sexta-feira, 26 de junho de 2020

O peso da classe trabalhadora e a centralidade do trabalho na sociedade



                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     O Brasil vinha, até 2014, melhorando os seus indicadores de distribuição de renda, de forma lenta, mas continuamente. De fato, houve uma melhoria concreta no perfil de distribuição de renda naquele período entre 2004 e 2014, em função:
1) da geração de empregos e a valorização dos salários, que fizeram crescer a renda domiciliar per capita (este fator respondeu por mais de 70% da elevação entre 2004 e 2014);
2)  dos seguidos repasses da Previdência (contribuição de 23%);
3) e pelas transferências de renda do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (reforço de 4%).
     O dado revela a grandiosidade e a centralidade econômica do trabalho na nossa sociedade. A esmagadora maioria das pessoas depende do trabalho para suprir suas necessidades básicas. Ou do seu próprio trabalho, ou de outrem. Ou do trabalho atual, ou do trabalho realizado anteriormente, ao longo de décadas (no caso de aposentadorias e pensões).
     No período 2004/2014, a economia cresceu e distribuiu renda entre assalariados, fato inédito nos últimos 50 anos, até então. E foi com base principalmente no crescimento da massa salarial, através do aumento dos empregos e dos salários. As aposentadorias também tiveram um peso importante, ainda que secundário. Mas aposentadorias e pensões, não custa lembrar, são fruto de trabalho.
     No caso da previdência social, são os 30% da folha salarial que sustentam a previdência social (o trabalhador com 10% e o patrão com 20%). O financiamento da previdência social é tripartite: trabalhadores, empregadores e Tesouro. Mas mesmo os recursos injetados pelo Tesouro também são bancados pela população, que pagam impostos, viabilizando assim recursos para o Tesouro. Aliás, o sistema tributário é bastante regressivo, quem sustenta o Estado brasileiro é fundamentalmente o trabalhador.

     Os ganhos reais do salário mínimo foram grandemente responsáveis por esse desempenho do perfil da renda no Brasil, entre 2003 e 2016 eles superaram os 74%. Por isso, uma das primeiras medidas dos golpistas de 2016 foi acabar com a política de ganhos reais do salário mínimo, implantada pelo Governo Lula em 2005, através de negociação com as centrais. Segundo o DIEESE, os ganhos reais do salário mínimo melhoravam a cada ano, diretamente, a vida de quase 50 milhões de pessoas que recebem remuneração correspondente ao piso nacional – assalariados, aposentados e pensionistas, trabalhadores por conta própria, domésticos. Se considerarmos que cada família tem em média três membros, a medida impacta direta e indiretamente a vida de quase 150 milhões de brasileiros.
     Esses dados, ao mesmo tempo em que mostram a importância do salário mínimo, eles também revelam como os salários são baixos no Brasil. Se o piso nacional aumenta, como os salários são muito baixos, há a movimentação de toda a escala salarial para cima. Vimos o fenômeno em funcionamento entre 2004 até o golpe de 2016.
     O fato é que a renda do trabalho é central em qualquer sociedade. Por isso a análise do mercado de trabalho remete imediatamente às condições de vida dos trabalhadores, já que a esmagadora maioria das pessoas na sociedade depende do trabalho, direta ou indiretamente. A força de trabalho no Brasil, em 2019, era formada de 106 milhões de pessoas, metade da população. Com base nos dados da PNAD-IBGE, verificamos que mais de 95% da força de trabalho no Brasil é formada de trabalhadores (assalariados, conta própria, etc.).
     Mesmo entre os quase 5% de empregadores registrados pela PNAD, certamente a esmagadora maioria são micros e pequenos, cuja inserção no mercado de trabalho, muitas vezes, tem características muito próximas aos dos trabalhadores. Além disso o empregador também vive do trabalho. Vive do trabalho dos outros: porque é justamente uma parcela do trabalho não pago ao outro, que possibilita que ele faça reservas. Ao contrário do que alguns possam imaginar o lucro do empregador não é obra do espírito santo, e sim uma parte da riqueza produzida pelo trabalhador.

