terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mobilização no Chile: muito além dos 30 pesos


                                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso
    O domingo, 27, foi o oitavo dia de protestos no Chile. Após a impressionante escalada do número de pessoas nas manifestações, poucos lembram que o movimento foi desencadeado a partir de um aumento do preço das passagens do metrô, equivalente a 30 pesos (cerca de 16 centavos de real). Até o dia 27 tinham sido registradas 19 mortes, 2.840 pessoas detidas e 295 feridas por armas de fogo (é possível que estes números estejam subestimados). Há uma escalada não apenas no número de manifestantes nas ruas (estima-se que cerca de 10% da população do Chile saiu às ruas), mas também nos níveis de consciência da população.
     Com uma semana de manifestações o governo teve que ceder em várias reivindicações, algumas históricas, como a redução da jornada de trabalho. Na quinta-feira (24), a Câmara havia votado a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais (que hoje é de 45). Sexta-feira, 25, havia uma reunião prevista da Comissão de Trabalho e Seguridade Social para debater o projeto apresentado pelo governo chileno para melhoria do sistema de pensões e de capitalização individual, que compõem a Previdência Social local.
     Está também prevista para ser votada nos próximos dias uma lei, apresentada no calor das manifestações, que prevê que as concessionárias de energia assumam os custos de retirada e instalação de medidores de luz. Essa proposta não surgiu por acaso. É muito grande a revolta da população com os preços dos serviços essenciais em geral, que são considerados ruins e caros. No início da mobilização popular o prédio da empresa de energia elétrica do país, a Enel, que é privada, foi incendiado, assim como algumas lanchonetes do McDonald’s. Os manifestantes atearam fogo também no prédio do El Mercurio, jornal conservador, localizado na cidade turística de Valparaíso.  Pelo menos uma unidade do supermercado Líder (pertencente ao grupo estadunidense Walmart), após ser saqueado, foi também incendiado.
     Como se sabe, o Chile é uma espécie de laboratório do neoliberalismo, que foi implantado alguns anos após a instalação da sangrenta ditadura Pinochet, advinda do golpe de Estado de 1973, articulado pelos EUA. As mais expressivas manifestações populares no Chile, desde o fim da ditadura, obviamente não são pelos 16 centavos de real, que foi apenas a fagulha do processo que incendiou o Chile. Na verdade, elas representam um vigoroso repúdio do povo, ao monstruoso quadro em que se transformou a economia chilena para a maioria da população, com a implantação do neoliberalismo:
a) A água no Chile está nas mãos de empresas privadas, que enriquecem e mantêm seus altíssimos lucros às custas da distribuição deste bem essencial. O governo Pinochet fez o Código de Águas, em que o direito ao uso da água se converteu em uma propriedade absoluta para aqueles que o solicitem. No Chile de hoje são as grandes empresas, agrícolas, mineradoras, boa parte delas multinacionais, que detêm o controle das águas. Uma parte crescente da população tem que escolher entre lavar roupa ou cozinhar, pois a quantidade de água diária a que tem acesso, é suficiente apenas para uma, ou outra coisa;
b) todas as universidades “públicas” são pagas, e, não raro, são mais caras do que as escolas particulares;
c) mais de 50% da população sobrevive com menos de um salário mínimo;
d) não existe sistema público de saúde gratuito no país. Quem consegue pagar um plano de saúde privado, se contrair uma doença grave e sobreviver, se torna prisioneiro dos bancos, pois assume uma dívida que terá que pagar durante décadas. Mais de 80% da população não dispõe de dinheiro para pagar a saúde privada;
e) cerca de 80% dos aposentados recebem menos de um salário mínimo (em torno de US$ 424) de benefício. Quase metade (44%) se encontra abaixo da linha da pobreza, ou seja, sobrevive com até US$ 5,5 por dia, ou R$ 660 por mês, segundo o critério do Banco Mundial;
f) a jornada de trabalho no Chile é de 45 horas, os trabalhadores têm direito a 15 dias de férias e meia hora para almoço;
g) como vigora no país a pluralidade sindical total, que permite a existência de vários sindicatos por empresa ou setor, as entidades praticamente não têm nenhum poder de mobilização. Muitas vezes são os patrões que organizam os sindicatos, mantendo-os assim sob controle.
     A mais importante e maior mobilização do povo chileno desde a ditadura, é claramente uma reação da maioria, às décadas de super exploração e retirada das condições de vida e dignidade da população. As políticas que estão sendo repudiadas com muita clareza pela população do Chile, estão sendo implantadas no Brasil, rapidamente, a partir do golpe de 2016. Por exemplo, a destruição da previdência social, que acabou de ser aprovada, foi inspirada em parte no modelo chileno, a começar pelo modelo de capitalização (medida que não passou no Congresso, mas que será imposta através de lei específica).
     Ainda que com especificidades de toda ordem em cada país, o ataque do Império tem caráter subcontinental, ele pretende destruir direitos e elevar a exploração dos países subdesenvolvidos para aliviar a crise no centro do capitalismo. Como sempre fizeram, mas agora de forma mais determinada, em função da gravidade da crise mundial, procuram descarregar os efeitos da crise sobre as nossas cabeças. Bolsonaro e Paulo Guedes estão implantando exatamente o modelo de economia, que motivou a ira do povo chileno. Mas no Brasil o modelo é ainda pior, porque vem associado a um nível de entreguismo e subserviência, sem paralelos no mundo.
                                                                                                                               
