;
6. Os empresários bem informados sabem que destruição de direitos e de salários nunca levou a crescimento econômico em país nenhum. Pelo contrário. Se o mercado consumidor interno é destruído, aumenta a dependência do país de mercados externos. Que neste momento de crise mundial estão sendo disputados à bala no mundo todo. Vejam o anúncio de Trump, em 02 de dezembro, de que elevará as tarifas de importação de alumínio e aço da Argentina e do Brasil. Por acaso adiantou alguma coisa Bolsonaro se humilhar para o presidente dos EUA?
7.O período mais longo de desenvolvimento do capitalismo foi justamente o que distribuiu um pouco a riqueza, no segundo pós-guerra, mais ou menos entre 1947 e 1973. Esse período, conhecido como a Era de Ouro do sistema capitalista, se caracterizava por um pouco de distribuição da riqueza, uma parte dos trabalhadores nos países centrais atingiram um padrão de vida bastante razoável, o que caracterizou o chamado Estado de bem-estar social;
8.O que ocorre entre os nossos vizinhos latino americano (Haiti, Honduras Equador, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia), é o mesmo processo brasileiro, a matriz é a mesma. Esse movimento pode chegar no Brasil, porque o que esses movimentos têm em comum é a luta contra a miséria e a destruição imposta por políticas tipo a que Bolsonaro e Paulo Guedes estão implantando no Brasil. (por ironia, o Chile era o mais citado como modelo, pelos neoliberais, a começar por Paulo Guedes);
9.A tendência de mobilizações históricas tem caráter mundial, e praticamente nenhum país fica de fora na Região. O Brasil está totalmente dentro desta tendência. Como é o mais importante país de toda a América Latina e o mais complexo (e também o mais industrializado), custa mais a pegar fogo, porém quando isso acontecer, será mais difícil esfriar, também;
10.Porque o Brasil ainda não explodiu? Porque é o país mais rico da América Latina. Tem, portanto, condições de retardar a explosão. O tamanho da economia brasileira serve como amortecedor da crise no Brasil. Mas essa gordura está acabando. Claro que a explosão social no Brasil, seria muito mais grave do que no Haiti – ou em outros países da região - que tem população pequena, classe trabalhadora pequena, e assim por diante;  
11.Estamos tratando da América Latina, mas o fenômeno é mundial. Vejam o que está acontecendo na França. No dia 05 de dezembro, assistimos a uma gigantesca manifestação (estimada em 1 milhão de trabalhares) contra a contrarreforma da previdência, e desta vez, coordenado pelos setores mais organizados dos trabalhadores, isto é, os sindicatos. Diferentemente do movimento dos coletes amarelos, os trabalhadores organizados em sindicatos, foram quem está comandando o atual processo de mobilização na França: ferroviários, à frente, setor fundamental no mundo todo, onde tem ferrovias. Pararam também portuários, indústrias, professores, trabalhadores públicos, petroleiros. Maior manifestação pelo menos dos últimos 24 ou 25 anos. Um milhão de manifestantes na França, que tem população de 67 milhões, é como colocar 3,5 milhões ou 4 milhões nas ruas no Brasil numa manifestação;
12.Há pouco mais de um mês, ainda em outubro, o Rio de Janeiro foi testemunha de cenas impressionantes, que não se viam há bastante tempo no país. Um caminhão de carne, que circulava distraidamente com as portas abertas, foi saqueado por populares na Feira do Acari, no Rio de Janeiro. Cenas assim, como a do saque das carnes do caminhão que, distraidamente, passava no local com a portas abertas, costumavam acontecer com certa frequência, durante o governo de FHC. Tais cenas tinham acabado durante um período, mas retornam agora;
13.A base do fenômeno é objetiva: todos os indicadores de desigualdade no Brasil voltaram a piorar após o golpe. O índice de Gini[1] saltou de 0,49, em 2014, para 0,63, em 2019 e nesse período a economia decresceu 0,8% anualmente e o PIB per capita caiu em média de 1,5% ao ano. No mesmo período a taxa de pobreza cresceu ao ritmo de 10,4% ao ano, enquanto a taxa de desemprego aumentou 20,1% ao ano, na média dos anos de 2015 a 2019. A evolução dos dados, fato impressionante, nos dá uma pista (mas apenas uma pista) do sofrimento que os trabalhadores mais pobres têm passado nos últimos anos;
14.O governo Bolsonaro fará um corte no programa Bolsa Família, de 7,8% para o ano que vem, o que representa, estimativamente, que 400 mil famílias deixarão de ser atendidas em 2020. O governo não está garantindo nem mesmo a manutenção das atuais 13,2 milhões de famílias contempladas pelo Bolsa Família, que representa algo em torno de 45 milhões de pessoas. O chamado “celeiro do mundo” não alimenta a sua população. Não por questões técnicas, mas por escolha política. O Banco Itaú tem perdão de bilhões em impostos, mas os miseráveis ficarão sem os trocados do Bolsa Família para não morrer de fome;   
15.Pode dar certo uma política econômica que faz explodir a desigualdade e retornar a fome de forma epidêmica, a ponto de começar a ter saques de comida novamente no país? Pode dar certo uma política econômica que implode direitos trabalhistas conseguidos em luta dura de pelo menos um século?
