terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A inconfundível “fala suave” dos EUA na política mundial

 José Álvaro de Lima Cardoso

                                                Dois dos lugares mais “quentes” do mundo, neste momento, são a Ilha de Formosa (Taiwan) e a Ucrânia, que colocam os EUA em posição de conflito direto com os seus dois maiores inimigos (China e Rússia). No dia 17 de dezembro a Rússia divulgou um documento preliminar, do que seria um acordo que pretende firmar com EUA para for fim à crise da Ucrânia. Basicamente quer que os EUA se comprometam a “impedir uma maior expansão para o leste da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a negar a adesão à aliança aos estados da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”. Para cumprir o acordo, a Otan teria que sair da Estônia, Letônia e Lituânia. Pelo documento apresentado por Putin, seria também vetada a possível entrada da Ucrânia na Otan. Além disso, a Rússia também solicita a devolução, aos respectivos territórios (Rússia e EUA), de armas nucleares já posicionadas em outros países.

     O governo da Ucrânia alega que mais de 90 mil soldados russos já estão concentrados na fronteira e teme uma invasão do país. Mas outras fontes informam que as tropas russas estão a cerca de 150 km da fronteira, e, conforme o governo russo, as operações visam exclusivamente a autodefesa do país. O risco de a situação piorar é muito elevado, dificilmente o entrevero irá se resolver sem confronto. Um dos dois lados teria que ceder, mas essa possibilidade não parece estar colocada. Essa é uma das situações mais críticas na região, nas últimas décadas, o que deixa todas as possibilidades de desfecho, em aberto.

      A crise mostra também que o governo de Jon Biden é uma grande ameaça para a conjuntura internacional, trazendo permanentemente o risco de guerra, em várias partes do mundo. Desde as primeiras entrevistas de Biden, já na condição de presidente, ficava clara essa tendência da política de Biden acirrar as relações entre as potências. Vale lembrar que o presidente dos Estados Unidos, em março deste ano, utilizou uma entrevista ao canal ABC News, dos EUA, para chamar Putin de assassino. Provocado pelo apresentador, Biden respondeu afirmativamente à indagação de que Putin seria um assassino. A alinha adotada por Biden nessa e em outras manifestações, já indicavam o tom que teria a diplomacia norte-americana neste governo. Mas o certo é que, desde as eleições, Biden falava recorrentemente em recuperar terreno em relação à Rússia e China, no referente à vários aspectos, especialmente o geopolítico.

      O agravamento da situação política na Ucrânia decorre principalmente do comportamento agressivo dos países imperialistas, especialmente dos EUA.  Os países imperialistas europeus, como Inglaterra, Alemanha e França, com nuances, no geral apoiam a política do império estadunidense na região. A Ucrânia, que é um país independente, poderia fazer parte da Rússia, como gostam de lembrar os analistas internacionais independentes. Mas é um país que sem dúvida faz parte do cordão de defesa do território russo, e é estratégico para a Rússia de muitos pontos de vista, incluindo o da segurança.

     Apesar dos alertas do governo da Ucrânia, não parece que a Rússia esteja disposta a invadir o país. Putin tem procurado abrir diálogos com os demais países imperialistas, no sentido de evitar um agravamento da crise, que pode descambar para uma guerra na Região, envolvendo as principais potências. Os EUA têm postura bastante agressiva na Ucrânia. Segundo o governo da Rússia, em novembro, as forças armadas dos EUA ensaiaram um ataque nuclear contra a Rússia com bombardeiros vindos de duas direções, no início daquele mês. O governo russo tem acusado os EUA e a Otan (organização do Tratado do Atlântico Norte) em geral, de manter um comportamento provocador, destacando o fornecimento de armas para a Ucrânia, e também de realizar exercício militares perto da fronteira russa, a menos de 20 KM. O governo russo denunciou, inclusive, que os EUA fizeram simulação de um ataque nuclear, no começo de novembro.

     No dia 15 de dezembro, numa iniciativa do enxadrista Vladimir Putin, a Rússia aprovou na Assembleia Geral da ONU, a resolução «Combater a glorificação do Nazismo, Neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada». Foram 130 votos a favor, dois votos contra (EUA e Ucrânia) e 51 abstenções (incluindo a de Portugal, de todos os estados-membros da União Europeia e outros aliados dos EUA, como o Reino Unido). A resolução visa impedir construções de monumentos e memoriais, bem como à celebração de manifestações públicas em nome da glorificação do passado nazi, do movimento nazi e do neonazismo. Moscou denuncia que são frequentes a profanação e demolição de monumentos construídos em memória dos que combateram o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Essas iniciativas tem o apoio, tácito ou explicito, do governo da Ucrânia.

     O governo Biden tem que ficar muito atento para evitar novas derrotas. A que amargou no Afeganistão neste ano, país conhecido como “cemitério dos impérios”, foi simplesmente acachapante. O Talibã impôs uma derrota ao exército mais poderoso do mundo, superior à que os EUA experimentaram em Saigon, há quase meio século atrás. Apesar das tentativas de disfarçar a gravidade do acontecimento, os EUA saíram escorraçados do Afeganistão, por um grupo de combatentes inferiorizados militarmente, tecnicamente e financeiramente. A derrota dos EUA para o exército Talibã, que dispunha de armamentos infinitamente inferiores aos dos EUA, só tem uma explicação: a população apoiou a guerrilha.

    Com Biden, os norte-americanos deverão promover uma série de conflitos militares no mundo, “por procuração” com outros grupos, tropas irregulares como fizeram na Síria e em outros países. O objetivo é estimular a oposição interna para depois, apoiado pela OTAN, partir para agressões militares. Provocação à Rússia, China, Venezuela e Nicarágua, é esse o ambiente que deve prevalecer nos próximos anos. Joe Biden foi o candidato da máquina de guerra norte-americana: Pentágono, falcões, CIA e demais serviços de espionagem, forças armadas, grande capital imperialista, etc. Ou seja, a fina flor da política imperialista apoiou Biden. Trump presidente, comparado com Biden, foi um “estranho no ninho”, acusado, inclusive, de aproximação com a Rússia. 

          O padrão de vida conquistados pelos norte-americanos está relacionado, em parte, à sua ação imperialista no mundo todo. Então, ao mesmo tempo em que eles tem que se preocupar com a disputa geopolítica com a Rússia, estão de olho, por exemplo, no tabuleiro político latino americano. Não é nada específico contra a Rússia ou China. É que atuam como um Império que são, e aqueles são seus principais rivais. Se quisermos entender a natureza da “democracia” nos países imperialistas, precisamos saber que o orçamento militar dos EUA para o ano que vem, de US$ 768 bilhões, é superior aos orçamentos militares somados dos 10 países seguintes com os maiores orçamentos.

    Os Estados Unidos, além de suas frotas de porta aviões, navios e submarinos nucleares que cruzam os mares de todo o mundo, possuem mais de 700 bases militares terrestres fora de seu território nacional nos mais diversos países. Eles conseguiram essas bases através de tratados e do peso da economia norte-americana, do imperialismo norte-americano. Russos e os chineses não têm esse poderio. Uma das razões dos EUA terem encaminhado o golpe no Brasil foi a aproximação com a Rússia e a China através dos BRICS. Em 2015, antes do impeachment, o Brasil tinha assinado com a China 35 grandes projetos de infra-estrutura no país, incluindo a Ferrovia Transocenianica, ligando o Atlântico ao Pacífico, ligando o Brasil (RJ) à Lima, no Peru.

