segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Eleições estadunidense no contexto da crise global

 

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso

    Para entender o que está acontecendo no mundo, e no Brasil, é muito importante analisar o que acontece nos EUA, em função do peso da economia e da política estadunidense sobre o restante do mundo. Os EUA são a cabeça do imperialismo, que por sua vez é a maior força da Terra. Mesmo sem reconhecer o resultado, que ele diz ter sido fraudado a favor de Biden, Trump, 16 dias após sair o resultado, finalmente autorizou a Administração de Serviços Gerais (GSA) a iniciar os protocolos para a transição governamental. O processo, e o próprio resultado eleitoral das eleições gerais nos EUA, que foi bastante dividido, revelam a profunda crise do regime político norte-americano. O que aconteceu nessas eleições, o nível de polarização política, a ponto de o presidente estabelecido negar o resultado das urnas, talvez seja inédito na história dos EUA.

     A candidatura de Joe Biden representou um amplíssimo espectro de forças da grande burguesia imperialista norte-americana: financistas, bancos internacionais, praticamente todos os banqueiros do mundo, grandes empresas internacionais, monopólios imperialistas, monopólios do petróleo, indústria armamentista, grande imprensa, e assim por diante. Todos apoiaram Biden, incluindo também as grandes empresas que dominam a internet. O candidato republicano foi abertamente censurado, inclusive, no Twitter, no Facebook e outras redes sociais. O Twitter chegou a colocar um aviso em todas as postagens de Trump alertando que a mesma poderia conter mentiras.

     Das chamadas “Forças do Dinheiro”, praticamente todas apoiaram Biden, com exceção de um segmento minoritário do empresariado, ao que parece mais ligado ao capital nacional. Essa é uma informação chave. Por qual razão praticamente todas as forças direitistas (com exceção de um segmento mais fraco da burguesia), teriam apoiado esse candidato? É sabido que a realidade é complexa, os fenômenos têm uma aparência que pode ser enganosa. Mas neste caso parece não haver dúvidas de que Biden é o candidato do império e dos setores mais fortes do capital.   

      Joe Biden representa a engrenagem imperialista: máquina política, CIA, Pentágono, demais serviços de espionagem. Perante as forças que teve que enfrentar, Donald Trump é muito mais fraco. A força de Trump foi o expressivo número de votos, apesar do verdadeiro rolo compressor que montaram contra a sua candidatura. O resultado eleitoral bastante dividido, 77 milhões a 71 milhões, pode ser considerado surpreendente. Trump fez inclusive mais votos do que na primeira candidatura em 2016 (63 milhões). Isso, mesmo com todo o peso do extraordinário aparato político que montaram contra ele. Dentro do próprio país, numa eleição que estão acostumados a comandar, com controle dos principais meios de comunicação, tiveram muitas dificuldades para vencer e venceram por pouca margem.

      A eleição norte-americana é dominada pelos dois grandes partidos, como se sabe. Mas, a parte mais essencial e representativa do Partido Republicano estava também apoiando o candidato do Partido Democrata. É o caso da família Bush, ligada ao petróleo e com grande influência no partido Republicano. O rolo compressor foi tão grande que influenciou até setores importantes do partido Republicano. Mas o fato é que, apesar desse imenso aparato montado pelos imperialistas, o resultado ficou longe de ser avassalador, a diferença de votos foi relativamente pequena, considerando a estrutura que montaram para vencer.  

     Apesar de Trump estar politicamente mais à direita, quem representa o imperialismo e a máquina de guerra estadunidense é Joe Biden. Evidente que Trump até 20 de janeiro representa formalmente o império americano. Porém o conjunto das forças imperialistas está reunido na outra candidatura. Isto confunde bastante a cabeça das pessoas, que ficam no dilema de apoiar a extrema direita fascista ou a Máquina de Guerra imperialista. Claro que esse é um falso dilema, não há necessidade de apoiar nenhum dos dois. Pessoas com pensamento crítico e independente, especialmente localizadas nos países subdesenvolvidos, diretamente prejudicados pela política imperialista, não tem necessidade de apoiar nenhum dos lados. Ao apoiar Biden, supostamente para não apoiar um fascista, se estará apoiando a força que mais mata pessoas ao nível internacional, que é o imperialismo norte-americano.

     Mas o processo e o resultado eleitoral desnudaram uma profunda crise política do imperialismo. Para começar os EUA estão extremamente polarizados politicamente, já a algum tempo. Há protestos da população negra, dos pobres, há protestos da extrema direita, inclusive fascista. Se o país não conseguir controlar isso, a crise política na sociedade pode piorar. A grande mídia norte americana, ao criticar Trump por denunciar a fraude, porque estaria colocando em risco as instituições norte-americanas mostra que sentiu o golpe. O medo dos setores dominantes, inclusive, dentro e fora da mídia, é que as denúncias de Trump conduzam a população a um enfrentamento nas ruas. Existe o risco, até em face dos acontecimentos recentes em vários estados, por ocasião do assassinato do negro George Floyd, em abril último. As manifestações ocorridas neste ano, na intensidade que foi, não ocorriam desde a década de 1960.

     Aquelas manifestações não vieram do nada. Mesmo usufruindo de todas as vantagens de ser o principal país imperialista da terra, os EUA enfrentam grandes contradições internas. O seu modelo de desenvolvimento gera grande desigualdade social. Pelo menos desde o governo de Ronald Reagan (1981/1989), o estado de bem-estar norte-americano, que já era fraco, foi sendo paulatinamente destruído. Se estima que atualmente existam mais de 40 milhões de pobres nos EUA. Cerca de 40% dos estadunidenses se queixam de que não conseguem cobrir despesas inesperadas com emergências, que ultrapassem 400 dólares.

     O fato de que os EUA tenham um número tão grande de pessoas na condição de pobreza, representa uma verdadeira bomba relógio para o país. Uma sublevação dos trabalhadores dentro do país imperialista mais rico do mundo teria um efeito político, econômico e social, simplesmente devastador. Risco que deve ter influenciado a decisão dos EUA, há cerca de uma década, de “retomar” os governos da América Latina, totalmente para sua área de influência.

    Há vários indícios que a reclamação de Trump, sobre irregularidades na eleição, tem fundamentos, pelo menos em parte. Por exemplo, o presidente se queixou da possibilidade de fraude, dos 64 milhões de votos pelos correios. Sobre isso o candidato chegou a publicar vídeos denunciando possíveis irregularidades. De fato, votos enviados pelos correios parecem ser mais fáceis mesmo de serem fraudados. Trump também atacou com as “pesquisas falsas” de alguns órgãos de imprensa que estavam apoiando Biden, que mostraram uma queda dele nas vésperas da eleição, de 17 pontos percentuais em Wisconsin, sendo que no dia da votação, a disputa mostra equilíbrio. Esse tipo de pesquisa de informação é uma espécie de fraude porque influencia muito o eleitor, como se sabe.

     Aqui no Brasil a gente conhece bem esse tipo de manipulação. Os institutos de pesquisa, frequentemente induzem resultados. Nas vésperas da eleição vão se aproximando mais da realidade, às vezes na pesquisa de boca de urna. Esse tipo de ação é claramente uma manipulação dos resultados. E nos EUA, aconteceu isso mesmo.  