16.Vejam o que é a MP 905/2019, que destrói direitos em escala industrial. Essa política, além de desumana, é tola. Segundo estudo interno feito por técnicos da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia[2], o custo mensal do programa, que criou a carteira verde e amarela com o suposto objetivo de gerar empregos para jovens de 18 a 29 anos, com menos direitos e rendimento mensal limitado a R$ 1.497,00, é mais alto do que o próprio salário médio que os trabalhadores e trabalhadoras que forem contratados, receberão;
17.Pesquisa do DIEESE, divulgada dia 06.12: em novembro, Florianópolis registrou o maior preço médio da cesta básica entre as 17 capitais pesquisadas no país[3]. O preço médio da cesta de alimentos foi de R$ 478,68, sendo que a variação do preço da cesta, em 12 meses, foi de 5,23%.  Em 12 meses, os seis itens que mais acumularam foram: carne de primeira (30,81%), batata (18,65%), banana (18,58%), óleo (12,61%), feijão (11,31%), manteiga (7,13%).  O custo da cesta em Florianópolis comprometeu 52,13% do salário mínimo líquido (após os descontos previdenciários), em novembro;
18.O salário mínimo necessário do DIEESE, que neste mês foi calculado com a cesta de Florianópolis, para uma família de 4 pessoas, está calculado em R$ 4.021, 39. Quatro vezes o valor do salário mínimo nacional de R$ 998,00;
19.É neste contexto que se coloca a reivindicação dos trabalhadores na campanha 2019/2020, ou seja, a equiparação dos valores dos pisos de Santa Catarina aos praticados no Paraná. Os 10% ou 15% de melhoria salarial é um pleito justo e viável, até pelo baixo patamar em que se encontra a inflação;
20.Apesar dos preços terem variado relativamente pouco, os pisos, como os salários em geral, são muito baixos. Os valores dos pisos são de sobrevivência, para o trabalhador não morrer de fome. E a alimentação aumentou muito acima da inflação. Nestes casos, a inflação dos mais pobres é mais elevada do que a média;
21.A negociação dos pisos, no fundo, é uma negociação por COMIDA. Os valores dos pisos que estamos negociando nesta campanha são de sobrevivência. Na prática, nesta negociação se acerta o direito do trabalhador, e sua família, poderem se alimentar em 2019. Com este valor de salário, o trabalhador não consegue fazer mais nada do que repor sua capacidade de comprar alimentos no mês;
22.Diferentemente do empresário, o trabalhador não dispõe de reservas financeiras. Quem recebe piso ou o salário médio em Santa Catarina, em muitos meses tem que escolher qual conta deixará de pagar. Vivem mesmo na margem da sobrevivência, daí a importância de um ganho real, ainda que modesto;
23.Acreditamos que não precisamos esperar que as contradições sociais façam o país explodir, como no Chile e Equador, ou França, para a partir daí melhorar um pouco a vida dos trabalhadores. Em todos esses 10 anos, essa é a mais importante campanha dos pisos estaduais, porque está sendo desenvolvida em um contexto em que a renda e os direitos dos trabalhadores estão sendo dizimados.  
                                                                                                              *Economista.


[1] Instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou município. Quanto menor é o valor numérico do coeficiente de Gini, menos desigual é um país ou localidade.
[2]Programa Verde Amarelo tem custo superior a de salário e pode reduzir produtividade, diz secretaria da Economia, Reuters”, 09.12.19.
[3] São 17 capitais pesquisadas. Porém em novembro, por problemas na coleta, excepcionalmente os dados de Brasília não foram calculados.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O principal problema do governo Bolsonaro


*José Álvaro de Lima Cardoso 
      Há quem considere que o governo Bolsonaro é insustentável pelas suas contradições internas, que realmente são muitas em função de ser, dentre outras, um governo de improvisação, já que este não era o candidato preferencial dos coordenadores do golpe de Estado no Brasil. Desde o início já se sabia que o governo enfrentaria muitos problemas, até pela incompetência de boa parte dos quadros do governo, que em alguns casos beira o surreal. Mas desde o início se sabia que o governo poderia se sustentar se atendesse a duas questões simultaneamente:
1ª) colocar em prática um programa que garanta os lucros do capital financeiro internacional, um dos objetivos centrais do golpe. O que significa privatizações, fim da previdência social, redução de transferências sociais do governo, fim dos subsídios à indústria, etc. Na prática se colocar em operação o desmonte do Estado e da economia;
2º) garantir que essas políticas, que massacram a população, não conduzam a uma explosão social incontrolável.
     É uma equação extremamente difícil. Ajudar os grandes capitais a enfrentar a queda de seus lucros e a crise mundial do capitalismo, implica, ao mesmo tempo, aumentar muito a política de guerra contra o povo. Elevar muito o grau de exploração num país onde o salário médio está em torno de R$ 1.500,00 (setor privado), e onde quase cinquenta milhões de brasileiros dependem do Bolsa Família para não passar fome, não é brincadeira.