  *Economista.
                                                                                                   29.10.2019.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Mercado de trabalho e a tentativa de demolição dos sindicatos[1]


Mercado de trabalho e a tentativa de demolição dos sindicatos[1]  
                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso
     A tendência do mercado de trabalho em Santa Catarina segue basicamente as do mercado de trabalho nacional, com especificidades regionais. A taxa de desocupação, que chegou a 2,5% no final de 2012 (uma espécie de “pleno emprego”), elevou-se para os atuais 6%, um crescimento percentual impressionante. A desocupação em Santa Catarina, apesar de situada num patamar significativamente mais baixo do que a verificado no país, segue as mesmas tendências observadas no quadro nacional. No período recente, a desocupação em Santa Catarina, cresceu percentualmente, bem mais que na média do país, que apresenta desocupação na faixa dos 12%.   
     À exemplo do Brasil, nos últimos anos o tempo em que o trabalhador fica desempregado em Santa Catarina, aumentou em geral. Em 2012 14,4% dos trabalhadores, segundo o IBGE, ficavam 2 anos ou mais tempo desempregados. Aquele percentual aumentou em 2019 para 20,5%. Atualmente, com o agravamento da crise, mais de 1/5 dos desempregados em Santa Catarina amargam pelo menos dois anos de desemprego. Os dados revelam a relação direta que existe entre a crise capitalista e o desemprego. Ou seja, não se trata de um problema de falta de formação, ou baixa “empregabilidade”. Afinal de conta, supostamente, o trabalhador catarinense de 2019, têm melhor formação técnica do que o de 2012. No entanto, a taxa de desocupação e o tempo de desemprego só aumentaram no período. 
     O mercado de trabalho, no estado como no país, carrega sempre muitas desigualdades. Em Santa Catarina, enquanto a taxa de desocupação combinada com a subocupação (decorrente de insuficiente número de horas trabalhadas), para os homens é de 6,6% no segundo trimestre de 2019, para as mulheres alcança 11%, no mesmo período. As desigualdades no mercado de trabalho não discriminam apenas as mulheres, mas ocorrem também por outros aspectos, como cor da pele, faixa etária, etc. Tais desigualdades são extremamente funcionais ao capital. As mulheres, por exemplo, em face das maiores dificuldades para obter emprego, se submetem à piores condições de trabalho e níveis salariais.
    A funcionalidade do desemprego para aumentar a exploração dos trabalhadores fica evidente quando se analisa a evolução dos salários: há sempre uma relação entre o crescimento do desemprego e a redução dos salários reais. Em Santa Catarina, o rendimento médio real de todos os trabalhos saiu de R$ 2.581,00 no 2º trimestre de 2012, para R$ 2.498,00 no 2º trimestre deste ano. Ou seja, o trabalhador catarinense que conseguiu preservar o seu emprego, está andando para trás no que se refere à renda. O desemprego, além de levar ao achatamento dos salários reais de quem está empregado, ainda tem a função de “baixar a bola” da mobilização sindical, na medida em que os trabalhadores ficam com medo de perderem seus empregos.