     Mas é importante entender que a eleição dos EUA vem no contexto de uma brutal crise do sistema capitalista. Os estrategistas do capital internacional manobram há anos para a economia voltar a ter um funcionamento “normal”. A política neoliberal em curso, que é a única resposta do imperialismo à crise, basicamente significa a destruição de forças produtivas, para tentar retomar os níveis de lucratividades anteriores ao surgimento da crise. Ao mesmo tempo essa política aumenta os níveis de exploração no mundo todo e destrói direitos sociais e trabalhistas. Aquilo que num primeiro momento é a solução da crise (destruição de forças produtivas e de capacidade de consumo da sociedade), no momento seguinte coloca a crise em patamar superior.

 

                                                                                                                Economista   30.11.2020.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Privatização do setor elétrico: o estrago está só começando

 

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso

     No Brasil, devido ao imenso potencial hidroelétrico, o maior custo na composição das tarifas de energia está justamente nos investimentos e juros de implantação das estruturas. Estudos da própria Aneel (Agência Nacional do Setor Elétrico) dão conta de que, tirando os custos de investimento da tarifa, o preço real (operação e manutenção) da energia produzida fica em R$ 9,50 (nove reais e cinquenta centavos) por 1.000 KWh (Quilowatt-hora). Extremamente barato para os padrões internacionais. Não por acaso as grandes aves de rapina estão de olho nesse patrimônio do povo brasileiro em setor tão estratégico do desenvolvimento e da soberania nacional. Neste novo ciclo de privatização do setor, que Paulo Guedes pretende promover, as empresas que abocanharem as estatais do setor não precisarão construir nada. Pegarão prontas as usinas e ainda elevarão as tarifas.

     Há um princípio fundamental dos processos de privatização, que aprendemos no governo de Fernando Henrique Cardoso: as multinacionais só querem o filé. A carne de pescoço fica para o povo e para o Estado nacional. Observem os lucros líquidos recentes da Eletrobrás:

2018: R$ 13,348 bilhões

2019: R$ 10,7 bilhões

2020: R$ 307 milhões (1º Trimestre, quando “acabou o mundo”)

2020: R$ 4,597 bilhões (2º trimestre)

     O que justifica privatizar um sistema que injeta lucro líquido na veia do Tesouro e das estatais, a não ser a mais grossa privataria?  As empresas que comprarem a Eletrobrás não precisarão construir nada, já pegarão tudo pronto. Também não contratarão ninguém, aliás provavelmente irão demitir. Pegarão o patrimônio completamente enxuto e com investimentos feitos anteriormente, como sempre ocorreu nas privatizações no Brasil. A Eletrobrás, possui entre suas 47 hidrelétricas as melhores produtoras de energia do país, são verdadeiras joias que estarão sendo doadas ao capital privado, possivelmente internacional. A Empresa controla 31% do setor elétrico brasileiro e possui 71.000 Km de linhas de transmissão de energia, o que corresponde à praticamente a metade da extensão dessa rede em nosso país. Atua nos segmentos de geração e transmissão, mas não tem distribuidoras. Tudo o que produz é para ser vendido a quem vai colocar a energia dentro das casas das pessoas e cobrar por esse serviço. E estão trabalhando para entregar a empresa de bandeja ao capital internacional.

     A promessa com a privatização do setor (assim como acontece com as privatizações em geral) é que o Estado diminuiria a dívida pública e ainda investiria mais em educação, saúde e segurança. Mas quem acredita que os fascistas que estão no poder irão investir em educação e saúde, se são fruto de um golpe de Estado que veio justamente para impedir gastos nessas áreas? Segundo estudo da FGV, após o golpe de 2016, houve mais de 15 operações de fusões no setor elétrico, que somaram quase R$ 86,2 bilhões em valor de empresa. Desse total, R$ 80,5 bilhões (mais de 93%) representaram aquisições em que os compradores eram empresas estrangeiras. Este dado mostra a relação direta entre privatização e desnacionalização.

     Os dados técnicos mostrando o quão lesivos esses processos de privatização são para o Brasil, são abundantes e estão à disposição de quem queira conhece-los. Mas a questão não é de falta de conhecimento e sim de correlação de forças. Ter uma estrutura totalmente dominada por grandes multinacionais, neste complexo sistema de energia elétrica, significará uma tragédia para o Brasil. A Aneel, (agência reguladora brasileira), para fiscalizar todo esse sistema continental, tem 300 funcionários. Só a Agência Reguladora do Setor Elétrico dos EUA tem 1.500 funcionários e cada estado do país tem uma agência do setor elétrico.

     O governo vai realizar a privatização da Eletrobrás após uma série de investimentos públicos no setor. Provavelmente, muitos dos investimentos que foram feitos em estações e linhas vão aparecer depois da privatização como se fosse uma grande obra do setor privado. Ao lado dos bancos, as empresas de energia foram as que obtiveram mais lucros em anos anteriores. Por serem, em sua maioria, estrangeiras, todo o lucro é remetido ao país de origem das empresas sem ser reinvestido no Brasil. Nosso grande potencial hídrico cobra tarifas muito altas para a população e remete todo esse lucro para fora do país.

     Ao contrário do que ocorre no Brasil, Estados Unidos, China e Canadá mantêm o domínio do setor elétrico. Nos EUA, a maior parte é controlada publicamente pelo governo federal, em grande parte inclusive pelo próprio exército americano. Lá, o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior operador de energia elétrica do país, controlando as grandes barragens de John Day, The Dalles e Bonneville. Na China, a estatal Three Gorges Corporation controla a maior hidrelétrica do mundo, a Três Gargantas. No Canadá, o setor é controlado por companhias dos governos provinciais, semelhantes aos governos estaduais brasileiros.

     A Eletrobrás tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água armazenada no Brasil. 70% dessa água são utilizados na irrigação da agricultura. Imagine tudo isso nas mãos de uma empresa privada que só se interessa pelo lucro. E estrangeira ainda. Conforme nos alertam os especialistas, uma usina hidrelétrica jamais deveria ser privada porque ela detém o controle das águas. Acumula água para, nos períodos de seca, transformar a água represada em energia. Mas cada gota utilizada na transformação da água em energia é uma gota a menos para o abastecimento, daí a necessidade de controle público.

     Não é por acaso que a imprensa fica cobrando eficiência de Paulo Guedes nas privatizações: elas são uma parte do programa dos golpistas que unificam a extrema direita e a direita tradicional. Não vamos nos iludir, não vão parar, com a privatização do setor elétrico. Desde o golpe de 2016 está claro que querem privatizar tudo, inviabilizar a empresa nacional, acabar de destruir os direitos que restaram, liquidar completamente com educação e saúde públicas, acabar com todo o tipo de assistência pública.

                                                                                                *Economista. 26.11.20

 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O caso do Amapá e a cilada das privatizações

                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     O estado do Amapá está desde 03 de novembro sem o fornecimento regular de energia elétrica, em função de um apagão generalizado. São 19 dias desde o incêndio em uma subestação da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), em que foram danificados 2 de 3 transformadores responsáveis pela distribuição da energia elétrica em 13 das 16 cidades do estado, atingindo mais de 730 mil pessoas. Dos três transformadores existentes no estado um já estava estragado há quase um ano. Somente agora, depois da tragédia, é que a empresa privada responsável (LMTE) está providenciando o seu conserto.