     Bolsonaro, aos trancos e barrancos, e mesmo crivado de suspeitas de tudo quanto é tipo, vem conseguindo impor o programa de guerra à população, que é a missão para a qual foi escalado. Lembremos as principais medidas que conseguiram aprovar, aprofundando as ações do primeiro governo golpista, de Temer:
1.Destruição da previdência pública
2.Enfraquecimento e tentativa de destruição dos Sindicatos
3.Entrega do pré-sal e desmonte da Petrobrás
4.Entrega da base de Alcântara
5.Privatização da Eletrobrás (prevista para o ano que vem)
6.Desmonte do SUS (em andamento)
7.Privatização do acesso à água (em andamento)
8. PECs de desmonte do Estado brasileiro (Plano Mais Brasil)
9.Desmonte das universidades públicas
10. Medida Provisória nº 905, de 11.11.2019, que implanta carteira verde e amarela e desmantela direitos
    A lista de estragos é imensa. Acima estão apenas parte das questões centrais. É inclusive difícil acompanhar a “política de choque” que estão colocando em prática. O problema do governo golpista do Bolsonaro, na realidade, é resolver a segunda parte da equação, que é evitar uma explosão social, mesmo implantando políticas que arrancam o couro da população. Esta tarefa ficou especialmente difícil, com o desencadeamento das mobilizações sociais em toda a América do Sul, exatamente contra as políticas anti povo e anti país que Bolsonaro vem aprofundando.
     Como se sabe, a partir do golpe, o Brasil está sofrendo os efeitos de uma explosão da desigualdade de renda, jamais identificada pelo IBGE, desde 1960, quando o Instituto passou a captar informações acerca do rendimento da população nos censos demográficos. Há uma piora de todos os indicadores de perfil de distribuição de renda, como já demonstramos em outros artigos.
     Há pouco dias, o IBGE divulgou os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua (Pnad Contínua).  A taxa de desemprego no país no terceiro trimestre deste ano, ficou em 11,8%, representando 12,5 milhões de desocupados. Destes, cerca de 3,2 milhões de pessoas, 25,2% do total, estão à procura de emprego há dois anos ou mais no Brasil. Em alguns estados a pesquisa mostra taxas de desemprego assustadoras, como Bahia (16,8%), Amapá (16,7%) e Pernambuco (15,8%). A taxa composta de subutilização da força de trabalho, ou seja, o percentual de pessoas desocupadas ou subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas chegou a 24% no país. Sendo que no Maranhão é de 41,6% e no Piauí chega a 41,1%. O número de pessoas desalentadas, ou seja, que desistiram de procurar emprego, alcançou 4,7 milhões de pessoas no terceiro trimestre.
     Sabe-se que as contingências políticas e econômicas mudaram o humor dos EUA em relação à América Latina, por isso promoveram golpes em toda a região. Não se trata deste ou daquele presidente, os golpes são política de Estado dos EUA. O problema não está ligado especificamente à Donald Trump, quando ocorreu o golpe no Brasil o presidente dos EUA era Barack Obama. Os golpes estão ligados fundamentalmente à crise internacional do capitalismo e ao esforço dos EUA para recuperarem terreno na América Latina, que tratam e consideram como o seu “quintal”.  
     É difícil imaginar que, em algum momento, a sociedade brasileira não reaja com muita força a todos os ataques, como já fez em outros momentos da história. Até em função do que está acontecendo em toda a América Latina, onde as vigorosas manifestações têm o traço comum de serem contra as políticas neoliberais. O nível de repressão no Chile e no Equador, o golpe na Bolívia, e a destruição de direitos no Brasil em escala industrial, são fatos interligados, que revelam que não devemos esperar saídas fáceis e tranquilas. A crise mundial não é bolinho, e os países imperialistas estão firmemente determinados a descarregar os seus impactos sobre as nossas cabeças.

                                                                                                    *Economista (04.12.19)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

A podridão dos golpes de Estado


                                                                                              
            *José Álvaro de Lima Cardoso                                                                                                
     A imprensa noticia que o general boliviano que exigiu a renúncia do presidente Evo Morales recebeu um milhão de dólares do Encarregado de Negócios da Embaixada dos EUA em La Paz, Bruce Willianson. O general corrupto, Williams Kaliman, ganhou também um visto de residência permanente nos EUA, onde foi se esconder. O general tinha sido adido militar da Embaixada da Bolívia em Washington e, segundo a imprensa, passou pela School of Americas, em Fort Bennings, Georgia, que é destinada a formar militares e policiais na América Latina. O general tinha assumido o cargo de chefe das Forças Armadas Bolivianas em dezembro de 2018, nomeado por Evo Morales. O militar de alta patente, ao invés de garantir a constituição federal da Bolívia, apoiou o golpe e forçou a renúncia de Evo Morales.
     Segundo a imprensa Kaliman não foi o único que vendeu a soberania do próprio país para o Império. Consta que Bruce Williamson, entregou também um milhão de dólares a cada chefe militar e quinhentos mil dólares a cada chefe de polícia. Vamos recordar que o motim da polícia contra Morales, foi fundamental para a implementação do golpe num primeiro momento. Consta que Williamson ficou meses coordenando todo a construção do golpe a partir de Jujuy, na Argentina, sob a proteção de seu governador Gerardo Morales. Este governador é muito próximo à Mauricio Macri, o que reforça a hipótese de participação do governo da Argentina no processo. Logo após o golpe na Bolívia, além do general, outros chefes militares, igualmente corruptos e golpistas, também fugiram para os EUA.