    A piora das condições em geral não está acontecendo estritamente no mercado de trabalho. Desde 1960, quando o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado uma deterioração tão rápida dos indicadores de distribuição de renda, em geral. Tal fenômeno é efeito da combinação, a partir do golpe de 2016, de decrescimento econômico, com a desmontagem do mundo do trabalho. A frieza dos dados estatísticos nos dá uma pista (mas apenas uma pista) de quanto o sofrimento dos trabalhadores, especialmente os mais pobres, têm aumentado nos últimos anos. Todas as medidas do governo Bolsonaro estão levando ao aumento exponencial da pobreza no país, numa velocidade até então desconhecida. A “Farsa Jato” não significou apenas a entrega das jazidas do pré-sal para as multinacionais do petróleo, mas também a elevação da pobreza em velocidade que, possivelmente, jamais tenhamos assistido.
     No período anterior, antes do golpe de 2016, além do emprego estar em franco crescimento, ocorria um importante processo de formalização do trabalho, ou seja, boa parte dos empregos que estavam sendo gerados eram de carteira assinada. A geração de empregos de forma acelerada, sendo que boa parte deles formais, estava oportunizando uma melhoria gradual do perfil de distribuição de renda, importante, ainda que com velocidade aquém àquela que gostaríamos. Fenômeno muito palpável nas estatísticas, assim como nos indicadores práticos do dia a dia. Mas esse cenário mudou drasticamente, a partir de 2016. De lá para cá há os direitos sociais e trabalhistas, duramente conseguidos pelos trabalhadores em mais de um século de lutas, vêm sendo destruídos em escala industrial, para o quê, utilizam argumentos absolutamente sórdidos e mentirosos.
     Em função de uma grave crise internacional, que tende a se agravar, os ataques aos direitos não irão cessar. Se não houver reação à altura por parte da sociedade, os golpistas irão terminar de desmontar o que sobrou de direitos sociais e trabalhistas. Além disso, não conseguiremos enfrentar este processo de forma isolada, pois desemprego, falta de dinheiro, falta de esperanças, não podem ser vencidos de forma individual. Esses problemas só conseguirão ser combatidos de forma eficaz através da organização coletiva, principalmente a sindical, que atua na esfera econômica, que é a determinante.
     Sem organização dos trabalhadores através de sindicatos, não haveria regulamentação da jornada de trabalho, salário mínimo, seguro desemprego, sistema público de saúde e demais conquistas sociais, obtidas à duríssimas penas ao longo da história mundial do trabalho. Os que perpetraram o golpe entendem isso perfeitamente, razão pela qual estão bombardeando ações que visam destruir as entidades sindicais. Como há uma crise inédita na economia internacional, na impossibilidade de manter os direitos dos trabalhadores, querem demolir os sindicatos. Mas a organização, incluída a sindical, é a melhor ferramenta dos trabalhadores brasileiros contra o governo protofascista, contra a pilhagem do pais, contra a destruição dos direitos trabalhistas e sociais.