    A população do Amapá passa por um completo abandono do Estado. Está faltando energia, água e combustível. As famílias perdem alimentos em decorrência da falta de refrigeração e todos os serviços de que dependem de eletricidade foram interrompidos. A LMTE pertence majoritariamente ao grupo Gemini Energy, que é controlado por um fundo de investimentos chamado Starboard Asset. A Gemini Energy possui 85,04% do controle da Linhas de Macapá Transmissora de Energia, enquanto a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), uma autarquia vinculada ao Ministério da Integração Nacional, é responsável por 14,96%.

     Desde o início do apagão, foram registradas mais de 80 manifestações de moradores de bairros e cidades por todo o estado. Desde que restabelecido parte do sistema o funcionamento é muito precário (houve inclusive novo apagão em 17 de novembro). A interrupção de energia várias vezes ao dia, provoca inúmeros problemas, como danificação dos equipamentos elétrico-eletrônicos, em decorrência da irregularidade da transmissão da energia.

     Longe de ser uma “fatalidade” esses apagões são consequência do processo de privatização do fornecimento de energia no Amapá, ocorrido em 2008. Segundo os relatórios da fiscalização pública do Amapá, onde atua, a LMTE apresenta problemas. No Pará, estado onde opera a Subestação Oriximiná, em município de mesmo nome, a empresa tomou multa de R$ 460 mil em outubro do ano passado por falta de manutenção e uso inadequado dos equipamentos. Como a Gemini Energy, empresa estrangeira que atua nos 13 municípios amapaenses atingidos pelo problema, e que controla a LMTE, não conseguiu resolver o apagão, a Eletrobras foi chamada para socorrer o estado. A Eletrobrás acionou sua subsidiária, a Eletronorte, que contratou unidades termoelétricas para reabastecer o estado. Foi essa ação que permitiu que, até o momento, o serviço seja fornecido, pelo menos parcialmente.

     Não é novidade que a Eletrobras está na alça de mira dos golpistas, para ser privatizada. Ela começou a ser fatiada e entregue já durante o governo golpista de Temer (2016-2018). Atualmente um projeto de lei para sua privatização está parado no Congresso em função da pandemia e da resistência dos parlamentares do estado e da região. Tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado é grande a resistência dos políticos em permitir a privatização da Eletrobrás. O acontecido no Amapá certamente irá atrapalhar os planos de Paulo Guedes, de entregar a Eletrobrás na bacia das almas. O que está acontecendo no Amapá é um exemplo didático do significado da privatização do setor. É um exemplo prático recente do que tem sido a privatização historicamente no Brasil: descaso com a população, falta de investimentos e manutenção, e piora nos serviços.

     privatização do setor elétrico no Brasil sempre rimou com apagão. No início dos anos 2000, no Governo Fernando Henrique Cardoso, que patrocinou a chamada “privataria tucana”, o país sofreu um problema imenso de apagão de energia por falta de investimentos. As empresas que compraram os ativos não investiram, e as empresas públicas foram proibidas de investir. A maioria das pessoas não sabe, mas o setor elétrico brasileiro já é majoritariamente privado. A grande maioria das distribuidoras de energia elétrica no Brasil já é privada. Entre mais de 50 distribuidoras, somente seis são estatais. No sistema de geração de energia, 61% já é privado, na transmissão cerca de 40% também é privado.

     O processo de privatizações no Brasil que começou no governo Collor, e que foi muito aprofundado no governo FHC, trouxe uma série de problemas. O país perdeu em parte sua segurança energética, passando a depender crescentemente do setor privado, eventualmente de empresas privadas estrangeiras (como no caso do Amapá). Além de tudo, as empresas privadas não investem, as grandes obras no setor foram sempre realizadas pelo Estado. O apagão do governo FHC decorreu da ausência de investimentos. O Brasil é um país subdesenvolvido que precisa aumentar significativamente o uso de energia elétrica, comparativamente aos países desenvolvidos. Portanto precisa investir ainda muito no potencial hidroelétrico existente no país.  

     Uma empresa privada, isolada, para ganhar a concorrência de exploração da região, muitas vezes tem que fazer proposta financeira irrealista para levar a concessão. Ganha a concorrência, mas não consegue suprir o atendimento com qualidade, não faz manutenção para economizar e garantir margens de lucros. Além disso, super explora os trabalhadores com equipes mínimas e salários miseráveis. Mantém, além disso, equipamento velhos e estragados como constatado agora no caso do Amapá.

     Diferentemente de uma empresa como a Eletronorte (estatal que foi chamada para resolver o problema), uma empresa privada, dependendo do porte, tem dificuldades de manter equipes maiores, e sustentar equipamentos caríssimos. O transformador que estava “encostado” há um ano no Amapá, da LMTE, pesa 200 toneladas e precisou agora ser desmontado e transportado até Santa Catarina, para ser consertado. Isso tudo exige um ganho de escala, que não é fácil para uma empresa média privada, manter.  

     Energia elétrica não é um produto qualquer. Um dos fundamentos da sustentabilidade econômica de um país é a sua capacidade de prover logística e energia para o desenvolvimento de sua produção, com segurança e em condições competitivas e ambientalmente sustentáveis. Sem energia, não existe nação.  Não é por caso que os golpes de Estado na América Latina têm sido perpetrados também para apropriação das fontes de matérias-primas, como no Brasil (petróleo) e mais recentemente, Bolívia, cuja motivação central (do aspecto de matérias-primas) foram as imensas reservas de Lítio.

     Uma usina hidrelétrica jamais deveria ser privada porque, como defendem os estudiosos no assunto, ela possui a “chave das águas”. Em época de seca armazena água para transformar em energia. Mas, ao mesmo tempo, cada litro utilizado para a produção de energia, atrapalha o abastecimento e a produção de alimentos. Há toda uma relação com esse tipo de produção energética e as reservas de água do país, tema que certamente se encontra na galeria dos problemas “mega estratégicos” de qualquer país.

     A energia elétrica é tão importante, que alguns países centrais a tratam como um assunto de segurança nacional. Nos EUA o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior operador de energia elétrica do país, controlando as grandes barragens de John Day, The Dalles e Bonneville. Na China, a estatal Three Gorges Corporation controla a maior hidrelétrica do mundo, a Três Gargantas. No Canadá, o setor é controlado por companhias dos governos provinciais, semelhantes aos governos estaduais brasileiros.

     No Brasil a Eletrobras tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água armazenada no Brasil, sendo que 70% dessa água são utilizados para a irrigação da agricultura. Imagine tudo isso nas mãos de uma empresa privada que só se interessa pelo lucro, como a que acabou de deixar o Amapá às escuras. O caso do Amapá teria que servir para a população brasileira entender a imensa cilada que significa a privatização do setor elétrico no Brasil.  

                                                                                           Economista 22.11.20.

 

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Barack Obama, autêntico santo do pau oco

                                                                              *José Álvaro de Lima Cardoso

     Em entrevistas recentes para a mídia brasileira, visando divulgar o seu livro de memórias, “Uma Terra Prometida”, o ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fez ataques ao ex presidente Lula, sugerindo que havia um ambiente de corrupção nos seus governos. Na entrevista publicada pela Folha de São Paulo, Obama diz, se referindo ao ex-presidente, menciona “rumores girando em torno dele sobre clientelismo, e está claro que o Brasil ainda tem problemas profundos com corrupção sistêmica”. Uma afirmação dessas, vinda do cidadão que presidiu o país mais imperialista da terra, é de uma hipocrisia que não conhece nenhum limite.