     Vale lembrar que, em agosto de 2018, a Procuradoria Geral da República (PGR) anexou documentos enviados ao Brasil por autoridades suíças ao inquérito que investigava pagamentos para o senador José Serra (PSDB). Os documentos enviados revelavam que a Odebrecht fez repasses de 400 mil euros a uma conta na Suiça que tinha, entre seus administradores, Verônica Serra, filha de José Serra. Segundo Eduardo Soares, um dos executivos da Odebrecht, que fez acordo de delação premiada, através de uma offshore, a Circle Technical Company, a Odebrecht repassava recursos à Serra, em nome de propinas referentes à Linha 2 do Metrô de São Paulo, do Rodoanel e da interligação da rodovia Carvalho Pinto. Nos documentos enviados pela Suiça à PGR, constam várias outras comprovações, detalhadas, do recebimento das propinas, por parte de Serra.
     Um fato talvez explique porque a denúncia acima “morreu na casca”: José Serra, segundo denúncia feita em 2013 pelo site WikiLeaks, havia prometido à Chevron, em 2010, que, se eleito presidente, iria acabar com a lei de Partilha. Consumado o impeachment da presidenta Dilma Roussef, foi aprovado imediatamente no Senado o projeto de Serra, que tirou da Petrobrás a exclusividade na operação dos poços do Pré-sal e acabou com a obrigatoriedade de a estatal ter participação mínima de 30% nos leilões, fatores fundamentais para a retenção da renda petrolífera no Brasil. Passado mais de três anos de golpe, estão entregando o petróleo do Pré-sal a preço de banana, como até as pedras já sabiam que iria acontecer.
     Nos últimos dias apareceu uma denúncia na imprensa, na qual, em conversa interceptada pela Polícia Federal, o “doleiro dos doleiros” Dario Messer afirma que pagou propina para o procurador Januário Paludo para garantir uma blindagem nas investigações da Lava Jato. Essa conversa teria ocorrido em agosto de 2018. Segundo a conversa gravada de Messer com a namorada, havia um esquema de pagamento mensal ao procurador, que é uma espécie de referência, dos procuradores da Lava Jato.
     Quando afirmávamos, em 2015, que a Lava Jato nada tinha a ver com corrupção e que era uma operação do governo estadunidense para meter a mão em petróleo, água, recursos naturais em geral, biodiversidade da Amazônia, e também pelo interesse de abortar um incipiente e limitado processo de construção de um projeto nacional de desenvolvimento, nos acusavam de estar alimentando uma “teoria da conspiração”. Esses seis anos, desde a construção do golpe, mostraram que a conspiração é muito mais grave do que qualquer teorização do fenômeno. Especialmente a partir das “confissões” dos criminosos, trazidas em larga escala pela Vaza Jato. O fato é que somente um processo sofisticado de manipulação da população poderia possibilitar o apoio a uma operação entreguista como a Lava Jato e aceitar com naturalidade o repasse, ao Império do Norte, de petróleo, água, minerais e território para instalação de bases militares.
     Durante o desenrolar dos acontecimentos, na medida em que se sentiram apoiados pela burguesia e pela grande mídia, os golpistas perderam completamente a vergonha. Ficou-se sabendo, por exemplo, que membros do Ministério Público envolvidos na Lava Jato, explodiam de orgulho por trabalharem em conjunto com os policiais do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, considerados muito eficientes. Ou seja, aquilo que deveria ser motivo de vergonha nacional, que é nutrir de informações uma potência estrangeira, para prejudicar e processar a maior empresa nacional, motor da economia brasileira, era motivo de orgulho para esse pessoal.
     Na ocasião, pensávamos que estes funcionários públicos, eram apenas idiotas úteis, deslumbrados com a chance de rastejar perante o poder imperial. No entanto, as surpreendentes informações do The Intercept Brasil, e, em menor escala, outros órgãos de imprensa, revelaram que a história não era bem essa. O chefe da operação, por exemplo, estava ganhando um bom dinheiro, como palestrante e vendedor de livros, inclusive em reuniões secretas com banqueiros, que ajudaram a financiar o golpe. Traído pelo excesso de confiança, Dallagnol foi, possivelmente, o mais imprudente de todos: em algumas conversas comentou ter faturado com palestras e livros R$ 400 mil, somente em alguns meses de 2018. Num dos diálogos com seus colegas, tratando do risco de sentarem secretamente com banqueiros, o chefe da força-tarefa, concluiu cinicamente: “Achamos que há risco sim, mas que o risco tá bem pago rs”. Outros envolvidos ganharam também bastante dinheiro com a destruição do país, como foi o caso de Sérgio Moro.
    Segundo o eminente intelectual Luiz Alberto Moniz Bandeira (falecido em 2017), a operação Lava Jato, instrumento central do golpe, desde o seu início esteve em articulação com o Departamento de Justiça, e com as agências de espionagem americanas (NSA, a CIA, o FBI). Os procedimentos ilegais utilizados na operação, prisões arbitrárias, vazamento seletivo de delações de criminosos, desrespeito aos princípios mais elementares da democracia (como a presunção de inocência), e a mobilização da opinião pública contra pessoas delatadas, são técnicas largamente utilizadas pela CIA em golpes e sabotagens mundo afora.  Blindados pela mídia, a arrogância e o descaso com a opinião pública era tão grande que a Lava Jato fez acordos de colaboração com o departamento de justiça dos EUA, com troca de informações de um lado e outro, para uso inclusive, das estruturas jurídicas americanas em processos contra a Petrobrás.