    A democracia norte-americana funciona segundo aquele princípio sintetizado por Roosevelt: “Fale suavemente e carregue um porrete grande” (Theodore Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, 1901-1909). A situação na América do Sul, por exemplo, é muito frágil porque não tem nenhuma potência com capacidade nuclear. Por outro lado, nenhum país tem uma aliança estratégica do ponto de vista militar, com Rússia ou China. Tudo isso torna a situação do subcontinente extremamente vulnerável. 

   Um sintoma de que a política do “grande porrete” funciona nas relações internacionais, foi o quase sepulcral silencio da China e da Rússia, em relação ao golpe no Brasil, assim como nos demais países da América do Sul. A China perdeu uma porção de negócios na América Latina toda, por causa dos golpes, mas não se manifestou mais fortemente.  Os norte-americanos querem obrigar Rússia e a China a recuarem das posições geopolíticas que eles adquiriram no último período. Eles vão procurar fazer com que os russos e os chineses gradativamente cedam terreno, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista econômico. Essa postura tende a acirrar muito as relações entre as potências, no próximo período.

 

                                                                                             21.12.21.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

A Petrobrás e o poder da “concorrência”

 

*José Álvaro de Lima Cardoso

      Recentemente o ministro da economia, Paulo Guedes, falou que o Brasil teria que vender rapidamente a Petrobrás, porque daqui a 30 anos ela não valerá mais nada. Como já observamos em outro texto, ele deveria alertar do problema os “desinformados e ingênuos” banqueiros (tendo à cabeça os EUA) que deram um golpe arriscadíssimo, e de graves consequências no Brasil, com o objetivo econômico principal de roubar o petróleo e outras riquezas fundamentais. Cabe saber que governo, em sã consciência, ou que não fosse resultado de um processo sórdido, entregaria a preço de banana, um patrimônio que gerou R$ 74 bilhões de lucro líquido apenas nos 2º e 3º trimestres de 2021 e que neste ano fará a maior distribuição de dividendos para os seus acionistas na história da empresa.

     Muita gente questiona como os “capitalistas nacionais” apoiaram o golpe de 2016 e a entrega da Petrobrás para o sistema financeiro internacional. Afinal de contas a Companhia é fundamental para as empresas nacionais do ponto de vista da tecnologia, fornecimento de matérias primas, atração de investimentos e garantia de energia barata (sem a qual não há desenvolvimento). Mas, aqui é necessário compreender que alguns setores da burguesia brasileira são estreitamente associados à burguesia norte-americana, especialmente ao capital financeiro internacional. Eles estão longe de serem capitalistas nacionais, com interesses próprios, distintos do imperialismo. Por isso atuam sempre em consonância com os interesses imperialistas. Esse processo ficou muito evidente em 2016, quando setores do empresariado, que se beneficiaram diretamente com as políticas de crescimento e de aumento do mercado consumidor interno promovidas pelos governos de esquerda, aderiram à galope ao processo golpista que vinha sendo engendrado, com a mal dissimulada coordenação dos Estados Unidos.

     Bolsonaro é fruto direto do golpe de 2016 e da fraude eleitoral de 2018. Para o imperialismo (e portanto para a burguesia brasileira), ele é um excelente presidente, porque está cumprindo todo o programa de guerra contra a população. Como disse o banqueiro André Esteves, do BTG, no vídeo vazado há uns dias: “se Bolsonaro fechar a boca ele tem grandes chances de vencer as eleições”. Claro, porque caso não surja uma terceira via ele será o candidato da burguesia. Afinal, ele tem uma “ótima política” de liquidação de direitos, com a vantagem de propor recorrentemente em privatizar a Petrobrás (claro, sempre como se fossem falas casuais).

     Neste debate da Petrobrás e da questão nacional, é fundamental compreender que o capital imperialista não se impõe num país predominantemente por meios econômicos. Não é que as empresas multinacionais seriam extremamente eficientes, muito produtivas, e, por mecanismos de mercado, engoliriam as empresas nacionais. Esse fator acontece também, mas está longe de ser predominante, além de ser precedido de mecanismos extra-mercado. O imperialismo atua predominantemente através de meios extra econômicos, ou seja, atua através da sua força política, econômica e bélica. É desta forma que consegue manter sob controle, em grande medida, a economia dos países em que atua.

     O golpe de Estado no Brasil (como no subcontinente latinoamericano) é prova cabal disso. O imperialismo, disposto a interromper o crescimento da esquerda no país (mesmo sendo esta muito moderada e negociadora) mobilizou, possivelmente, bilhões de dólares para corromper dirigentes, obter informações, comprar meios de comunicação, pagar espiões, para dar o golpe. Pensem no custo financeiro, logístico e político de uma operação dessas. Mas técnicas de guerra híbrida, recrutamento dos traidores internos, compra de autoridades, são ações que nada têm a ver com disputa econômica via concorrência, no sentido clássico da expressão.

     Vamos recordar aqui uma medida diretamente decorrente do golpe, a Medida Provisória 795, mais conhecida como “MP da Shell”, aprovada no final de novembro de 2017, que criou um regime especial de importação de bens a serem usados na exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos, com benefícios fiscais para multinacionais petroleiras. Só essa medida irá representar, em 20 anos, perda de receita para o Brasil na casa de R$ 1 trilhão. Por mais ingênuo que se seja, é possível alguém acreditar que uma medida desse tipo seja boa para o Brasil e que tenha sido encaminhada de boa-fé? Claro que processo proporcionou muito dinheiro para grupos internos que puderam influenciar os resultados. Essa medida nada tem a ver com concorrência econômica, o golpe de Estado num país complexo como o Brasil não tem nada a ver com concorrência. É uma ação de autoria do imperialismo para continuar dominando uma parte fundamental do planeta: território, mercado consumidor, apoio político, bases militares. Um processo sofisticado como esse passa necessariamente por corrupção. Ou as raposas políticas brasileiras ignoram que estão destruindo o Brasil em benefício do país mais imperialista da terra e do imperialismo de conjunto?

      Muita gente pensa que Bolsonaro é um idiota absoluto, mas quando ele fala em privatizar a Petrobrás, o faz de caso pensado. É para agradar os seus senhores e também experimentar como a população reage. Se não houver sinais de reação ao risco de privatizar a Petrobrás eles irão fazer. O capital internacional usa seu dinheiro e influência para definir os rumos, ou seja, dominar a política nacional. É assim que funciona o capital imperialista. Não é que ele domine a situação porque sua tecnologia e eficiência sejam superiores, ou porque dispõe da melhor tecnologia e grande capacidade de gestão de empresas. A predominância do imperialismo é um fenômeno essencialmente político e militar. Para preservar seu poderio, se precisar eles destroem um país, como já fizeram com vários. 

     Os Estados Unidos pressionaram o Brasil para banir a chinesa Huawei do processo de implantação do 5G no Brasil. Recentemente, em agosto, veio uma delegação americana que se reuniu com Bolsonaro e também com representantes da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), responsável pelo leilão da tecnologia, e também com empresas envolvidas no desenvolvimento das futuras redes de telecomunicações. Quando o governo norte-americano vem ao Brasil e discute com o bolsonaro que o governo deve rejeitar a tecnologia chinesa no 5G, essa é uma ação que nada tem a ver com concorrência econômica. Trata-se da maior potência béclica da terra, pressionando um governo servil e advindo de um golpe, em benefício de suas empresas nacionais. Essa é a “concorrência” vigente na etapa atual de desenvolvimento do sistema capitalista. 