     Os governos brasileiros, a partir de 2003, ousaram praticar políticas minimamente soberanas, como a rejeição à Alca, a organização do BRICS, compra de aviões da Suécia, ao invés de adquiri-los das empresas norte-americanas. Além disso, o governo brasileiro comprou helicópteros da Rússia e montou o projeto de submarino nuclear em parceria com a França. Em 2010 votou a Lei de Partilha, contra o desejo das multinacionais do Petróleo que estavam de olho na riqueza do pré-sal, maior descoberta de petróleo no milênio. Além disso, o Brasil estreitou laços com os parceiros sul-americanos, fortaleceu o Mercosul e continuou o projeto de produção de enriquecimento de urânio, estratégico para o Brasil e sobre o qual os americanos vinham tentando obter detalhes. Tudo isso, contrariou os interesses dos norte-americanos, acostumados a fazerem o que bem entendem na Região.

      Ora, foi sob o governo de Obama (e não no de Trump) que os EUA perpetraram o golpe no Brasil, visando interromper uma série de governos que, mesmos moderados e reformistas, contrariavam os interesses dos EUA na Região. Está cada vez melhor documentado, por exemplo, a ligação da Lava Jato com estratégias montadas em instituições de inteligência dos EUA. Os EUA são os principais responsáveis não só pelo golpe de 2016 no Brasil, mas pelos golpes em Honduras (2009), Paraguai (2012), Bolívia (2019) e outros, utilizando metodologias adaptadas a cada situação.

     Será que o governo estadunidense, país que sustenta a maior estrutura de espionagem no mundo, desconhecia que os irmãos Koch, proprietários da segunda maior empresa privada dos Estados Unidos, com faturamento anual de US$ 115 bilhões, financiaram grupos que participaram diretamente do golpe atual no Brasil, como o “Movimento Brasil Livre” e “Estudantes pela liberdade”.  Será que Obama, o presidente que mais fez guerras de toda a belicosa história dos EUA, desconhecia que toda a estratégia do golpe no Brasil inspirou-se no manual do professor Gene Sharp, intitulado Da Ditadura à Democracia, para treinamento de agitadores, ativistas, em universidades americanas e até mesmo nas embaixadas dos Estados Unidos, para liderar ONGs?

     É por demais conhecido o projeto de recolonização continental dos Estados Unidos, que dependem visceralmente dos recursos naturais da América Latina e que, também por esta razão, não querem perder o controle político da região. No caso do Brasil, a comprovação de que a motivação principal da cobiça imperialista é a riqueza do pré-sal foi também pela voracidade com que os golpistas se desfizeram do patrimônio da Petrobrás. Mas o interesse dos EUA no golpe não foi só pelo petróleo, que costuma tomar por bem ou por mal. Está relacionado também com as reservas de água existentes na região, os minerais e toda a biodiversidade da Amazônia.
   Será que Obama desconhece que a fúria da operação Lava Jato contra a construção civil brasileira, fechando empresas e prendendo seus executivos, está diretamente relacionada com os interesses do seu país? O historiador Moniz Bandeira destacou detalhadamente os vínculos do agora desmoralizado Sérgio Moro, com instituições norte-americanas. De uma hora para outra aparece um juiz de primeira instância, com um volume enorme de informações sobre a Petrobrás, contando com o apoio e ampla cobertura da mídia.
   Mais do que uma operação contra a corrupção, a Lava Jato despertou a ira contra estratégias de desenvolvimento nacional, políticas de conteúdo nacional, utilização dos recursos do pré-sal para saúde e educação. A prisão do Vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, principal responsável pela conquista da independência na tecnologia do ciclo de combustível, que era um sonho do governo norte-americano, interessado em interromper essas pesquisas no Brasil, ocorreu também durante o governo do Obama.

     Obama foi presidente durante dois mandatos do mais belicoso país do mundo, que tem larga tradição de intervenção e organização de golpes e quarteladas em todos os cantos do mundo, em defesa de seus interesses econômicos e políticos. Os EUA provocaram guerras civis, caos e desestabilização em inúmeros países, como Afeganistão, Iraque, Tunísia, Egito e Síria, só para citar casos mais recentes. Na Síria, através de técnicas de guerra híbrida (largamente utilizada no golpe no Brasil) incentivaram protestos contra o governo utilizando grande número de mercenários, bandidos e neonazistas, e cuja guerra civil produziu, mais de 300 mil mortos e mais de 4,5 milhões de refugiados.

     Barack Obama é um sujeito tão inocente que certamente nem imagina que em 2013 a Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, invadiu a rede privada de computadores da Petrobrás para coletar informações estratégicas. Estes dados sobre a estatal brasileira, estão em documentos vazados por Edward Snowden, membro então contratado da NSA, que havia divulgado milhares de registros secretos em 2012.  Em 2013, a construção do golpe no Brasil estava de vento em popa, e certamente os dados coletados na Petrobrás – epicentro econômico da motivação golpista – foram fundamentais. Não existe sistema de espionagem mais agressivo do que o dos EUA. Tal sistema dispõe, inclusive, de uma articulação internacional, conhecida como “Five eyes”, que significa a reunião de cinco países que formam uma rede de espionagem: EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Mas obviamente, o ingênuo Obama desconhece tudo isso.

                                                                                                                *Economista. 19.11.20

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Campanhas dos pisos estaduais: lições das peleias

 

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso   

     Um processo de campanha salarial, especialmente quando amplo e abrangente, é sempre um aprendizado coletivo, da parte dos trabalhadores. Quando as centrais sindicais e o DIEESE, em 2006, resolveram travar a luta pelos pisos estaduais em Santa Catarina, os empresários afirmavam que o estado não podia ter piso porque sua existência iria causar inflação e desemprego. Os representantes dos empresários bradavam para “provar” a relação inevitável entre aumento de salários e inflação e desemprego. Os grandes meios de comunicação repercutiam amplamente a visão dos empresários e quase não nos davam voz.  

     Uma das lições essenciais daquela campanha foi a importância dos trabalhadores aprenderem a pensar e formular estratégias através das próprias ferramentas de reflexão. Ou seja, é fundamental termos pensamento político e econômico independentes. Se os trabalhadores catarinenses não tivessem os seus próprios formuladores de hipóteses e teorias, e dependessem das formulações dos empresários, jamais empreenderiam uma luta fundamental como a dos pisos. Os trabalhadores iriam acreditar que aumento salarial é inflacionário, que os pisos iriam gerar desemprego, e assim por diante. Assim como no caso do Salário Mínimo Nacional, precisou ter, entre 2010 a 2020, correção regular dos pisos para o pessoal se convencer que não havia uma relação direta e necessária entre aumento de salários e elevação da inflação.

      Os que eram contra a adoção dos pisos no estado diziam, durante toda a campanha, que a sua implantação iria levar a demissões, o que faria a taxa de desemprego escalar. Como a história é uma professora irônica, a implantação dos pisos coincidiu com um período no qual o Brasil atingiu a menor taxa de desemprego já observada: em dezembro de 2014, quatro anos após a implantação dos pisos, o Brasil chegou a uma taxa de desemprego de 4,3%, a menor da história. Santa Catarina, por sua vez, em dezembro de 2014 tinha taxa de desemprego de 2,8%, o que pode ser considerado “pleno emprego”. Com uma taxa dessas, todos que quisessem trabalhar encontravam colocação no mercado de trabalho.