     A sabujice foi tão grande que, pode-se ler na imprensa, os procuradores e policiais estavam explodindo de orgulho de trabalhar com as organizações policiais e jurídicas norte-americanas. O interesse do capital internacional, essencialmente o norte-americano, obviamente é ampliar o acesso e o controle sobre fontes de recursos naturais estratégicos, em momento de queda da taxa de lucro ao nível internacional (terra, água, petróleo, minérios, e toda a biodiversidade da Amazônia). Mas no golpe houve todo um interesse geopolítico, de alinhar o Brasil nas políticas dos EUA, como ocorreu em todos os golpes.
     Ninguém da imprensa pergunta porque o Encarregado de Negócios da Embaixada dos Estados Unidos em La Paz pagou um milhão de dólares ao general vendido da Bolívia? É normal um embaixador pagar a um general uma soma dessas logo depois deste ter participado de uma conspiração golpista? É normal que esse embaixador tenha pago, também, vários chefes militares e chefes de polícia, sendo que uma parte deles fugiu posteriormente para os EUA? O fato concreto é que os países imperialistas são os mais corruptos do mundo, sem nenhum parâmetro com os valores da corrupção nos países periféricos ou coloniais.
     Uma das metas da ação imperialista desde sempre é dominar, para saquear as colônias. Os EUA, por exemplo, usam todos os recursos possíveis e imagináveis, financiando golpes e comprando governantes ladrões no mundo todo, para acessar riquezas e matérias-primas. Pouco se fala do assunto, mas entre 1846 e 1848 os EUA ampliaram seu território em 25%, tomando terras do México, que perdeu cerca de 50% do território. A guerra entre os dois países foi iniciada pelos EUA, com base no cínico pretexto de que Deus tinha concedido o direito do império do Norte expandir suas fronteiras.
     Os países imperialistas, como vimos no golpe recente da Bolívia, corrompem para ter acesso à direitos e todo tipo de riquezas dos países subdesenvolvidos. Logo após o golpe no Brasil, em 2016, conforme estava no script, o governo Temer tomou várias medidas favoráveis às petroleiras: redução das exigências de conteúdo local, redução de impostos, dispensa de licenças ambientais, concessão de poços de petróleo a preços de banana. A mamata envolve valores acima de um trilhão de reais (em 20 anos), tirados da mesa dos brasileiros mais pobres (conforme previa a lei de Partilha). Algum incauto, por mais colonizado e tolo que seja, seria capaz de supor que essas benesses concedidas às petroleiras foram dadas pela simples admiração de Temer aos costumes requintados dos países imperialistas?  
                                                                                                           *Economista 02.12.19

domingo, 1 de dezembro de 2019

O preço da cesta básica e o custo da injustiça


                               
                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso
    Segundo o DIEESE, em outubro o preço médio da cesta de alimentos em Florianópolis alcançou R$ 458,28. Um aumento de 0,73% no mês, e de 1,76% em 12 meses, tendo ficado abaixo da inflação apurada no mesmo período. Detalhe crucial: este é o custo da cesta básica suficiente para alimentar 1 adulto ao longo de um mês, não uma família. Entre as 17 capitais pesquisadas, Florianópolis ficou como a quarta cesta mais cara, mais ou menos a posição que, historicamente, tem mantido a capital catarinense. Mais importante que a variação em um ano (1,76%), abaixo da inflação, é o valor absoluto da cesta, que corresponde à metade do salário mínimo líquido (isto é, após o desconto previdenciário).
     Para o trabalhador que está comprando o seu alimento, pouco importa a variação percentual no mês, ou nos últimos 10 anos. Informações estas que, em regra, ele muitas vezes nem entende direito. O fundamental é quanto custa a cesta básica, quanto o trabalhador terá que desembolsar dos seus minguados recursos para levar para casa produtos imprescindíveis à vida de sua família. Para termos uma ideia do peso que os alimentos têm no orçamento dos trabalhadores, no mês de outubro, um trabalhador de salário mínimo, em Florianópolis, destinou 101 horas da sua jornada mensal de trabalho, para a aquisição dos 13 produtos da cesta básica.
     Em outubro, em meio à variação de preços dos produtos que compõe a cesta básica pesquisada pelo DIEESE, chamou atenção a variação do preço da carne (6,16%). É que a carne, além de ser essencial, representa mais de 36% do custo total da cesta, em Florianópolis. Segundo dados do setor produtivo o aumento do preço da carne deverá se manter nos próximos meses, pressionando o custo total da cesta de alimentos. O fenômeno está ligado ao aumento das exportações de carne para a China, cujo rebanho suíno foi atacado pela peste suína africana, que matou 7,5 milhões de animais em toda a Ásia. Além das exportações de carne terem aumentado significativamente para a China, elas também cresceram muito para a Rússia e Emirados Árabes, quando se compara com as realizadas no mesmo período no ano passado.