                                                                                                                                               *Economista, 10.11.21

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Inflação de alimentos e taxa de exploração no Brasil

 

*José Álvaro de Lima Cardoso         

        Pela mais recente pesquisa do DIEESE, sobre a evolução dos preços da Cesta Básica, o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ R$ 5.657,66, valor que corresponde a 5,14 vezes o piso nacional vigente, de R$ 1.100,00. O cálculo é feito levando em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças. O problema fundamental da inflação no Brasil (como acontece nos países de capitalismo atrasado, em geral) é que a taxa de exploração é muito elevada, os salários são muito baixos. Qualquer elevação mais significativa da inflação coloca uma boa parte da classe trabalhadora no primeiro patamar da fome. E a elevação inflacionária atual é forte e concentrada em alimentos, o que compromete diretamente a renda da maioria da população. 

      Os preços dos produtos básicos (comida, água, energia elétrica, tarifas de transporte) estão aumentando num momento em que a classe trabalhadora brasileira atravessa o seu pior ciclo de empobrecimento da história. Esse ciclo foi causado pelo golpe de 2016, que veio para isso mesmo. O golpe foi operado por “necessidade”, ou seja, a profundidade da crise requer maior transferência de riqueza da periferia para o centro, o que significa a necessidade de destruição de direitos, além de outras ações, como a entrega da Eletrobrás. Neste momento de grande crise mundial, não é mais possível manter governos nacionalistas e sociais-democratas na periferia capitalista, sem que entrem em rota de colisão com os interesses do imperialismo.

     Por isso derrubaram governos em toda a América Latina. Por essa razão os governos que resultaram de golpes desfizeram rapidamente as escassas políticas sociais ou distributivas que existiam. Michel Temer, por exemplo, mal assumiu com o golpe, tratou de liquidar a Lei de Partilha, que retinha, em maior grau, a renda petroleira no Brasil. O exemplo do petróleo no Brasil ilustra com riqueza o que é ser um trabalhador de um país dominado pelo imperialismo. O país dispõe de uma das maiores reservas de petróleo no mundo, e é um grande produtor de petróleo. Ao mesmo tempo estão vendendo as refinarias, para tornar o país apenas um exportador de óleo cru e depender cada vez mais de importações de derivados de petróleo, principalmente dos EUA. E quantidades crescentes da população não têm o que comer. Quando a cotação do barril de petróleo aumenta internacionalmente, quem ganha não é povo pobre e negro brasileiro, e sim os investidores da Bovespa e da Bolsa de Nova York. 

     O fato é que com os níveis salariais do Brasil, mesmo com inflação zero, o trabalhador tem a sensação de que ela é muito elevada. É que o custo de vida é muito alto para os salários vigentes, mesmo que ele não esteja aumentando (ou seja, mesmo que a inflação fosse zero). Muitas vezes os trabalhadores reclamam da inflação, mesmo com ela estando em nível muito baixo. Na verdade, a reclamação é direcionada para os baixos salários. Se o trabalhador recebe o salário mínimo para o sustento de duas ou três pessoas e uma cesta básica para um adulto custa R$ 650,00 ou mais, a conta nunca irá fechar. Na realidade, essa é uma confusão entre inflação e salário baixo, que são temas correlacionados, porém distintos.

     Se a família sobrevive com um salário mínimo (e no Brasil são muito milhões de famílias nessa situação), a inflação pode ser zero que, mesmo assim, irá faltar dinheiro para suprir as necessidades básicas. A inflação atual, causada em boa parte pelo aumento de preços dos alimentos, impacta frontalmente o pobre. Quem sobrevive com um salário mínimo no Brasil (no total, 27,3 milhões de brasileiros recebem até um salário mínimo, cerca de um terço do total da força de trabalho do país, segundo dados da Pnad-IBGE), gasta praticamente toda a sua renda para comprar comida. Dependendo do número de dependentes da família, não consegue pagar nem mesmo luz e água.  

     Nesse contexto, quando há uma pressão dos alimentos a renda do pobre é impactada direta e mais fortemente. Em menor escala a classe média baixa sente também. Já as famílias ricas nem ao menos percebem a inflação, especialmente se esta for causada por alimentos. O rico, pelo contrário, aproveita a alta de preços para ganhar dinheiro. Se o preço da carne no varejo sobe muito acima da inflação em um ano, como constatou o DIEESE na sua pesquisa de cesta básica, é evidente que esse aumento beneficia o empresariado. É a hora de proprietários de gado, de grandes atacadistas de alimentos, donos de supermercados, etc., fazerem um lucro extra.

                                                                                             *Economista 25.10.2021.

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Os planos públicos de saúde na linha de tiro

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

    O serviço público de saúde pode ser considerado um divisor de águas em qualquer país, em relação à forma como a população é tratada pela sua classe dominante. O serviço de saúde, depois da segurança alimentar, que está à disposição da população de determinado país, é um termômetro da força de uma população. O acesso à medicina de qualidade, assim como à alimentação, revela como a maioria da população é tratada por quem detém o poder do Dinheiro.

     Para ilustrar, cito uma passagem sobre o sistema de saúde dos EUA, que é considerado uma “porcaria” universal: no documentário Sicko, do documentarista Michael Moore, há uma passagem na qual é relatado um acidente em que o cidadão perde dois dedos numa serra elétrica (médio e anular). A família recolhe os dedos e leva o ferido ao hospital. No local o paciente fica sabendo que a recolocação cirúrgica de um dedo, custará 12.000 dólares e, do outro, 60.000 dólares. O paciente e sua família, sem recursos para custear a cirurgia dos dois dedos, escolhe recolocar o órgão, cujo serviço médico sairá mais barato. Essa passagem ilustra a forma com que o governo dos EUA trata a sua população. Os cartéis da saúde, empresas gigantes que têm grande influência sobre os políticos, fazem o que querem com o povo. No país mais rico da terra, onde sobra tecnologia médica, a maioria da população não tem acesso à serviços decentes e básicos de medicina.

     Algo semelhante ocorre no Brasil. É possível medir o quanto o governo Bolsonaro é inimigo do povo, através da posição que tem em relação à saúde. Bolsonaro e seus ministros da saúde (cada um pior do que o outro), praticaram durante a pandemia uma política literalmente genocida, ou seja, desenvolveram ações para matar os mais fracos (velhos, pessoas com comorbidades, pobres, etc.). Não se trata de uma impressão, em alguns momentos eles praticamente confessaram isso. O relatório da CPI da Covid-19, pelo menos irá documentar para a história esses acontecimentos.   

     Segundo o IBGE existe no país um médico para cada 470 habitantes, mas nas regiões Norte e Nordeste, chega a 1 médico para cada 953 e 750 brasileiros, respectivamente. Conforme dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) há aproximadamente 17 médicos para cada 10 mil habitantes no Brasil, enquanto na Europa esse número chega a 33 (é o dobro).