     A suposta relação necessária entre aumento salarial e inflação, também alegada pelo empresariado para não implantar os pisos, é desmentida pelo próprio quadro atual. Estamos tendo agora um empobrecimento dramático da população com o achatamento dos salários, não negociação da inflação nas datas base, desemprego em massa, etc. No entanto, a inflação vem aumentando nos últimos meses, especialmente a inflação de alimentos, que é uma inflação do assalariado, e o desemprego bateu todos os recordes. Ora, se aumento de salários provoca inflação, a sua redução deveria ser um fator importante de contenção dos preços. Inflação é fenômeno com muitas causas. Eventualmente até pode ser causada pelo excesso de poder aquisitivo da população. Mas o Brasil está longe disso.

     O que certamente atrapalha as empresas catarinenses é a política entreguista e antipopular de Bolsonaro/Guedes, a serviço do sistema financeiro internacional. Mas não um aumento de 10% ou 15% nos salários para comprar feijão, arroz, batata e leite. Até porque na indústria, segundo a Pesquisa Industrial Anual do IBGE, o peso dos gastos de pessoal no custo total industrial está em torno dos 13%, incluindo salários e encargos sociais. É o custo do trabalho. Os problemas das indústrias, assim como das empresas em geral, estão muito mais localizados nos demais custos, como matéria-prima, câmbio, taxa de juros, política industrial, etc.

     Toda a política antinacional e de entrega do patrimônio, praticada por Bolsonaro, abertamente contra os interesses do Brasil, é muito mais prejudicial ao empresariado catarinense e brasileiro em geral, do que qualquer aumento moderado de salários, que só iria beneficiar o mercado consumidor interno.  A campanha dos pisos salariais de 2020/2021 está buscando aumentar o custo da força de trabalho (no custo total industrial) em 1,3% ou 2%, exatamente na parte do custo empresarial que produz valor novo. Máquinas e equipamentos não produzem valor, apenas o transferem. Estamos querendo proporcionar cerca de R$ 100 ou R$ 120,00 mensais, para quem produz toda a riqueza do País e do estado.

     Os trabalhadores são fundamentais tanto na produção quanto no consumo dos bens produzidos. Quem vive do seu trabalho alcança a cifra no Brasil, por baixo, de 95% da população. Por que o País está há seis anos ou em recessão ou estagnado? Porque, dentre outras coisas, o mercado consumidor está sendo destruído pelo golpe de Estado de 2016. Destruição de direitos e de salários nunca levou a crescimento econômico em país nenhum. Pelo contrário. Se o mercado consumidor interno é destruído, aumenta a dependência do país de mercados externos. Que neste momento de crise mundial estão sendo disputados à bala no mundo todo.

     Como observado, a inflação de alimentos está em um patamar muito superior à média inflacionária. Inflação é um mecanismo de transferência rápida de renda dos mais pobres para os mais ricos, que assim enriquecem ainda mais com a fome e a piora de vida da população mais pobre. Especialmente quando se trata de inflação de alimentos. É um mecanismo extraordinário (no sentido de adicional) de exploração dos trabalhadores, que, em condições normais, mesmo que a inflação seja zero, já são explorados. Essa é uma razão a mais para haver o reajuste dos pisos salariais na atual campanha.  

                                                                                             *Economista   17.11.20.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

11ª campanha dos pisos estaduais: o imprescindível “sangue nos olhos”

                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

     Os trabalhadores catarinenses, através de suas centrais, e com a coordenação política e técnica do DIEESE, iniciaram nesta semana mais uma campanha pela correção monetária dos pisos salariais catarinenses. A negociação dos pisos, pela abrangência e capilaridade que tem, acaba se tornando uma referência para as demais negociações no Estado. Quando os pisos foram implantados, em janeiro de 2010, ao longo daquele ano, a nossa estimativa foi a de que eles impactaram, direta ou indiretamente, a renda de 1 milhão de trabalhadores. Se hoje a população catarinense está em torno de 7,2 milhões, dá para imaginar o significado que teve o referido impacto há 11 anos atrás.   

     Existem pisos estaduais somente em cinco estados da federação (os 3 do Sul, RJ e SP). No entanto, possivelmente só em Santa Catarina há, todo ano, um sistemático processo de negociação, com várias rodadas, argumentos de ambos os lados, e um razoável envolvimento dos trabalhadores.  Na saga para a implantação dos pisos (que já tem 14 anos, começou em 2006), os patrões se posicionaram completamente contra, fazendo de tudo para os trabalhadores não terem êxito. Em 2009, inclusive, a Confederação Nacional do Comércio entrou com uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) na Justiça contra a lei que implantou os pisos. O Supremo Tribunal Federal, indeferiu o pedido do patronal e considerou constitucional a lei de Santa Catarina. Vale observar que o empresariado até hoje resiste contra o Salário Mínimo, que começou a ser pago em 1940. Por que não seria contra os pisos estaduais?

     A luta dos pisos é muito mobilizadora porque atua no cerne do problema da distribuição da riqueza produzida. É muito mais fácil um conservador apoiar algo genérico como “liberdade” ou “democracia”, do que uma luta concreta para melhorar a renda e a vida da maioria da população. A implantação dos pisos, e sua atualização todo ano, disputa diretamente uma maior fatia do bolo de riqueza produzida, daí o esperneio do empresariado, até hoje.  

     Os empresários alegavam no início (fazem até hoje) que a lei dos pisos tem pouca importância, porque a maioria dos salários em Santa Catarina está “bem acima” dos pisos. Portanto, o reajuste nos pisos pouca influência teria sobre o conjunto da massa salarial em Santa Catarina. Esta hipótese desmascaramos na prática, com um argumento muito elementar: “já que os salários catarinenses estão “bem acima” do valor dos pisos, não há, então, problema em implantá-los, visto que não influenciarão a política salarial praticada nas empresas”.

     Os dados práticos também desmontaram aquela hipótese empresarial. No ano em que os pisos foram implantados (2010) houve categorias que tiveram até 40% de aumento nos seus pisos. Sabemos que um aumento no piso desloca a escala salarial para cima porque o trabalhador, cuja remuneração está logo acima do piso, irá desejar aumentar o seu salário também. O mesmo fenômeno ocorre quando o salário mínimo tem aumentos reais.

     A luta dos pisos também nos mostrou na prática, em batalhas muito concretas e diretas, a serviço de quem o Estado capitalista está. Por exemplo, o governo do Estado, a quem cabia a atribuição de encaminhar o projeto à Assembleia Legislativa, apenas enrolava os trabalhadores, adiando permanentemente o envio do projeto. Em função disso, em 2009 organizamos uma campanha de coleta de assinaturas em todo o estado, visando obter o 1% necessário a um Projeto de Emenda Popular. O movimento sindical foi extremamente exitoso na empreitada, obtendo mais do que as 50.000 assinaturas mínimas necessárias, o que viabilizava o projeto de Emenda Popular, via ALESC. Às vésperas de entregarmos oficialmente as cinquentas e tantas mil assinaturas coletadas, na Assembleia Legislativa, o governador, pressionado, encaminhou o projeto de lei.