     A redução da oferta de carne para o mercado interno – e consequentemente o seu aumento de preços – levou à uma elevação de preços, também, de outras fontes de proteína como carne suína, de frango e ovos, na medida em que aumentou também o consumo destes produtos. Na elevação dos preços destes produtos há, é claro, um forte movimento especulativo, no qual os grandes comerciantes, ao disporem de alternativa externa para venda de seus produtos, impõem os seus preços ao mercado interno. Este movimento é facilitado pela diminuição da oferta de gado bovino, em função de estratégia adotada pelo setor, de retardamento da engorda dos animais, aguardando a melhoria dos preços. Os produtores atrasaram o período de confinamento dos animais, mantendo-os nos pastos, onde o custo é menor, retardando estrategicamente o envio para o abate. 
     A alta dos preços da carne foi também alavancada pela desvalorização do real, que fez a cotação do dólar bater recorde, chegando ao final de novembro em R$ 4,26 (28.11). Essa desvalorização da moeda nacional (com base na qual são calculados os custos de produção do setor) em relação ao dólar (que garante a receita de vendas do exportador) torna o mercado externo extremamente atraente. Especialmente quando puxado por governantes chineses, preocupados com a segurança alimentar de sua população e abarrotados de dólares.
   Para termos uma ideia do que pode ocorrer no varejo de carnes nos próximos dois meses: segundo dados do CEPEA (centro de pesquisas econômicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), da USP), a média da arroba (15 kg) do boi até meados do ano, paga aos pecuaristas, estava entre R$ 150 e R$ 160. Em novembro, já com mais frigoríficos autorizados a exportar para a China, este valor passou dos R$ 220. Essa alta de preços no atacado da carne, representa um aumento, em pouco tempo, de quase 47% (em relação aos R$ 150), que tendem a serem repassados ao varejo neste final de ano. A maior oferta de animais para o abate no começo de 2020, deve fazer os preços recuarem. Mas, segundo previsões do setor, estes não retornarão aos patamares anteriores.
     A disparada do preço da carne coincidiu com o anúncio, do governo federal, de que, na primeira etapa da reforma tributária que enviará ao Congresso Nacional ainda neste ano, pretende acabar totalmente com a isenção de produtos da cesta básica. Em São Paulo, onde no mês de outubro, o DIEESE apurou a cesta básica mais cara do pais, de R$ 473,59, a desoneração desses produtos é de quase 100%. Há um cálculo preliminar do IBTP (Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação), que indica que, se os tributos hoje isentos na cesta básica retornarem, o valor desta subiria para R$ 581,00.
     A intenção de aumentar os impostos incidentes sobre os produtos da cesta básica nos fornece a medida exata do governo Bolsonaro. O Brasil é o segundo maior produtor de carne bovina e o país que mais exporta o produto em todo o mundo. Com a destruição das estruturas de combate à fome, feita a partir do governo Temer e aprofundadas por Bolsonaro, a fome voltou a aterrar o Brasil. Dadas as condições naturais e tecnológicas do país, a comida deveria ser quase de graça para a maioria da população, que tem renda muito baixa. Ao que se sabe, em boa parte dos países, não há incidência de tributação sobre os alimentos básicos. Por suas condições de produção (naturais e tecnológicas), que lhe dá o potencial de ser o “celeiro do mundo”, o Brasil deveria isentar 100% dos impostos sobre tais alimentos.
     No Brasil, proporcionalmente os pobres pagam muito mais impostos, porque a incidência do tributo é majoritariamente indireta, ou seja, está embutida nos preços das mercadorias e serviços. Enquanto os mais pobres são penalizados, dividendos distribuídos para os acionistas de empresas não estão sujeitos à incidência de Imposto de Renda. O sistema tributário brasileiro representa uma máquina de geração e manutenção de desigualdade social e pobreza. Essa deveria ser uma preocupação fundamental, porque, segundo dados da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), a pobreza extrema aumentou 11,5% desde 2014 em toda a Região (Panorama Social de América Latina 2019). Mas não há nenhuma surpresa no fato de que o governo Bolsonaro encaminhe planos para aumentar a injustiça tributária e aumentar o fome de parcela mais pobre da população no Brasil.  
                                                                                                  *Economista. 29.11.19

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

No quadro atual da América Latina ilusões não são boas conselheiras


                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso
     A crise mundial da economia tornou muito difícil a melhoria de vida nos países subdesenvolvidos. Tornou difícil também a melhoria de vida dentro dos países desenvolvidos, claro, mas na periferia capitalista é ainda pior. Por exemplo, um dos primeiros alvos dos golpistas no Brasil foi a seguridade social, que está sendo desmontada, a partir da aprovação da contrarreforma da previdência. Outras medidas estão sendo  tomadas na mesma direção, pois a seguridade social se tornou um “luxo” para os países subdesenvolvidos. Direitos sociais tornaram-se um luxo até mesmo para o centro capitalista, os países imperialistas, que para manter o padrão de vida de parte de suas populações exploram o mundo todo.
     As contingências políticas e econômicas mudaram o humor dos EUA para governos progressistas e nacionalistas em toda a América Latina. Não se trata deste ou daquele presidente, os golpes são política de Estado dos EUA. O problema não está ligado especificamente à Donald Trump, quando ocorreu o golpe no Brasil o presidente dos EUA era Barack Obama. Os golpes estão ligados fundamentalmente à crise internacional do capitalismo e ao esforço dos EUA para recuperarem terreno na América Latina, que tratam como seu “quintal”.