     Os usuários do sistema público de saúde reclamam do longo tempo de espera para ser atendido no SUS (Sistema Único de Saúde), razão pela qual uma parte deles (aqueles que dispõem de recursos), recorrem ao sistema privado para resolver o seu problema. Dependendo do tipo de serviço que o paciente necessita, de procedimento de maior ou menor complexidade, e dependendo do local onde resida, o tempo de espera pode significar, por exemplo, a sua morte.  Uma das queixas mais recorrentes nas pesquisas sobre saúde no Brasil é a da falta de leitos. Vimos recentemente que, a falta de leitos de UTI, foi um dos sérios problemas no ápice da pandemia de Covid-19. 

     Um outro problema da saúde pública é o sub financiamento do SUS, que se agravou sobremaneira após o golpe de 2016. Desde que a Emenda Constitucional 95, que congelou os recursos da saúde por 20 anos, em termos reais, foi aprovada, em dezembro de 2016, o orçamento para a Saúde tem diminuído cada vez mais. Se em 2019 o governo tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017 (15% da receita corrente líquida de cada ano), a Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142,8 bilhões, e não R$ 122,6 bilhões aplicados. Ou seja, uma redução de R$ 20,19 bilhões nos recursos em saúde, enquanto a população cresce e envelhece.  

     A pandemia apenas evidenciou ainda mais as mazelas da saúde pública, em função da sobrecarga do sistema, que teve que absorver um grande número de pacientes internados graves. Além da superlotação dos hospitais o Brasil padece da falta de insumos hospitalares, desde a dificuldade para adquirir simples luvas de procedimentos, até anestésicos e outros medicamentos utilizados na sedação de pacientes.

       Nesse quadro extremamente difícil, os planos de saúde no Brasil, tanto para as empresas, quanto para a classe trabalhadora, são bastante valorizados. Em regra, em função dos baixos salários, o plano de saúde é o benefício mais importante ofertado pelo empregador, em função da essencialidade do serviço de saúde e também do custo do plano no conjunto de despesas dos trabalhadores. Esta é uma tendência em todos os países onde o serviço público de saúde deixa a desejar (ou seja, na maioria dos países). Ao mesmo tempo, os planos são um dos elementos de competitividade entre as organizações, sendo extremamente valorizados como estratégia de retenção e atração de talentos, influenciando também na motivação e no engajamento dos trabalhadores.

      Em função da prolongada crise econômica brasileira, que vai para o oitavo ano (teremos mais uma década perdida), e da onda de retiradas de direitos, que o golpe de 2016 provocou, alguns planos de saúde públicos, especialmente ligados aos municípios, vêm tentando ou simplesmente acabar com o plano, ou mudar a sua forma de custeio, aumentando dramaticamente o peso para os trabalhadores. Em algumas propostas de prefeituras, o custeio deixaria de ser financiado por um percentual de contribuição sobre cada salário para ser uma mensalidade em função da faixa de idade, o que afetará aqueles que mais precisam: pessoas mais velhas e com os salários inferiores.  

     Algumas prefeituras em Santa Catarina estão propondo a alteração do plano de custeio, passando-se do modelo em que cada trabalhador ou trabalhadora participa com percentual de contribuição em relação ao seu salário para um modelo de mensalidade por faixa etária. Geralmente o financiamento dos planos municipais se dá através de uma contribuição percentual dos salários de cada real ou potencial participante (servidores públicos, comissionados, ACTS, dependentes, pensionistas).

     Essa mudança do custeio do Plano de Saúde, da forma de “contribuição” (como percentual proporcional do salário), para “mensalidade”, que inclusive muda conforma a idade, obviamente penaliza mais os mais velhos e os que ganham menos. É uma evidente regressividade no sistema. Nos sistemas nos quais os beneficiários pagam valores de acordo com a cobertura contratada de serviços e com o salário que ganham, todos contribuem com um mesmo percentual dos salários, porém, aqueles que ganham mais contribuem com uma massa de valor maior, proporcional ao salário ganho e independentemente da idade que tenha. Esse modelo independe de idade, e pessoas de qualquer idade podem fazer uso dos serviços.

     A possibilidade de poder contar com um plano que barateie os custos com a saúde é extremamente importante para os servidores (as), especialmente para quem recebe os salários menores. O índice oficial de inflação se encontra em torno de 10% nos últimos 12 meses, porém a inflação de alimentos, que tem grande peso no orçamento da maioria dos servidores, se encontra em um patamar muito mais elevado, possivelmente próximo aos 30%.  Para o servidor, planos públicos de saúde são uma alternativa intermediária entre as limitações do SUS, que vem sendo sucateado pelo Governo Federal, e os preços proibitivos da saúde privada, que são estabelecidos, na prática, pelos grandes monopólios do setor, que buscam elevados lucros.

     Com os salários baixos praticados no Brasil qualquer elevação mais significativa da inflação coloca uma boa parte da classe trabalhadora em dificuldades. E a elevação inflacionária atual não é qualquer uma, ela é forte e concentrada em alimentos, o que compromete diretamente a renda da maioria da população. A comparação do custo dos planos públicos com o custo dos privados, como alguns planos públicos têm feito, está errada. Não podemos achar que estará satisfatório se a mensalidade do plano público ficar mais barata que o plano privado. Obviamente esta não é a comparação correta. Não tem sentido comparar custo de planos coletivos com valores de planos individuais, mesmo porque os planos individuais, em regra, serão mais altos.

     A troca de parâmetro de cobrança, de percentual do salário para uma mensalidade fixa, acaba com um princípio fundamental de equidade, que é a prática de percentuais iguais para salários diferentes, de forma a garantir que quem tiver salários maiores, colabora mais com o financiamento do Plano, ao invés de um valor fixo de contribuição, indiscriminada e independentemente do salário recebido. É por analogia a esse princípio que a previdência social dispõe de um Teto Previdenciário. Pelo princípio do Teto, independentemente do salário dos contribuintes, o valor do benefício pago pelo INSS irá oscilar dentro de uma faixa mais estreita. O valor oscila no máximo 5,8 (diferença entre o salário mínimo e o Teto Previdenciário, atualmente de R$ R$ 6.433,57).

     É fundamental adotar medidas que enfrentem o problema do aumento da taxa de sinistralidade, em qualquer plano. Mas as medidas devem ser estudadas com calma e dividir o ônus entre os vários atores que sustentam o plano. A necessidade de fazer ajustes num determinado plano de saúde não significa que apenas o servidor deva arcar com o ônus do ajuste.

                                                                                                    *Economista, 18.10.2021

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Pandora Papers: infâmia e desmanche do Brasil

 

                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

     A América Latina foi extremamente impactada pelas revelações do Pandora Papers. Foram denunciados dois presidentes da República (Sebastian Pinheira do Chile e Guillermo Lasso do Equador, ambos de extrema direita) e pegos com a boca na botija, também, os dois principais homens da economia no Brasil. De acordo com levantamento, o ministro da Economia Paulo Guedes mantém empresas offshores em refúgios fiscais mesmo após ter ingressado no governo Bolsonaro. O mesmo se aplica ao presidente do Banco Central Roberto Campos Neto, que manteve 15 offshores, por 15 meses após assumir o seu cargo, o que choca com as normas da Lei de Conflito de Interesses e do próprio serviço público.