     Uma campanha salarial representativa é sempre um rico processo de aprendizado. Com a luta pela implantação dos pisos, aprendemos na prática o que já sabíamos em teoria: no Brasil, assim como em toda a América Latina, o povo é muito pobre. A chave principal da pobreza (e do seu enfrentamento) no Brasil está no mercado de trabalho: além da taxa dramática de desemprego e subemprego, os salários são muito baixos. Como o Brasil tem muita desigualdade regional, Santa Catarina tem uma situação melhor do que a média. É o estado, por exemplo, que tem a menor taxa de pobreza da federação. Mas os salários são tão baixos quantos os do restante do Brasil, com pequenas diferenças.

     Se a negociação dos pisos foi importante há 10 anos, com o golpe de 2016, e a consequente destruição de direitos, hoje ela é ainda mais fundamental. Os pisos catarinenses, nos primeiros anos de existência, surfaram na política automática de reposição do salário mínimo. Como o salário mínimo aumentava conforme a variação do PIB (e a economia estava crescendo), e os pisos estaduais deveriam manter uma distância do salário mínimo (até para ter razão para existirem), os pisos catarinenses andavam no vácuo do salário mínimo e sempre tinham ganhos reais também. Mas isso acabou. Bolsonaro liquidou a política de reajuste automático do salário mínimo, obtida pelas centrais sindicais em negociação com o presidente Lula em 2006.

     O que já perdemos de direitos neste período de vigência dos pisos, significa uma verdadeira tragédia. Não é figura de linguagem dizer que o golpe de 2016 veio para colocar os direitos sociais e sindicais no século 19. Não se trata de uma metáfora, eles estão liquidando os direitos, em escala industrial. Neste contexto, as dificuldades na campanha salarial dos pisos irão aumentar, o que exigirá inteligência estratégica e uma ação dos trabalhadores desenvolvida com força de vontade e “sangue nos olhos”.

                           *Economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina 12.11.20

terça-feira, 10 de novembro de 2020

A extraordinária e exemplar campanha salarial dos Trabalhadores Metalúrgicos de Brusque

                                                                         *José Álvaro de Lima Cardoso

     As negociações coletivas no Brasil se desenvolvem em meio à uma brutal crise política, econômica e social. A negociação coletiva, tarefa mais importante dos sindicatos, nunca foi fácil. Porém, na conjuntura pós-golpe de 2016 se tornou um grande desafio. Um dos efeitos desse processo é a não reposição das perdas salariais numa parte das negociações: segundo o DIEESE isso ocorre em quase 30% das mesas. Como é sabido, para a maioria das negociações o reajuste salarial é a cláusula mais relevante, em decorrência da pobreza e limitações das negociações no país. Claro, com exceções. Os patrões estão, inclusive, aproveitando a crise para retirar os poucos direitos presentes nos acordos e convenções coletivas. Estão utilizando o momento para “depenar” os acordos.  

     Tendo data-base em maio, o Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Brusque assinou uma convenção coletiva que prevê que a correção salarial que deveria ter ocorrido na data-base, incida apenas em janeiro de 2021. A convenção prevê um reajuste de 3% (para um INPC-IBGE acumulado de 2,46%), porém sem retroatividade a maio de 2020, e sem qualquer outro mecanismo de compensação das perdas no período. Acontece que, a partir de junho, julho, mais ou menos, a produção industrial e o emprego em geral em Brusque, começou a reagir. Os dirigentes sindicais, vendo e ouvindo as informações na imprensa, ao invés de ficar de braços cruzados, resolveram fazer uma campanha extraordinária.

     Ao que se sabe essa campanha é única aqui no estado, pelo menos com essas características. Possivelmente, também, ao nível nacional campanhas deste tipo sejam poucas e localizadas. Esse tipo de iniciativa serve de exemplo para as demais entidades, que assim percebem que é possível inovar na campanha salarial, pensar a partir dos elementos novos que surgem ao longo do processo. Negociação coletiva é sempre um espaço de aprendizado e reflexão. Essa iniciativa dos metalúrgicos, nos ensina que não há necessidade de esperar a data-base para negociar. Se surgirem fatores novos e importantes, que requeiram a iniciativa do sindicato, qualquer hora é hora de defender os interesses da classe.

     A negociação dos metalúrgicos de Brusque interfere na vida de 5.000 famílias em Brusque e Região, que direta ou indiretamente dependem da renda gerada por aqueles postos de trabalho. Se pensarmos em um número médio de 4 componentes por família, significam 20.000 pessoas - cerca de 15% da população de Brusque - que são impactadas por aquela convenção coletiva de trabalho. A convenção, do jeito que foi assinada, significa perda salarial equivalente a 3% dos salários, nos meses de maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro. Considerados os 8 meses, mais o 13º salário, significa uma perda salarial de 27%, mais de um quarto dos salários. Se os metalúrgicos não se mexerem esta perda nunca será reposta. A discussão em maio de 2021 será apenas a inflação acumulada entre maio/20 e abril/21. A perda decorrente da não reposição no mês de data-base, não será reposta.

     O reajuste salarial não deveria nem ter sido objeto de discussão na mesa em maio. As perdas ocorreram antes da pandemia, portanto, não deveriam nem ser discutidas, apenas repostas. Se não houver correção monetária nos salários, o trabalhador vai perdendo poder aquisitivo a cada negociação. A reposição de perdas deveria ser um pressuposto dessa mesa de negociação. Especialmente com a inflação geral nos patamares baixos em que está, elemento que facilita o reajuste. Quando a pandemia explodiu no mundo, os metalúrgicos de Brusque já tinham sofrido o grosso das perdas salariais no seu salário. Por outro lado, quem pode tirar as empresas da crise é o consumo das famílias, das quais boa parte abriga metalúrgicos entre seus membros.

     O acordo foi assinado em plena chegada da pandemia, num momento em que parecia que “o mundo iria acabar” (na expressão do presidente do Sindicato, em fala recente). No segundo trimestre do ano, em plena campanha salarial, a retração do PIB no Brasil foi de 9,7% em comparação ao 1º trimestre de 2020. A indústria foi exatamente o setor que mais retraiu com queda de 12,3% no período. Nos últimos meses, porém, a indústria no estado e em Brusque voltou a produzir e fazer horas extras.  A pandemia provocou uma retração drástica da indústria no estado (como no país) nos meses de março e abril, quando apareceram os primeiros casos de Covid-19 no Brasil. Passados os piores meses, em março (-17,7%) e abril (-14,2%), a indústria catarinense iniciou uma recuperação.

     Vários segmentos metalúrgicos, não apenas em Brusque, estão retomando num ritmo superior à média. Possivelmente porque, em parte cortaram excessivamente no auge da crise, quando não se sabia exatamente onde estava o “fundo do poço”. Além disso, com a maior queda da taxa básica de juros da história (taxa Selic), houve um aquecimento no setor imobiliário, o que acabou puxando parte do crescimento do setor metalúrgico. Em agosto todos os indicadores industriais (Faturamento, Horas trabalhadas na produção, Emprego, Massa salarial, Rendimento e Utilização da Capacidade Instalada) avançaram ao nível de Brasil. O Faturamento da indústria e a Utilização da Capacidade Instalada, alcançaram patamares próximos ao nível pré-pandemia. Nesse mês, houve também o primeiro resultado positivo do emprego industrial em 2020: o emprego avançou 1,9% com relação a julho. Em agosto, o setor industrial nacional apresentou alta em 12 dos 15 locais analisados pela Pesquisa Industrial Mensal (PIM-Regional). Segundo a pesquisa do IBGE a produção industrial nacional cresceu 3,2% em agosto, quarta alta seguida. Em Santa Catarina, em agosto, a indústria cresceu 6,0%.