     Os que denunciavam a participação dos EUA no golpe no Brasil, em 2015/2016nos, eram acusados de serem adeptos da “teoria da conspiração”. Mas agora, com o que ocorreu na Bolívia, onde os EUA financiaram e organizaram um sórdido golpe contra um governo eleito em primeiro turno na Bolívia, irão também dizer que a denúncia do golpe é teoria da conspiração? Na realidade é a própria conspiração, que é muito superior à qualquer teorização sobre o assunto. Os EUA não se detêm por nada: segundo o cientista social estadunidense, Noam Chomsky, em comunicado divulgado no dia 09.11, antes da “renúncia” de Evo Morales, o centro de operações da embaixada dos EUA em La Paz revelou dois planos no país sul-americano: “o ‘plano A’, um golpe de estado e o ‘plano B’, o assassinato de Ivo Morales ”).
     Sob grave crise do sistema, e disputa dramática por apropriação de fontes de matérias primas, os golpistas não irão se deter por pouca coisa. No caso boliviano, pesou muito no golpe (ao que parece), o fato de que o país detém 50% de todo o lítio existente no planeta. Um dos elementos presentes nos golpes de Estado, e no caso dos golpes recentes na América Latina isso é decisivo, é a busca por fontes de energia. Os países imperialistas sabem que não existe nação sem energia, especialmente países que exploram o mundo todo para manter sua economia e poder político. O lítio, um metal volátil e fundamental para as novas tecnologias, está concentrado principalmente no Chile, Bolívia e Argentina (juntos, estes três países possuem 75% das reservas mundiais). A maior reserva do mundo de lítio, está localizada no salar de Uyuni, um deserto branco de sal de 12 mil quilômetros quadrados, situado no sul da Bolívia.
     Nós brasileiros temos uma experiência recente (e amarga) de como o Império trata na prática as reservas estratégicas de matérias-primas existentes no mundo. Apenas alguns anos após o anúncio da maior jazida de petróleo descoberta no milênio (pré-sal) e a aprovação de uma lei que retinha a renda petroleira no país (lei de Partilha), ocorreu o golpe de Estado. Sendo que uma das primeiras medidas foi o fim da lei de Partilha, baseado inclusive, num projeto de José Serra que, quando candidato a presidente da República, havia prometido, em diálogo secreto, à representante da Chevron, acabar com a referida lei.
    O nível de repressão no Chile e no Equador, o golpe na Bolívia (que conta com a reação heroica de parte expressiva do povo), e a destruição de direitos no Brasil em escala industrial, são fatos interligados, que revelam que as ilusões com saídas fáceis não são boas conselheiras. Mostram inclusive, que não tem fundamento o excesso de euforia com a vitória das forças populares na Argentina. Especialmente num quadro de grave crise mundial, cujos efeitos procuram descarregar sobre nossas cabeças.   
                                                                                                                                              *Economista.
                                                                                                                                  (14.11.19)

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Questão tributária e a rapinagem organizada do Brasil


                                                                                              *José Álvaro de Lima Cardoso
      A injustiça tributária é dramática no Brasil. Proporcionalmente os pobres pagam muito mais impostos, porque a incidência do tributo é majoritariamente indireta, ou seja, está embutida nos preços das mercadorias e serviços. Enquanto os mais pobres são penalizados, dividendos distribuídos para os acionistas não estão sujeitos à incidência de Imposto de Renda. O sistema tributário brasileiro é perverso, porque gera e mantém a desigualdade social e a pobreza. Mas a regressividade (que em tributação significa quem tem menos, paga proporcionalmente mais) do sistema não é apenas desumana e injusta. O sistema tributário brasileiro, por incidir sobre o consumo, ao invés de cobrar impostos a partir do perfil dos cidadãos (nível de renda, patrimônio, etc.), impede ou inibe a geração de empregos e a expansão do mercado consumidor interno.
     Quem detém o poder econômico e político no país, obviamente conhece muito bem essas características do sistema tributário nacional. As elites econômicas, os representantes do grande capital, os banqueiros e seus seguidores, sabem perfeitamente que o sistema tributário atual no Brasil é arcaico e que sua regressividade atrapalha o desenvolvimento. Deve fazer pelo menos meio século que economistas independentes, desenvolvimentistas e outros, vêm apontando estes problemas da estrutura tributária no Brasil, e a relação disso com o conjunto dos problemas do pais.
     Os economistas ligados aos bancos, aos setores oligárquicos, o alto escalão das multinacionais, conhecem o problema. Por que ele não é solucionado? Porque esse não é um problema, e sim uma solução para extrair mais da maioria da população. Progressividade no sistema tributário é uma conquista da luta social. Uma estrutura tributária regressiva, que extrai mais impostos dos mais pobres, em termos proporcionais, é de interesse dos ricos, que são os detentores dos poderes econômico e político. Esse raciocínio vale, claro, para todos os grandes problemas nacionais. Não se trata de ter ou não conhecimento do problema, ou adotar medidas tecnicamente “erradas”. É uma opção de não resolução de uma questão que, para a maioria da população é um problema, mas para as elites é uma solução.