                                                                                                 *Economista. 21.10.19


[1] Os dados sobre o mercado de trabalho trazidos pelo artigo, cuja fonte é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-T IBGE), foram sistematizados pela colega Tamara Siemann Lopez.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Liquidação da indústria e recolonização do Brasil


*José Álvaro de Lima Cardoso
      Enquanto nuvens carregadas se formam no horizonte, ameaçando uma tempestade financeira que pode ser mais grave do que a de 2008, o Brasil amarga uma crise gravíssima, com um golpe em pleno andamento, e o pior governo já registrado na história do país. Todas as medidas encaminhadas pelo governo aumentam a exposição do Brasil aos choques que ameaçam a economia mundial, previstos por especialistas em economia mundial. Dezenas de medidas que acabaram (ou reduziram), com direitos sociais e trabalhistas, entregando as estatais para os abutres, volta da fome, todo esse conjunto, fragiliza ainda mais o Brasil perante eventuais choques internacionais da economia.
     O Brasil, depois de muitas décadas no grupo dos dez maiores países industriais do mundo, corre o risco de perder essa condição, segundo avaliação do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, IEDI. Entre os subdesenvolvidos o Brasil há muitos anos ostenta a condição de ser o país mais industrializado. Mas o golpe de 2016, foi desferido contra todos os interesses nacionais, inclusive contra o direito fundamental do país dispor de uma indústria nacional forte. O Brasil ainda não recuperou o patamar industrial que tinha antes da recessão de 2015/2016. A indústria, que vem perdendo espaço desde a década de 1980, tem atualmente peso de 11% na composição do PIB, percentual que deverá recuar em 2019. O país atualmente tem um dos piores desempenhos de crescimento na indústria em toda América Latina, região que já vem crescendo menos que a média mundial. .
     Não há como a indústria crescer num quadro de extraordinário decrescimento econômico, que combina um violento ataque ao mundo do trabalho, com a deterioração rápida de todos os indicadores de distribuição de renda. Se o índice de Gini[1] aumenta, se o produto interno cai e o PIB per capita recua em média 1,5% ao ano desde 2014, é impossível a indústria crescer. O mercado consumidor interno, por sua vez, se restringe continuamente, pois, desde 2014 a taxa de pobreza cresce ao ritmo de 10,4% ao ano e a taxa de desemprego aumenta 20,1% ao ano, na média do período 2015/2019. A saída pela via das exportações, por outro lado, é dificultada porque a conjuntura mundial também é de desaceleração.
     Dada a importância da indústria para o desenvolvimento nacional e a complexidade do tema, o país deveria ter estratégias de longo prazo, envolvendo todos os segmentos importantes da sociedade, para que a indústria recuperasse dinamismo e importância na produção de riqueza. Vale listar alguns excelentes motivos para a defesa do setor industrial do país:
1º) Não há registro na história do país que tenha chegado ao desenvolvimento econômico e social, sem uma generalizada industrialização e um forte e ativo Estado Nacional. Mesmo economias que utilizaram mais as exportações de produtos primários para elevar a sua renda per capita (como Austrália e Canadá), antes atravessaram períodos de elevada diversificação industrial, elemento essencial das suas estratégias de desenvolvimento;
2º) Existe uma relação empírica entre o grau de industrialização e a renda per capita, tanto nos países ricos, quanto nos subdesenvolvidos;
3º) Há uma associação estreita entre o crescimento do PIB e o crescimento da indústria manufatureira. A dinâmica da economia brasileira nos últimos anos, mostra o fenômeno: o PIB apresentou queda, em boa parte, porque a indústria de transformação recuou drasticamente;
4º) A produtividade é mais dinâmica no setor industrial do que nos demais setores da economia, é o setor industrial que puxa o crescimento de produtividade da economia;
5º) O avanço tecnológico que se concentra no setor manufatureiro tende a se difundir para outros setores econômicos, como o de serviços ou mesmo a agricultura. Os bens com maior valor adicionado produzidos pela indústria incorporam e disseminam maior progresso técnico para o restante da economia.
     Nos países desenvolvidos, que em alguns casos se desindustrializaram, a indústria nacional já cumpriu o seu papel no desenvolvimento econômico, colocando a renda per capita da população em elevado patamar. Ao se desindustrializar, o Brasil está perdendo a sua maior conquista econômica do século XX. Entre 1930 e 1980, a economia brasileira cresceu a elevadas taxas (6,8%, entre 1932-1980) baseado no chamado “processo de substituição de importações”, com fortes incentivos estatais à industrialização através das políticas cambial, tarifária e fiscal.
     Caberia neste momento um vigoroso projeto nacional, que possibilitasse a retomada da indústria do país. Ou seja, seria fundamental realizar exatamente o oposto do que está fazendo o governo de Bolsonaro, que está destruindo as ferramentas de execução de política econômica. O conjunto de medidas encaminhadas ou anunciadas pelo governo tendem a debilitar ainda mais a indústria. Venda de estatais estratégicas sem política de valorização dos ativos, entrega do pré-sal e de outros recursos naturais, achatamento do mercado consumidor interno via arrocho salarial, regressão em décadas na regulamentação do trabalho, esvaziamento do BRICS, fragilização do Mercosul, tudo isso enfraquece ou dificulta muito a possibilidade de crescimento de uma indústria robusta no país. Mas não devemos pecar pela ingenuidade. Dado o conjunto da obra não é difícil concluir que a destruição da indústria e a transformação do Brasil num fornecedor de commodities baratas para os países centrais, não são efeitos colaterais, ou “erros”, da política do golpe, e sim partes constitutivas de um projeto de recolonização do Brasil.                                                                                                         
                                                                                                              *Economista
                                                                                                                                     08.10



[1] Instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou município. Quanto menor é o valor numérico do coeficiente de Gini, menos desigual é um país ou localidade.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Funcionalidades primordiais da crise econômica


                                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso   
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague (verso da música Deus lhe Pague, de Chico Buarque)