     Alavancado principalmente pela indústria e pela construção civil, o emprego no estado de Santa Catarina começou a reagir em junho. Em setembro o estado obteve um saldo positivo de 24.827 vagas, o melhor desempenho na região Sul e terceiro maior saldo acumulado do país. Em Brusque, o emprego formal também vem reagindo desde o mês de junho. Em setembro Brusque apresentou saldo positivo do emprego formal (1,1 mil), pelo terceiro mês seguido. Pela primeira vez o saldo foi superior a mil postos de trabalho. Importante: a indústria puxou o emprego em Brusque, com saldo de 822 empregos formais em setembro. Pelo quarto mês seguido este setor lidera o crescimento do emprego. 

     Possivelmente essa retomada da indústria, ainda incipiente, esteja ligada, em parte, à desvalorização cambial, já que um dólar mais caro inibe importações. A demanda, tanto da própria indústria, quanto do comércio, acaba optando pelas alternativas internas, como a produção industrial de Brusque. Ou seja, a desvalorização do real, ao tornar as importações mais caras, tornou o produto industrial de SC e Brusque mais competitivos. Para a competividade da indústria são muito mais importantes a política cambial, a política monetária, a política industrial. Não será 3% de reajuste no custo da força de trabalho (ajuste que já está atrasado), que irá inviabilizar a indústria.

     O custo do trabalho sobre o custo total da indústria é de apenas 13%. Está se falando de 3% sobre 13%, que é igual a 0,39% de aumento do custo industrial. Com o detalhe de que o único fator que geral valor novo no processo produtivo é o trabalho, o restante dos fatores apenas transfere valor para as mercadorias produzidas. Além do fato de que o aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores é fundamental para a vendas das mercadorias produzidas em Brusque, tanto do setor metalúrgico quanto dos demais. Portanto, todo o apoio aos trabalhadores metalúrgicos de Brusque, que nos indicam um caminho a ser trilhado!

                                                                                                *Economista, 09.11.20.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Salário mínimo e correlação de forças

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     Na luta pela valorização do Salário Mínimo os trabalhadores aprenderam, ao longo dos anos, que não se consegue manter o seu poder de compra, exclusivamente através da lei. A questão não é simplesmente fazer uma bela lei de salário mínimo e aguardar que todos a cumpram comportadamente. A experiência mostra que se consegue manter e melhorar o salário é pela mobilização política dos trabalhadores e pela viabilidade material na economia. O Decreto Lei que instituiu o salário mínimo nacional (DC 399) é de 30 de abril de 1938, ou seja, de 82 anos atrás. No entanto, da População Economicamente Ativa de cerca de 100 milhões de brasileiros, pelo menos metade está na economia informal, ou seja, eventualmente recebe menos do que um salário mínimo. Não adiantou, portanto, ter votado uma lei, pura e simplesmente, já que para uma parte da população o salário mínimo não tem efeito. A luta continua até hoje para amplificar a abrangência da lei, sendo que neste momento perdemos terreno, com o aumento substancial da informalidade.  

     De uma forma geral, o mesmo acontece com os direitos. Não adianta conquistar, apenas: tem que lutar para conservá-los. Como o sistema capitalista está em crise há muitos anos, há um ataque constante aos direitos, o que funciona como mecanismo de compensação das crises, por parte do Capital. Nas crises, o Capital ataca os direitos; quando a economia cresce há uma política mais frouxa, de concessões e de negociação de melhores salários. O que aconteceu no Brasil com o golpe de 2016 é a comprovação de que não existe direitos eternos. Quando muda a correlação de forças, quem está no poder, tende a retirar os direitos sociais e sindicais.

      O salário mínimo é fundamental porque o Brasil, como toda a América Latina, tem um povo muito pobre. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE, em 2018 o país tinha 13,5 milhões de pessoas com renda mensal per capita inferior a R$ 145, ou U$S 1,9 por dia, critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. Esse número de pobres extremos no Brasil é equivalente à população da Bolívia, ou de Cuba, ou Grécia ou Portugal.  Em 2018 significava, esse número, 6,5% da população. Segundo o estudo do IBGE (Síntese de indicadores sociais), em 2018 um quarto da população brasileira, ou 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420 per capita por mês.

     A situação está pior agora, não resta dúvidas, em relação à 2018. Considerando que a renda per capita do país é de R$ 34.532,60 (R$ 2.877,72 ao mês) pode-se concluir o quanto a renda é concentrada no país. Mesmo que se tire um quarto desse valor para investimentos, pode-se concluir a margem de melhoria da renda que tem o Brasil.

     A chave principal do combate à pobreza no Brasil está no mercado de trabalho: além da taxa dramática de desemprego e subemprego, os salários são muito baixos. O salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, foi de R$ 5.005,91 em outubro, o que corresponde a 4,79 vezes o mínimo vigente, de R$ 1.045,00. Este é o mínimo necessário para uma família de 4 pessoas (dois adultos e duas crianças) suprirem suas necessidades alimentares mensais.

     No período 2004/2014, a economia cresceu e distribuiu renda entre assalariados, fato inédito nos últimos 50 anos, até então. E foi com base principalmente no crescimento da massa salarial, através do aumento dos empregos e dos salários. Os ganhos reais do salário mínimo foram grandemente responsáveis por esse desempenho do perfil da renda no Brasil.

     O valor médio do rendimento do trabalho no Brasil, de R$ 2.330,00 em 2019, mostra porque uma das primeiras ações dos golpistas de 2016 foi acabar com a políticas de ganhos reais do salário mínimo. Os rendimentos do trabalho são muito baixos no Brasil. Não pode ter salário mínimo alto, pois ele denuncia os níveis desses rendimentos. Por isso ele tem que ser baixo. No debate que houve no início dos anos 2000, para implantação da política de valorização do salário mínimo, os empresários diziam que não podiam aumentar o valor do salário mínimo porque isso iria causar inflação. Precisou ter, entre 2003 a 2015, ganhos reais do salário mínimo acima de 74% para o pessoal se convencer que não havia uma relação direta e necessária entre aumento de salários e elevação da inflação.

     O momento em que vivemos, inclusive, demostra a falácia daquele argumento. Assistimos um empobrecimento violento da população com achatamento de salários, não negociação da inflação nas datas base, desemprego em massa, etc. No entanto, a inflação vem aumentando, especialmente a inflação de alimentos, que impacta mais o assalariado. Ou seja, a afirmação de que aumentos salariais necessariamente leva ao aumento da inflação, é pura ideologia.

     Vamos lembrar que quando vigorava a escravidão no Brasil essa não só era tida como natural pela maioria da população, como também não faltava quem se ocupava em listar argumentos defendendo as “vantagens” do sistema escravocrata. Alguns autores iam mais longe e “provavam” que o fim da escravidão no Brasil encaminharia a economia brasileira para o colapso. Por analogia, pode-se comparar o fenômeno da escravidão com os baixos salários de hoje.