     Tomemos, para ilustrar, uma situação atualíssima, a aprovação da contrarreforma da previdência. O DIEESE e outras instituições especializadas produziram inúmeros estudos técnicos provando que 98% dos argumentos que o governo utilizou para aprovar a contrarreforma da previdência são mentirosos. Foi realizada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional, presidida pelo senador Paulo Paim, em 2018, que organizou vasta documentação provando que não existe déficit na previdência social. Apesar dos deputados terem amplo acesso aos documentos, nada disso adiantou, o resultado da CPI foi simplesmente escondido da população. Conclusão: não foi uma questão de equívoco das elites políticas do Congresso Nacional. Se aprovou a lei que vai implodir a Previdência Social por opção das elites econômicas, que dominam (neste momento e historicamente), a maioria do Congresso Nacional. Assim, não se trata de determinada posição ser ou não “verdadeira”, ou “correta”, mas de uma questão de correlação de forças.
.  Antes do golpe de 2016, quando contávamos com uma correlação de forças um pouco mais favorável, pouca coisa foi feita para mudar a estrutura tributária, para torna-la minimamente justa. Como o Brasil vinha conjunturalmente bem, não se instituiu nem mesmo a cobrança de impostos sobre dividendos, e outras medidas mais óbvias e urgentes. Os governos conseguiram melhorar um pouco a vida dos de baixo, mas mantendo as estruturas, seja do sistema tributário, seja das demais áreas críticas. Se evitou, portanto, um enfrentamento real, de natureza econômica, com as elites. Quando houve o enfrentamento mais forte de todos, com a aprovação da Lei de Partilha em 2010, que entrava diretamente em colisão com os interesses imperialistas, a conspiração golpista foi acelerada.  
     A crise de 2008 foi um marco fundamental na política e na economia mundiais. Governos nacionalistas se tornaram intoleráveis na América Latina, e os EUA começaram a trabalhar para desalojá-los do poder, através de eleições ou golpes. A crise mundial do capitalismo, ao reduzir lucros no centro capitalistas, tornou muito difícil a melhoria de vida nos países subdesenvolvidos. Dificultou também, é claro, a melhoria de vida dentro dos países desenvolvidos, mas nos países subdesenvolvidos a situação é ainda pior. Por exemplo, a seguridade social no Brasil está sendo desmontada porque se tornou um luxo para a periferia capitalista. Neste contexto, mudou o humor dos EUA para governos progressistas em toda a América Latina, fato diretamente relacionado com a crise internacional do capitalismo.
     EUA que, aliás, acabou de articular um sórdido golpe contra um governo eleito em primeiro turno na Bolívia. Segundo o cientista social estadunidense, Noam Chomsky, em comunicado divulgado no sábado, dia 09.11, o centro de operações da embaixada dos EUA em La Paz (capital boliviana) revelou dois planos no país sul-americano: “o ‘plano A’, um golpe de estado e o ‘plano B’, o assassinato de Ivo Morales ”.
       A proposta do governo no campo fiscal objetiva destruir o Estado brasileiro. No dia 05 de novembro, por exemplo, o governo encaminhou ao congresso projeto de lei que autoriza a privatização da Eletrobrás, e que tira do governo a chamada "ação de ouro (golden share)", que possibilita que a União tenha o poder de veto em decisões estratégicas que podem ser tomadas pela empresa, mesmo que possua uma participação acionária minoritária. A expectativa do governo é que o leilão de privatização da Eletrobrás, maior empresa de geração e transmissão de energia elétrica do país, seja realizado no próximo ano e resulte em uma arrecadação de R$ 16,2 bilhões.
     O detalhe é que, entre janeiro e outubro deste ano, o executivo federal gastou com o pagamento de juros e a amortização da dívida a “bagatela” de R$ 497 bilhões, ou seja, 31 vezes o valor que pretende arrecadar com a venda de um patrimônio estratégico na área de energia para o capital internacional. Do ponto de vista fiscal e tributário, nada é mais importante do que isso. O curioso é que, a partir das manifestações de alguns parlamentares oposicionistas sobre a “reforma” tributária, tem-se a impressão de que o problema é de ordem democrática, de disputa de ideias no parlamento. O fato é que isso não tem nada a ver com a realidade: a missão dos que estão no poder é desmontar o Estado brasileiro.
     O fato de uma das missões do governo é a destruição do Estado brasileiro, fica claro, por exemplo, pelas três PECs enviadas ao Congresso Nacional no dia 05.11. São três Projetos: a) PEC do pacto federativo muda a repartição de recursos entre União, estados e municípios, em troca de um ajuste fiscal; b) PEC Emergencial cria gatilhos para redução de despesas com servidores públicos quando houver dificuldade nas contas públicas; c) a PEC dos Fundos Públicos prevê a revisão de 281 fundos públicos, a fim de liberar R$ 220 bilhões e reduzir a dívida pública federal. O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), inclusive, que é a base do seguro desemprego, será extinto. Claro, a intenção é extinguir também o próprio seguro desemprego.
     Os incautos que, por acaso, tenham dúvidas que a rapinagem do Brasil é sistemática e conta com fortes apoiadores internos (que são fartamente bonificados $$), deveriam estudar com muita atenção a farsa da Lava Jato, que agora, por contingências afortunadas da história, está sendo desmascarada. Não faltou, desde o início da operação, volumoso material de pesquisa. A tarefa requer apenas um pouco de espírito crítico e amor (verdadeiro) pelo Brasil.
                                                                                   *Economista (12.11.19)