     Os valores de Paulo Guedes em offshore em um refúgio fiscal alcançam US$ 9,55 milhões, mais de R$ 50 milhões. A offshore de Paulo Guedes se localiza nas Ilhas Virgens Britânicas, um refúgio fiscal no Caribe, o que é proibido pela lei por conta do cargo público que ocupa. No Brasil, é permitido ter offshores, desde que declaradas à Receita Federal e, quando seus ativos ultrapassam 1 milhão de dólares, ao Banco Central.

     É possível que os serviços de espionagem norte-americano, estejam por detrás da megaoperação, que envolve 600 jornalistas. Joe Biden, no começo do seu governo declarou que uma das suas prioridades seria enfrentar o problema da corrupção. Realizou no início do governo, inclusive, uma turnê pela América Latina, acompanhado da vice-presidente. No continente o problema da corrupção é estrutural, tanto entre os países atrasados, quanto entre os países desenvolvidos também. As denúncias da operação podem ser um ajuste de contas entre as facções do imperialismo. Nunca se sabe direito porque há muitas lutas internas entre as forças imperialistas. Às vezes algum setor que é muito conservador coloca um obstáculo ao desenvolvimento de uma política imperialista, por isso tentam remover.

     Essas denúncias, que nada têm de ingênuas e são muito seletivas, têm implicações muito fortes na América Latina porque na lista estão o presidente do Chile, do Equador e exatamente as duas principais autoridades econômicas do Brasil, Paulo Guedes e Roberto Campos. Esses dois são peças fundamentais do esquema e da própria terceira via. Não são homens do Bolsonaro, compõem o time dos banqueiros, dos grandes capitalistas que mandam no governo. É possível que seus nomes não estivessem previstos, apareceram na lista por algum acidente de percurso. Uma eventual substituição de Paulo Guedes no governo não garante a manutenção da política de guerra contra a população, que é o que interessa para os que administram o golpe no Brasil. Paulo Guedes está ali para implementar a política neoliberal, se ele sai, esta política pode ficar completamente fora de controle.

     Paulo Guedes escapou dos esclarecimentos que deveria prestar à Câmara dos Deputados, no dia 13, através de oportuna viagem para os Estados Unidos na segunda-feira (11). Foi com ele também o outro implicado, Roberto Campos Neto. É natural que procurem fugir do depoimento, pois terão que explicar o inexplicável. Isso fica evidente pelas esfarrapadas justificativas que os advogados de Guedes deram à PGR (no dia 06.10). O importante não é se ele gerenciou ou não a empresa, se fez saques ou aportes após virar ministro. O grave é ter mantido este tipo de investimentos, que foram muito afetado por medidas por ele tomadas.  

     Paulo Guedes e Roberto Campos são peças fundamentais do esquema da própria terceira via. Os grandes capitalistas sustentam Bolsonaro porque tem lá no governo o Paulo Guedes que está fazendo o serviço (por exemplo, as privatizações da Eletrobrás e dos Correios). O principal responsável pela política que está matando a população de fome, que empurra goela abaixo a política neoliberal mais severa possível, que acabou com a política de salário mínimo, tem uma fortuna em refúgio fiscal, visando esconder o dinheiro, se proteger de crises e para ganhar mais dinheiro. O ministro, que mantém R$ 51 milhões escondidos num refúgio fiscal é o mesmo que está fazendo a reforma administrativa, que irá destruir os serviços públicos e os salários do funcionalismo. A reforma administrativa, que é um ataque daqueles que tomaram o poder à força em 2016, e que fraudaram as eleições de 2018, contra o povo brasileiro, para destruir os serviços públicos tal como hoje os conhecemos.

      As denúncias do Pandora Papers, que revela o vergonhoso envolvimento dos dois principais homens da economia brasileira, com investimentos ilegais em refúgios fiscais, deve indignar, mas não surpreender ninguém. Esses cidadãos são fruto de duas grandes ilegalidades, que foram o golpe de 2016 e a fraude eleitoral de 2018. Manter uma fortuna em refúgios fiscais, para esconder dinheiro e aumentar margens de lucro, é fichinha perto do que vem sendo feito na política econômica desde então. Os investimentos, são praticamente um aquecimento para, por exemplo, vender a Eletrobrás, a mais importante geradora de energia da América Latina, a preços de banana.

     O mesmo vale para o retorno da fome no Brasil, que é resultado de um processo político. As políticas decorrentes do golpe de 2016 estão na raiz das causas para o agravamento da fome. Aprovaram a Emenda 95, do teto de gastos, que congelou todos os gastos primários do governo. As políticas sociais e programas de transferência de renda foram sendo esvaziados. Equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos, foram fechados de forma criminosa. Ao mesmo tempo o combate aos direitos dos pobres e dos trabalhadores se dá em todas as frentes e não cessa nunca. Do golpe para cá, com aprofundamento no governo Bolsonaro, são centenas (possivelmente mais de mil), ações destruindo direitos e benefícios dos trabalhadores, sempre conquistados em décadas de sangue, suor e lágrimas.

     Nada poderia ser mais grave do que apoiar o golpe de 2016 e todas as suas políticas, que já mataram centenas de milhares de brasileiros. As revelações da operação Pandora Papers sobre Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, apenas evidenciam, de novo, o que move a turma que promoveu/apoiou o golpe de 2016: falta de compromisso com o Brasil, ausência absoluta de patriotismo e subserviência desmedida ao imperialismo. Por isso, todo o desmanche do Brasil que foi realizado desde 2016 teria que ser anulado por um próximo governo democrático. 

                                                                                                 *Economista. 13.10.21

 

 

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Pandora Papers no contexto da rapinagem do Brasil

 

Pandora Papers no contexto da rapinagem do Brasil

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso

    No último domingo (3), o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) divulgou documentos dentro da Pandora Papers, investigação sobre “refúgios fiscais”, realizada pelo citado Consórcio. Esta colaboração jornalística investigou nos últimos meses milhares dessas offshores, abertas principalmente nas Ilhas Virgens Britânicas e cujos documentos foram entregues ao ICIJ por uma fonte anônima há cerca de um ano. A partir da denúncia várias reportagens começaram a ser publicadas por veículos importantes de todo o mundo. No Brasil, participaram da divulgação o jornal Metrópoles, o site Agência Pública, a revista Piauí e o site Poder 360.

     O Pandora Papers é uma megaoperação jornalista, que provavelmente conta com gente muito poderosa por trás. Envolve 600 jornalistas, possuindo um grande número de documentos confidenciais de 14 escritórios de advocacia especializados na abertura de empresas em países como Panamá, Ilhas Virgens Britânicas e Bahamas. As informações dão conta de que são mais de cinco décadas de registros detalhados, uma quantidade absurda de dados, cuja organização e denúncia demanda dinheiro e planejamento.

     Os “refúgios fiscais” (chamados eufemisticamente de “paraísos fiscais”) são países que não tributam a renda ou que a tributam a uma alíquota inferior a 20%. Ou, ainda, nações cuja legislação proteja o sigilo da composição societária das empresas - mais de 60 países e territórios compõem essa lista. Os refúgios fiscais oferecem enormes vantagens a cidadãos de outros países que procuram cargas tributárias reduzidas ou nulas. Com a vantagem de proteger o anonimato do “investidor”.

    Não tem outra razão: os milionários e bilionários colocam seu dinheiro em refúgios fiscais para: 1.esconder o dinheiro; 2. não pagar impostos; 3. para se proteger de medidas governamentais que impliquem em perda de patrimônio. Os refúgios fiscais são mais um dos inúmeros estratagemas utilizados pelos ricos para pagar menos impostos. Coisa que os pobres não conseguem fazer porque os impostos estão embutidos nos preços das mercadorias, não há como escapar deles.