     Se considerarmos ainda os dependentes da força de trabalho, e mesmo os aposentados, cuja renda se relaciona diretamente ao trabalho, iremos concluir que ao analisar com alguma profundidade a situação do mercado de trabalho, estaremos nos aproximando muito da situação atual da classe trabalhadora. Como mencionado, a Força de Trabalho (população ocupada e desocupada) existente no Brasil, era de 106 milhões em 2019. Aqui temos uma curiosidade que mostra um pouco a envergadura do Brasil na região e no mundo: a força de trabalho brasileira é numericamente superior à população de quase todos os países das Américas, com exceção, além do próprio Brasil, de EUA e México.
             
                                                                                                              *Economista  25.06.20

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Quarta Revolução Industrial em tempos de “tempestade perfeita”: apontamentos


*José Álvaro de Lima Cardoso
1. Ao mesmo tempo em que o Brasil cruza a sua “tempestade perfeita” (com a maior crise política e econômica, e o pior governo da sua história), vai também sofrendo os impactos da chamada 4ª Revolução Industrial, em curso. Os efeitos redutores de emprego, observados em todas as revoluções industriais, se somam à destruição da proteção legal aos trabalhadores brasileiros, através de inúmeras medidas tomadas a partir do golpe de 2016. Nunca o trabalhador brasileiro sofreu tantos ataques, ao mesmo tempo;
2.A destruição dos direitos em escala industrial, em meio a uma revolução tecnológica, contribui certamente para acelerar o processo de aumento da desigualdade, verificado a partir de 2016 no Brasil. Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado um crescimento tão elevado em tão pouco tempo de todos os indicadores de desigualdade no país;
3.A pobreza no sistema capitalista tem suas funcionalidades. Uma delas é resignar aqueles que, mesmo ganhando pouco, pelo menos têm trabalho. Nesse sentido serve para amedrontar e “amansar” a classe trabalhadora;
4.Tornou-se banal na nossa sociedade a convivência entre o crescente desemprego de um lado, e, de outro lado, pessoas trabalhando muito acima da jornada de trabalho normal. As vezes em dois ou três empregos, com sete dias e 50 ou 60 horas semanais de trabalho. O trabalhador que, num processo de crise, fica alguns meses desempregado, sem o amparo de políticas públicas, e/ou do sindicato, tende a posteriormente se submeter às piores condições de trabalho e salários. Pouca coisa na vida é mais duro do que passar fome;  
5.O processo de Revolução Industrial em curso não é neutro. Ele se presta também em aumentar o fosso entre países centrais e subdesenvolvidos. São os países centrais, que tem projeto, dinheiro e soberania, que irão tirar proveito do processo, ampliando as diferenças tecnológicas em relação aos países dependentes;
6.Esse é um jogo, portanto, cujos jogadores principais são os países dominantes e/ou imperialistas. Especialmente China e EUA, que travam grandes disputas, incluída a área tecnológica. Os valores envolvidos nessa brincadeira, inclusive, são para cachorro grande: ao nível global, os investimentos no processo equivalem a muito bilhões de dólares a cada ano;
7. O enfrentamento dos desafios da Indústria 4.0 pressupõe investimentos crescentes em ciência e tecnologia. O Brasil precisaria estar direcionando bilhões em pesquisa e inovação industrial. No entanto, o orçamento da ciência e tecnologia para esse ano (7,3 bilhões) é menor, em termos nominais (ou seja, sem correção monetária) do que o de 2014 (8,4 bilhões);
8. Os danos que os cortes do orçamento em ciência e tecnologia, a partir de 2016, causam para o Brasil, irão continuar impactando por muitos e muitos anos. Equipes de pesquisadores estão se desmontando e o país sofre, como no passado, a chamada “fuga de cérebros”, cientistas que, sem perspectivas no Brasil, vão trabalhar em outros países. Joga-se fora, assim, um investimento social de dinheiro e de tempo, às vezes de décadas;  
9. O corte de orçamento em ciência e tecnologia desde 2016 afetou pesquisas da indústria de nanotecnologia e os estudos de genética, que vinham recebendo apoio das fundações estaduais de pesquisa, especialmente na área de commodities agrícolas, e desenvolvidos pela Embrapa (Empresa brasileira de pesquisa agropecuária). A Embrapa, empresa de excelência reconhecida no mundo todo, desde sua criação desenvolve, dentre outras coisas, um banco de amostras, de plantas, animais e microrganismos, absolutamente estratégico para o país. A empresa estava, inicialmente, na mira do governo Bolsonaro para ser privatizada. Aparentemente, desistiram momentaneamente da privatização, mas promovem uma “reestruturação” como demissão incentivada e outras medidas típicas de desmonte de empresas;