      A PEC 6/2019, aprovada em primeiro turno no Senado na terça-feira, na prática uma ação para desmontar a previdência social, significa antes de tudo, “negócios”. A Seguridade Social no Brasil movimenta R$ 740 bilhões todo ano. Os bancos não apoiaram o golpe por acaso, estão de olho nesse filão de oportunidades. O desmonte das estruturas públicas de atendimento a população (no caso da seguridade, uma espécie de espinha dorsal da estrutura social brasileira) está sendo realizado num momento em que o país constata uma explosão da desigualdade de renda, jamais vista.
     Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado uma deterioração tão rápida dos indicadores. Sobre o assunto, vale a leitura do artigo do economista Márcio Pochmann (Brasil tem maior explosão da desigualdade desde 1960) que revela que a combinação, depois do golpe de 2016, de decréscimo econômico, com a desestruturação do mundo do trabalho, tem levado a uma piora inédita de todos os indicadores. O índice de Gini[1] saltou de 0,49, em 2014, para 0,63, em 2019 e nesse período a economia decresceu 0,8% anualmente e o PIB per capita caiu em média de 1,5% ao ano. No mesmo período a taxa de pobreza cresceu ao ritmo de 10,4% ao ano, enquanto a taxa de desemprego aumentou 20,1% ao ano, na média dos anos de 2015 a 2019. A evolução dos dados, fato impressionante, nos dá uma pista (mas apenas uma pista) do sofrimento que os trabalhadores mais pobres têm passado nos últimos anos.  
     Uma proposta de política para a Previdência Social define que tipo de sociedade queremos edificar. Não se trata só da concessão de um benefício, mas de um “projeto de sociedade”. Sistemas de seguridade social são completamente incompatíveis com a hiper exploração dos trabalhadores.        O sistema de Seguridade Social brasileiro foi obtido numa outra correlação de forças, no interior da qual os trabalhadores conseguiram impor essa conquista, indiscutivelmente importante. Tal correlação já não existe mais, a partir principalmente do golpe e da crise econômica atual. Os trabalhadores se encontram numa conjuntura de enorme resistência. Por isso o inimigo trabalha para desmontar o sistema, e demais direitos, com muito apetite.
     A PEC da previdência não é algo isolado, vem na esteira de processo de destruição das estruturas públicas desde o golpe de Estado. A seguridade social tem valor estratégico no Brasil. É o principal instrumento que os brasileiros dispõem para enfrentar as situações de velhice, doença, desemprego, invalidez, etc. Os princípios definidos na Constituição permitiram construir nos últimos 30 anos políticas públicas que, pelo menos, foram capazes de promover alguns níveis de inclusão, permitindo que setores significativos da população escapassem da miséria e da fome.
     Quando não há justiça e boas intenções nas ações públicas, o que pode prevalecer é a mentira. Um grupo de pesquisadores da Unicamp publicou um estudo inédito sobre os dados apresentados pelo governo para justificar a a contrarreforma intitulado: “A falsificação nas contas oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência Social”. O estudo aponta que os cálculos inflam o custo fiscal das aposentadorias atuais para justificar a reforma e exageram a economia fiscal e o impacto positivo da Nova Previdência sobre a desigualdade. O estudo mostra cinco principais mentiras, sempre sobre aspectos centrais da argumentação governista para desmontar o sistema atual de previdência. Não se trata de visões diferentes sobre temas cruciais relacionados com a previdência. São manipulações, dados falsos, informações propositalmente erradas. Dado o processo atual que vivemos, alguém poderia se surpreender com a constatação do estudo?
     Desenhando o cenário de uma “tempestade perfeita” a aprovação da PEC coincide com o risco de grave crise financeira internacional, inclusive com risco de choques de oferta, como tem sido apontado por alguns economistas. Choques ligados principalmente às disputas comerciais, monetária, cambiais e militares entre Estados Unidos e China. Diferentemente da crise de 2009, desta vez o Brasil será pego totalmente no contrapé, com o pior governo da história.  
      Apesar da crise do golpe e da Lava Jato, ser a outra face da moeda do programa do Paulo Guedes, os golpistas vêm tentando separar essas duas questões. Em face das denúncias permanentes da Vaza Jato (e de outras fontes), ninguém dá mais um tostão furado por Sérgio Moro e pela Lava Jato. Mas o governo conseguiu passar a destruição da previdência esta semana, em primeiro turno, no Senado Federal e tem encaminhado um conjunto de ataques contra direitos, conquistas sociais e soberania nacional. Mas a segregação entre o governo e a Lava Jato é uma manobra difícil de fazer porque a crise da Lava Jato significa a crise do governo Bolsonaro, na medida em que este é fruto da primeira.
    O golpe e a operação Lava Jato tiveram como resultado o governo Bolsonaro, concretamente. Esse fato, em meio a uma brutal crise econômica e social, imprime ao cenário um enorme potencial de explosão. É importante considerar que a PEC que foi aprovada, assim como o conjunto dos ataques à civilização tem como objetivo jogar o ônus da crise nas costas dos trabalhadores. Desde que as crises se tornaram cíclicas e inevitáveis, no sistema capitalista, sabe-se que elas têm a funcionalidade de destruir direitos e fazer a classe trabalhadora baixar a cabeça.
                                                                                                           *Economista.
                                                                                                                                           03.10.19


[1] Instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou município. Quanto menor é o valor numérico do coeficiente de Gini, menos desigual é um país ou localidade.