     Com o Pandora Papers ressurgiu a antiga discussão sobre controle e reforma do capitalismo, para evitar tais destinações do dinheiro, ao estilo dos refúgios fiscais. Mas na realidade capitalismo é isso aí: falta de transparência e sonegação fiscal. É uma ideia equivocada achar que apenas os “maus capitalistas”, colocam dinheiro em offshore. Alguns não fazem porque não podem, ou preferem outras formas de esconder e proteger suas fortunas, talvez mais seguras. Uma das características de refúgios fiscais, aliás, é não compartilharem informações com as autoridades de outros países.

     Ter uma offshore não é crime no sistema capitalista, que defende a total liberdade do dono do capital. Se estima que 10% do PIB mundial se encontra investido em empresas offshore, mundo afora. As empresas offshore em regra servem para esconder o verdadeiro proprietário de ativos que podem ser financeiros, ou não, e também podem ter origem “lícita” ou não, para os padrões do sistema capitalista.

     Se estima que a América Latina perca mais de 40 bilhões de dólares em impostos a cada ano através do mecanismo de estruturas offshore. O Brasil com a maior perda anual é o país da região que mais perde impostos anualmente: cerca de 15 bilhões de dólares. O subcontinente latinoamericano, aliás, foi muito impactado pelo Pandora Papers. A investigação traz os nomes de 11 ex-presidentes latino-americanos: os panamenhos Juan Carlos Varela, Ricardo Martinelli e Ernesto Pérez Balladares; os colombianos César Gaviria e Andrés Pastrana; o peruano Pedro Pablo Kuczynski; o hondurenho Porfirio Lobo e o paraguaio Horacio Cartes.

     Estão também nas reportagens dois presidentes da República em plena atividade: Sebastián Pinheira do Chile e Guillermo Lasso do Equador. Foram pegos também os dois principais homens da economia no Brasil. O ministro da Economia, Paulo Guedes, segundo a operação, mantém empresas offshores em refúgios fiscais mesmo após ter ingressado no governo. Da mesma forma o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto, que manteve 15 offshores por 15 meses depois de assumir o cargo.      Apesar da tentativa da grande imprensa de disfarçar ou minimizar o fato, ficou-se sabendo que Paulo Guedes mantém nas Ilhas Virgens, no Caribe, a quantia de US$ 9,55 milhões - mais de R$ 50 milhões.  Mesmo no capitalismo subdesenvolvido brasileiro tudo indica que essa é uma ação ilegal, em função do escancarado conflito de interesses. Por exemplo, a desvalorização mundial, em boa parte fruto da incompetência de Paulo Guedes, tornou o ministro alguns milhões mais rico. Se isso não for ilegal, o que mais pode ser?

     Paulo Guedes e Roberto Campos são peças fundamentais do esquema e da própria terceira via. Não são homens do Bolsonaro, eles são homens dos banqueiros, dos grandes capitalistas. Paulo Guedes administra um super ministério, resultado da fusão de vários setores fundamentais e está no governo para implementar a política neoliberal. Se ele cai, a política do governo, que já é atrapalhada, pode ficar totalmente fora de controle. O caso do Roberto Campos é ainda pior, porque ele é presidente do Banco Central independente, um instrumento diretamente controlado pelos grandes banqueiros.

      As denúncias são gravíssimas e beira o surreal. O principal responsável pela política que está matando a população de fome, que empurra goela abaixo a política neoliberal mais severa possível, que acabou com a política de salário mínimo, tem uma fortuna em refúgio fiscal. Isso para esconder o dinheiro, para se proteger de crises e para ganhar mais dinheiro. Mesmo que isso não fosse totalmente ilegal, seria totalmente indecoroso. Por que que ele está escondendo dinheiro do Fisco, sendo que ele é o chefe maior da receita federal? Ele é o principal homem da economia, o sujeito que faz a economia do governo. Se fosse um governo minimamente sério, este cidadão cairia em questão de horas. É impossível que isso tenha base legal. Mesmo que ele tenha declarado a posse deste dinheiro. Por que há conflitos evidentes de interesses. 

     Esse ministro, que mantém R$ 51 milhões escondidos num refúgio fiscal é o mesmo que está fazendo a reforma administrativa, que irá destruir os serviços públicos e os salários do funcionalismo. Vale lembrar que a reforma administrativa é um ataque daqueles que tomaram o poder à força em 2016, e que fraudaram as eleições de 2018, contra o povo brasileiro, para destruir os serviços públicos tal como hoje os conhecemos. Os servidores públicos terão boa parte de suas rendas confiscadas, num momento em que a classe trabalhadora sofre o processo mais dramático de empobrecimento da história. A PEC não foi feita para corrigir distorção nenhuma e sim destruir os serviços públicos. Por isso que aqueles que recebem salários acima do teto constitucional, permanecem ilesos: procuradores, promotores, juízes, deputados, senadores, consultores legislativos e militares estão fora da PEC nº 32.

     Sem uma grande reação dos trabalhadores, haverá um gigantesco confisco de salários, que irá empobrecer muito os servidores públicos. A reforma administrativa, após destruir o rendimento do funcionalismo público federal, deverá baixar suas medidas para os outros níveis dos trabalhadores públicos, nos estados e municípios. Para uma grande parte deste funcionalismo, a luta pela sobrevivência é parecida com a dos trabalhadores do setor privado, ou seja, o rendimento médio auferido mal cobre as despesas regulares da família. Os trabalhadores dos setores públicos e privados não tem conseguido repor nem mesmo a inflação em suas datas base. E a elevação inflacionária atual não é qualquer uma, ela é forte e concentrada em alimentos, o que compromete diretamente a renda da maioria da população.

     O fato de que as denúncias do Pandora Papers tenham pego com a boca na botija os dois principais homens da economia no Brasil, só ilustrou o que já sabíamos. Este governo, fruto de um golpe e da fraude eleitoral de 2018, é um governo de ricos, à serviço dos muito ricos. E com comando estrangeiro, a partir dos interesses dos EUA. Do ponto de vista econômico e social, a situação é insuportável no Brasil e, como em qualquer situação extrema, é muito difícil fazer previsões de cenários conjunturais.  

                                                                                      *Economista. 08.10.21.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Democracia e miséria não se misturam

 Democracia e miséria não se misturam

                                                                 

     É um equívoco dividir os partidos de direita em “civilizados” e “não civilizados”, ou dizer que uma parte da direita é democrática e a outra não é. Essa divisão pode servir apenas para a demagogia eleitoral, mas ela não faz sentido na disputa política real no Brasil. A tal da burguesia “civilizada” não só apoia toda a destruição do Brasil que Bolsonaro vem promovendo, como defende ainda mais profundamente do que o atual governo, a destruição das condições de vida da população brasileira.

     Um exemplo disso: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32/2020, que trata da reforma administrativa, foi aprovada na última quinta-feira (23) na comissão especial da Câmara dos Deputados. Praticamente todos os partidos da direita tradicional, votaram juntamente com a extrema direita, pela aprovação da PEC, ou seja, contra a população brasileira. O objetivo indisfarçável da PEC é destruir os serviços públicos: vai causar perda de autonomia por parte dos estados e municípios, irá restringir ainda mais o acesso dos cidadãos ao serviço público, e abre possibilidades de ampla terceirização, com tudo que isso representa. Trabalhadores de estatais, da mesma forma, serão prejudicados pelo projeto.