     A naturalização da exploração do trabalhador no Brasil é tão grande, que uma parte dos dirigentes partidários, mesmo nas agremiações de esquerda, está defendendo os R$ 600,00 como uma “renda mínima” de dignidade para o trabalhador desempregado ou subempregado. Mas, será que esse valor (que agora foi reduzido por Bolsonaro para R$ 300,00) pode mesmo dar dignidade para um trabalhador açoitado pelas necessidades humanas?

     Há muitos anos o movimento sindical brasileiro tem uma referência de salário mínimo “necessário” para o trabalhador e sua família suprirem suas necessidades básicas, calculado pelo DIEESE (conforme mencionado, de R$ 5.005,91 em outubro). Rebaixar as reivindicações não resolverá as profundas derrotas recentes da classe trabalhadora brasileira. Temos que intensificar - em muito - as lutas. 

                                                                                        *Economista 05.11.20.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Valorização do salário mínimo: o subdesenvolvimento é uma vontade de Deus?

 

                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso    

     A luta pela implantação de um salário mínimo, que seja suficiente para suprir as necessidades do trabalhador e sua família, é essencial. Mas será que existem condições materiais no Brasil, para a implantação de um mínimo de quase R$ 5.000,00, que é o valor atual do Salário Mínimo Necessário calculado pelo DIEESE? Sem dúvidas. Faço aqui uma conta muito simples, acredito que verdadeira. Segundo a Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, neste ano o Brasil irá gastar R$ 409 bilhões de reais com a dívida pública, cujos credores são cerca de 20.000 famílias de ultra milionários, sendo que boa parte deles nem mora no país.

     Se fosse declarada moratória e feita a auditoria da dívida (neste caso, como determinou a Constituição Federal), estes recursos poderiam colocar no bolso de 40 milhões de brasileiros R$ 786,54, todo mês, incluindo um décimo terceiro salário. Seriam R$ 10.225,00 para cada um desses brasileiros que ganham menos. Seria um aumento de 75% sobre o salário mínimo nacional de R$ 1.045,00. Muita gente que não têm renda poderia ganhar um benefício que é muito superior aos atuais R$ 300,00 da Renda Emergencial,

      O pagamento de juros e amortização da dívida pública é feito todo ano, há décadas, e já drenou trilhões de reais do Brasil para os bancos. É como se o povo brasileiro todo, tendo cometido um pecado muito grave, fosse condenado a pagar, durante toda a eternidade 5%, 6%, ou mais do PIB para um grupo de super ricos, de 200.000 pessoas. Sendo que uma parte deles nem mora no Brasil. Como se sabe, essa dívida é ilegítima, já foi paga várias vezes, e não passa de um sistema de sucção de riqueza do país, que jamais terá fim, exceto se nos mobilizarmos contra essa tirania. É um sistema que garante uma exploração extra da população para beneficiar super ricos.

     Esse é um exemplo de onde se poderia tirar os valores para pagar um salário mínimo de R$ 5.000,00. Mas há outros. Por exemplo, no início da pandemia, sem pestanejar o governo liberou R$ 1,216 trilhão para os banqueiros. Este valor chegou rapidamente aos cofres dos bancos, mas não voltou para a irrigação da economia, para os investimentos na produção, como deveriam. Esse dinheiro está sendo usado para especulação financeira, como se pode ver pelo baixíssimo nível de investimentos produtivos da economia. O objetivo do recurso, equivalente à 17% do PIB, era o de “manter a liquidez no sistema”, isto é, a disponibilidade de dinheiro para que os bancos pudessem operar normalmente. Isso é dinheiro público, que poderia ser usado para um fundo salarial de emergência que garantisse um salário mínimo para todos os trabalhadores. Estes recursos, ao invés de ficarem esterilizados numa conta bancária, iriam para a economia gerar riqueza, o que expandiria o PIB, como vimos em experiência recente no Brasil, antes do golpe de 2016.

     Uma política de valorização do salário mínimo tem que vir colada a uma política de desenvolvimento, que gere empregos e amplie a produção de riquezas. O Brasil está caminhando para trás: a renda per capita de 2019 (R$ 34.532,60) foi inferior a de 2010 (R$ 35.040,55), consequência direta da política recessiva dos golpistas. A política votada no governo Lula em 2006 (começou a vigorar em 2007), discutida com as centrais, tinha essa característica de colar o crescimento do salário mínimo ao crescimento do PIB.  Quando o PIB não crescia, como em 2015 e 2016, não havia aumento do salário mínimo, apenas a correção pela inflação do ano anterior. A partir do golpe já se deixou de praticar essa política e, em janeiro de 2020 Bolsonaro acabou em definitivo com essa política.

     A proposta de deixar de pagar os especuladores e transferir os recursos para 40 milhões de assalariados de salário mínimo ou menos, é extremamente viável do ponto de vista técnico. Um dinheiro que será entesourado ou ficará “girando em falso” sem gerar riqueza no mercado financeiro seria injetado na veia da economia real, que produz pão, cerveja, vinho, feijão, passagem de ônibus, encomenda de pizza, conserto de sapato, ou seja o mercado consumidor interno. O problema deste tipo de proposta é de natureza política. Sem mobilização dos trabalhadores, propostas desse tipo são rapidamente desautorizadas e derrotadas. O próprio movimento sindical tem grandes resistências em se engajar num processo destes, que certamente exigiria uma certa dose de coragem e ousadia.  

     Haveria um número razoável de medidas que poderíamos apontar para viabilizar um salário mínimo de R$ 5.000,00. Mas o problema não é técnico e sim de correlação de forças. Se os trabalhadores tivessem força para impor essa medida, especialmente em conjunto de uma série de medidas integradas, certamente funcionaria. É como diz aquela frase atribuída a Nelson Mandela, “tudo sempre parece impossível até que seja feito”.  Agora, digamos que fosse verdadeira a tese que, se instituído um salário mínimo de R$ 5.000,00 (próximo ao salário mínimo do DIEESE) a economia iria afundar, como diziam os defensores da escravidão no Brasil? Deixa afundar. Nenhuma política justifica que, no país que é o segundo maior produtor agrícola do mundo, 85 milhões de brasileiros vivam algum tipo de insegurança alimentar. Nada justifica isso, então é preferível afundar.

     Tem outro debate essencial, em toda essa questão, que é a relação com o imperialismo. Como um pais neocolonial, o Brasil tem que transferir permanentemente riqueza para o centro capitalista. Vimos isso no golpe de 2016 quando perdemos a soberania sobre os destinos da imensa riqueza do pré-sal. Pela lei de partilha, boa parte da renda petroleira seria destinada ao povo brasileiro através de vários mecanismos, a começar pelos royalties do petróleo, que seriam destinados à educação e saúde. As multinacionais do petróleo disseram “nada disso”, e com aliados externos e internos (incluindo traidores, como Sérgio Moro) e muito dinheiro, financiaram o golpe, para nos roubar as imensas jazidas do pré-sal. A ruptura com o imperialismo seria fundamental para garantir salários melhores aos brasileiros, é impossível manter a condição de país neocolonial e melhorar significativamente a situação da classe trabalhadora.

     Mas o caminho de libertação nacional é extremamente árduo e só se poderá conseguir com muita determinação e, principalmente, ação. Nessa discussão é extremamente atual a questão trazida pelo escritor Eduardo Galeano, referindo-se à América Latina como um todo: “tudo nos é proibido, a não ser cruzarmos os braços? A pobreza não está escrita nos astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus”.

                                                                               *Economista. 02.11.2020,