10. A política de destruição da ciência e tecnologia não está sendo cometida apenas por estupidez (se bem que esta esteja muito presente). Pode-se dizer que é um plano. É uma política deliberada, que está destruindo o que o Brasil construiu nessas áreas, sempre à duríssimas penas;
11. Uma das primeiras ações do golpe de Estado em 2016 foi a interrupção do programa de enriquecimento de urânio e de todas as demais etapas do ciclo do combustível nuclear. O Brasil estava desenvolvendo uma das mais bem-sucedidas experiências mundiais na viabilização, com tecnologia nacional, do desenvolvimento e instalação nuclear para submarinos, incluindo a fabricação, no Brasil, de todos os equipamentos e componentes. O país vinha também desenvolvendo o mais moderno programa de construção de centrais nucleares e armazenamento de rejeitos. Desmontaram todos esses projetos, e de caso pensado;
12.Desde 2016 estão cortando criminosamente o orçamento das universidades públicas. O Brasil precisaria formar profissionais, na Engenharia de Computação, nas Ciências da Computação, e outras áreas, profissionais que o país forma em número insuficiente. Nesse processo de formação as universidades têm papel fundamental, por isso mesmo estão sendo enfraquecidas. Outra função essencial das universidades é a pesquisa, que estão matando à míngua. O país precisa muito do desenvolvimento da ciência e da pesquisa acadêmica, agora mais do que nunca;
13. Em função da destruição da indústria nacional, que já vem em um processo de encolhimento há décadas, (atualmente representa cerca de 10% do PIB), o grande capital internacional já está se apropriando desse vazio em nosso mercado interno. Grandes empresas internacionais dominam setores estratégicos de bens industrializados com tecnologia de ponta, com grandes lucros. É só pegar as quinhentas maiores empresas que atual no Brasil e verificar o grau de internacionalização da economia brasileira;
14. O grosso da indústria não tem os centros decisórios e tecnológicos localizados no Brasil. O país é importador de tecnologias de fora. Quando ocorre uma mudança tecnológica, como agora, o Brasil fica novamente para trás. Foi assim com a eletrônica, pois o país não conseguiu entrar no desenvolvimento de produtos nessa área. O fato de não haver centros de desenvolvimento de tecnologias no Brasil implica que o grau de inovação é mais baixo e, se o grau de inovação é mais baixo, a produtividade é menor, a dinâmica da indústria é menor e assim por diante;
15. Esse é o agravante do golpe dentro do golpe, que é a entrega do pré-sal. Estão desmontando a Petrobrás e entregando o pré-sal a preço de banana. A Petrobrás, além de tudo que ainda significa para a economia, é um centro irradiador de inovação tecnológica. Por isso ficou no olho do furacão do golpe;
16. A década que se encerra em 2020, será perdida para a indústria. Nos últimos nove anos (2011 a 2019) a perda acumulada é de 15% na indústria. Este será o pior ano de crescimento da economia e da indústria brasileiras. Após uns cinquenta anos o Brasil está saindo do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo;
17. No Brasil o problema maior não é a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento por parte dos golpistas. É muito mais grave. É que o Estado nacional foi tomado literalmente de assalto. Estão desarticulando toda a estrutura produtiva que o Brasil construiu ao longo de décadas, desde Getúlio, fundamental para garantir uma indústria de base nacional, e enfrentar a 4ª Revolução Industrial;
18. Os países que estão se saindo melhor no atual processo de revolução industrial são os que têm projeto nacional, coordenado pelo Estado. Alemanha, China, Coreia do Sul, EUA e outros são os que já estão tirando partido desse processo de avanço das forças produtivas e certamente aproveitarão para avançar em todos os aspectos.  O governo Bolsonaro é inimigo do Brasil, do povo brasileiro, e da tecnologia. Com esse governo não tem como imaginarmos que o Brasil possa enfrentar adequadamente os desafios da atual revolução industrial.
                                                                                                 *Economista. 22.06.20