    A redução da estabilidade, o fim da irredutibilidade salarial, a retirada de direitos, e a ampliação da precarização pelo uso de contratos temporários e entidades privadas para prestar serviços públicos, são objetivos evidentes do Projeto. É difícil saber com precisão, mas há estimativas de que a reforma administrativa vai impactar, de saída, quase 2 milhões de servidores públicos federais, reduzindo seus salários e direitos.

     A maioria do povo, ocupado com a própria sobrevivência, quando vê as notícias relativas à Reforma Administrativa, nem compreende direito o que está acontecendo. Mesmo porque, governo e grande mídia, estão mais preocupados em esconder do que revelar os verdadeiros objetivos da PEC. Um aspecto é muito evidente: o significado maior desse ataque contra o funcionalismo é o de ser um ataque dos golpistas de 2016, contra todo o povo trabalhador. Não se trata de uma medida corporativa, nem uma investida apenas contra um segmento dos trabalhadores. É um ataque daqueles que tomaram o poder à força em 2016, e que fraudaram as eleições de 2018, contra o povo brasileiro, para destruir os serviços públicos tal como hoje os conhecemos.

     Os servidores públicos terão boa parte de suas rendas confiscadas, num momento em que a classe trabalhadora sofre o processo mais dramático de empobrecimento da história. Uma parte dos servidores são razoavelmente bem pagos, especialmente os federais. No entanto, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), metade dos funcionários públicos brasileiros ganhava em 2018 até 3 salários mínimos, R$ 3 mil, enquanto apenas 3% ganhavam acima de 20 salários mínimos, R$ 20 mil.  A PEC não foi feita para corrigir distorção nenhuma e sim destruir os serviços públicos. Por isso que aqueles que recebem salários acima do teto constitucional, permanecem ilesos: procuradores, promotores, juízes, deputados, senadores, consultores legislativos e militares estão fora da PEC nº 32.

     Sem uma grande reação dos trabalhadores, haverá um gigantesco confisco de salários, que irá empobrecer muito os servidores públicos. Como mostra o IPEA, 50% ganha até três salários mínimos, que mal dá para sustentar uma família. O arrocho salarial desse setor de classe média, tende a pressionar a escala salarial para baixo e a miséria vai aumentar ainda na última camada da pirâmide social.

     A reforma administrativa, após destruir o rendimento do funcionalismo público federal, deverá baixar suas medidas para os outros níveis dos trabalhadores públicos, nos estados e municípios. Para uma grande parte deste funcionalismo, a luta pela sobrevivência é parecida com a dos trabalhadores do setor privado, ou seja, o rendimento médio auferido mal cobre as despesas regulares da família. Os trabalhadores dos setores públicos e privados não tem conseguido repor nem mesmo a inflação em suas datas base. E a elevação inflacionária atual não é qualquer uma, ela é forte e concentrada em alimentos, o que compromete diretamente a renda da maioria da população. Os preços dos produtos básicos estão aumentando num momento em que a classe trabalhadora brasileira atravessa o seu pior ciclo de empobrecimento da história.

     Democracia e miséria são que nem água e óleo: não se misturam. Para os crescentes segmentos da população que estão passando fome, a palavra democracia é completamente destituída de significado, é um conceito vazio. Portanto não existe a possibilidade de determinado partido, ao mesmo tempo votar a favor do conjunto de políticas que estão levando o país à destruição e o povo para a fome, e ser democrático.

                                                                                               29.09.2021

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Estrutura e ação sindical brasileira no olho do furacão

 

                                                                                        *José Álvaro de Lima Cardoso

    

     Os sindicatos surgem no início do século XIX na Inglaterra como forma de organização de luta e representação dos trabalhadores e com duas motivações principais: 1ª: reação ao modo capitalista de produção; 2ª: necessidade de solidariedade, união e associativismo para enfrentar a exploração do Capital, reivindicar salários decentes e melhores condições de trabalho. As motivações que deram origem aos sindicatos, quando surgiram na Inglaterra, continuam muito atual:  luta contra um regime opressor e solidariedade com os irmãos da classe trabalhadora.

      O surgimento do sindicalismo no Brasil carrega as características de um país cujo capitalismo se desenvolveu de forma tardia e atrasada, no qual predominava o capital agrário, após quase 400 anos de regime de brutal escravidão. A organização de uma estrutura sindical é registrada em 1903, entidade ligada, como seria de se esperar, à agricultura e pecuária. A normatização do trabalho é muito recente no Brasil. Na revolução de 1930, que teve como líder Getúlio Vargas, o Brasil não tinha direitos. O Ministério do trabalho foi criado em (1930), o Trabalho das mulheres foi regulamentado em (1932) e o Salário mínimo foi criado em 1938 (e começou a ser pago em 1940). Os sindicatos surgem, assim, atrelados ao Estado, com o objetivo, dentre outros, de mantê-los sob “rédea curta”. Dentre outras exigências, inclusive, os sindicatos só eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho, o que fornecia do Estado grande poder de controle das entidades. Não havia liberdade e autonomia sindical.

     Na estrutura sindical brasileira, acima dos sindicatos, estão as entidades de grau superior, as federações e as confederações. As federações são entidades sindicais de grau superior organizadas no âmbito Estadual. Assim, pela regulamentação brasileira, não existe federação nacional, ela sempre atuará em âmbito estadual. A federação pode ser instituída, desde que reúna pelo menos cinco sindicatos, que representem um grupo de atividades ou profissões idênticas, similares ou conexas. Essas federações poderão agrupar sindicatos de determinado município ou região a ele filiados. As federações poderão assinar convenções coletivas, acordos coletivos e instaurar dissídios coletivos, quando as categorias de determinadas locais não estiverem organizadas em sindicato, ou seja, quando não houver representação de primeiro grau.

      As confederações são entidades sindicais de grau superior, de âmbito nacional, sendo formadas por ramos de atividades (indústria, comércio, transporte), como, por exemplo, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos. Em geral as confederações coordenam as atividades de entidades de grau inferior (sindicato) e também as de grau superior ao nível dos estados, ou seja, as federações. Em 1976, a Lei 6.386, veio definir as regras sobre as fontes de receitas e outros aspectos sobre o funcionamento da estrutura sindical em seus três níveis.

     Com a Lei 11.648 de 2008, as centrais sindicais são reconhecidas de direito. Algumas delas já tinham o reconhecimento de fato, em função de sua representativa política e sindical. Os trabalhadores sempre tiveram dificuldades de terem reconhecidas suas entidades de classe, especialmente as centrais, que organizam a classe trabalhadora do ponto de vista geral, destacando os aspectos em comum. Até 1985 vigorava uma portaria que impedia a criação das centrais sindicais, com a alegação de que existiria incompatibilidade jurídica no texto constitucional quanto à sua criação.

     Atualmente as centrais sindicais são as maiores unidades representativas na estrutura sindical, estando hierarquicamente acima das confederações, federações e sindicatos. Considera-se central sindical a entidade associativa de direito privado, composta por organizações sindicais de trabalhadores, segundo o parágrafo único do artigo 1˚ da Lei 11.684/08. A central é pessoa jurídica de direito privado, especificamente, de associação civil. Cabe à central a coordenação das grandes lutas das categorias, a representação geral das categorias. As lutas mais específicas, de caráter corporativo, devem ser encaminhadas pela estrutura primária e secundária dos sindicatos. A organização de uma greve geral, por exemplo, é uma atribuição típica e precípua da central sindical.

     Esta representação geral dos trabalhadores não poderia ser realizada por uma confederação, visto que essas organizações operam basicamente sobre uma categoria, enquanto as centrais representam e devem organizar o conjunto da classe trabalhadora. É fundamental que, acima dos interesses corporativos defendidos pelas confederações, esteja a defesa do conjunto da classe trabalhadora realizada pelas centrais. Organizando, inclusive, o conjunto das confederações.

      Assim, a organização sindical brasileira estrutura-se em quatro níveis:

Sindicato: representante direto e primário dos trabalhadores;

Federação: que pode ser formada com a reunião de cinco ou mais sindicatos de uma mesma categoria profissional, desde que representem a maioria dos trabalhadores do setor;

Confederação: fundada com a junção de três ou mais federações representativas. A confederação, de caráter nacional, deve ter sede em Brasília;

Central Sindical – com caráter de representação geral e intercategorial.

     Cada uma dessas instâncias tem funções diferentes, que devem ou deveriam se complementar. Mas atualmente as dificuldades conjunturais têm colocado em xeque a estrutura sindical brasileira e a própria sobrevivência das entidades sindicais. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da PNAD Contínua/IBGE, divulgados no dia 26 de agosto. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% ou 10,6 milhões de profissionais estavam associados a sindicatos. Em 2012, 16,1% da população ocupada era sindicalizada ou 14,4 milhões de profissionais.

     Na condição de primeira e mais importante linha de defesa do trabalhador, os sindicatos se movem, historicamente, sob violento fogo cerrado. Além dos ataques patronais, há inúmeras outras dificuldades no trabalho de sindicalização e de arregimentação de pessoas para o trabalho coletivo. No mundo todo há uma mobilização dos trabalhadores que pode ser considerada de baixa intensidade, que impacta bastante o trabalho de sindicalização e ação geral do sindicato. Essa é uma situação que começa a mudar, conforme podemos observar pela movimentação na América do Sul (Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Brasil, etc.). Mas, por enquanto os sindicatos estão sendo obrigados a “remar contra a correnteza”.

     A sistemática desqualificação dos sindicatos feita através da mídia comercial, empresas, instituições em geral torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. É complicado o trabalhador comum entender que a existência do salário mínimo é uma conquista fundamental, numa sociedade na qual quase 60% da população vive com renda domiciliar per capita igual ou inferior ao valor do salário mínimo, e 43,1 milhões de pessoas, 20,6% da população, vivem em uma situação de insegurança alimentar. A conquista do salário mínimo, que se estende, direta ou indiretamente, a 70% da população, é fruto de décadas de lutas organizadas dos trabalhadores. Ou seja, da luta sindical.

     A cultura de valorização do individual, tão cultivada na sociedade, leva os trabalhadores em geral a achar que conseguem resolver seus problemas solitariamente, sem a ajuda do sindicato ou de outras formas de organização coletiva. Uma parcela dos trabalhadores imagina que se trabalhar muito mais do que a média conseguirá ser reconhecida pela empresa e subir profissionalmente, sem precisar da ação coletiva do sindicato. E isso é verdade. O problema é que a fórmula funciona para um trabalhador em cada mil. Analisado o problema de perto, veremos que todos os direitos existentes são frutos das lutas coletivas dos trabalhadores.

     Outro problema importantíssimo no trabalho sindical é a elevadíssima rotatividade do trabalho no país. Existem categorias nas quais a taxa de rotatividade é mais do que 100%, ou seja, são admitidos e contratados um número de trabalhadores superior ao número total de trabalhadores no setor. Além disso, aumentam as dificuldades de os dirigentes estarem na sua base sindical e conversarem com os trabalhadores. Há poucos dirigentes liberados, especialmente no setor privado. O trabalhador “comum”, em geral, não quer ser sindicalista, dado o nível de adversidades que a função enfrenta, incluindo a possibilidade de ficar “amaldiçoado” no setor e não conseguir mais se reempregar.

     É certo também que a vida duríssima do trabalhador (desemprego, baixos salários, péssimas condições de trabalho, etc.), dificulta que ele pare para refletir sobre questões de importância vital. A situação é tão desfavorável que o trabalhador nem quer parar para ouvir os argumentos dos sindicalistas, independentemente do assunto. Dessa forma, textos e materiais em geral produzidos pelo sindicato não são lidos pela maioria dos trabalhadores. Ou por falta de tempo, medo, desinteresse, falta de curiosidade, etc. Também o assédio moral e a superexploração dificultam muito o trabalho do sindicato.

     O trabalhador, pressionado pelo conjunto de dificuldades (e, neste momento, em franco processo de perda de renda), muitas vezes espera do sindicato vantagens de caráter assistencialista, as quais a entidade não consegue oferecer, por crescentes limitações financeiras. É certo que o assistencialismo não deve ser praticado pelo sindicato como um fim em si mesmo. A assistência não é função da entidade sindical, que nem dispõe de recursos para praticá-la. Porém, dada a extrema gravidade da crise econômica atual, de desemprego recorde e franco empobrecimento da classe trabalhadora, se o sindicato dispuser de condições, penso que ele deve amparar o trabalhador em suas dificuldades. Não existe ação sindical em meio à fome. Não me refiro à assistência social tradicional, acrítica e como um fim em si mesmo. É uma ajuda que o sindicato pode prestar ao trabalhador desempregado de sua base, se isso não ameaçar a sua própria sobrevivência. Mas sempre vinculando a referida ajuda a um processo de formação básica sobre sindicalismo, deixando claro para o trabalhador que sua situação não é uma fatalidade, e sim resultado direto da exploração que ele sofre.

     Uma grave dificuldade da ação sindical é que, historicamente, há uma sonegação à população em geral e à juventude, da história dos direitos e dos sindicatos. Isso ocorre na escola tradicional, nas instituições, nas empresas, nos meios de comunicação, etc. A história em geral é desconhecida, mas principalmente a história dos trabalhadores. Em consequência, uma parcela significativa da população, especialmente a juventude, supõe que os direitos existentes “caíram do céu”, ao invés de serem frutos de décadas de muita luta. Essa visão a-histórica dos direitos, por ironia, está sendo violentamente negada pela história recente, a partir do golpe de 2016, quando os direitos estão sendo destruídos em escala e velocidade industriais.

     Dirigentes sindicais, normalmente, não são preparados (“treinados”) para o trabalho de sindicalização. Além disso, falta muitas vezes firmeza política e ideológica para o desempenho desse trabalho. A tarefa de sindicalização requer conhecimento do sindicato e de algumas noções de economia e de política, que a maioria dos trabalhadores não dispõe. Um fenômeno que dificulta a sindicalização também é a política antissindical das empresas, com a disseminação de calúnias, associação do sindicato com desemprego, ou com corrupção, etc. Isso dificulta muito porque a empresa exerce grande influência sobre o trabalhador, na medida em que a vida deste e de sua família dependem do emprego.

                                                                                                      *Economista 27.09.21