terça-feira, 16 de junho de 2020

Indústria do Brasil no olho do furacão


                                                                                
                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso
    
     Discutir a questão da indústria é fundamental, por várias razões:
1. É um setor estratégico para o país sob uma série de aspectos (emprego, renda, soberania, tecnologia, defesa nacional);
2. Todos os países dominantes têm indústrias fortes, praticamente sem exceção. Não dispor de indústria é pedir para ser país dependente e dominado;
3. Há uma relação direta entre soberania e base indústrial. Nos governos nos quais o Brasil teve projeto nacional (foram poucos), aparecem também como os momentos em que mais a indústria se desenvolveu;
4.A industrialização foi um dos capítulos mais vitoriosos que o país já escreveu na sua história (após a revolução de 1930). Entre 1930 e 1980 nenhum país cresceu tanto o seu PIB quanto o Brasil, e boa parte desse fenômeno se deve à industrialização; 
5.O Brasil sofre uma desindustrialização há décadas, mais precisamente desde meados de 1980. Em 1985, a participação da indústria de transformação no PIB era de 35,9%, e esta caiu para 10,5% em 2019;
6. O governo atual não tem política industrial. Na verdade, só tem política “entregacional”: há 119 ativos públicos listados, para serem vendidos tão logo seja possível, à preço de banana;
7. O golpe de 2016 foi, também, contra a indústria. Não é por acaso que a Petrobrás foi o centro do golpe, com a utilização da Lava Jato, operação que foi arquitetada fora do país, em algum departamento do Estado norte-americano. A Petrobrás é fundamental para a indústria, tanto como fornecedora de energia, quanto na condição de provedora e desenvolvera de tecnologia;
8. Depois de cerca de meio século, o Brasil está saindo do grupo dos dez países mais industrializados do mundo.
     A discussão dos problemas atuais da indústria deve levar em conta que o Brasil ingressou numa espécie de “tempestade perfeita”, caracterizada por: a. contaminação em massa da população pelo covid-19. A curva de contaminação está empinada, o Brasil tem 43.389 mortos e 867.882 contaminados (até ontem,14.06), O Brasil passou o Reino Unido e se tornou o segundo país do mundo com maior número de mortes por covid-19. Neste momento somente os Estados Unidos tem mais mortos, com mais de 117 mil. O país pode superar os Estados Unidos em número de mortes de covid-19 no dia 29 de julho, conforme a projeção da Casa Branca dos EUA. Na data referida, o Brasil alcançaria 137,5 mil mortos, ultrapassando os EUA, que teria 137 mil;
b. depressão econômica (com seis anos seguidos de recessão ou estagnação)
c. crise política inusitada (com governo Bolsonaro e inusitada polarização política)
     A crise da indústria é anterior à pandemia. Em 2019 a produção industrial no Brasil já tinha diminuído 1,1% em relação a 2018. O patamar de produção industrial de 2019 foi semelhante ao de 2009: é como se o país tivesse regredido, em termos de produção industrial, em dez anos. Não tem como ser diferente: a década que se encerra em 2020, será perdida para a indústria. Isso já era esperado antes da pandemia, e do mundo ter ingressado na pior crise da história do capitalismo.
     O problema conjuntural, ligado à crise, e o estrutural (desindustrialização), coincidem com um período no qual o mundo atravessa a chamada Quarta Revolução Industrial. O Brasil precisaria estar investindo bilhões em pesquisa e inovação industrial neste momento, procurando pelo menos, congelar a histórica defasagem científico técnica que tem o país em relação aos países desenvolvidos. Como desgraça pouca é bobagem, este período coincide com o governo mais obscurantista da história e com uma drástica queda do orçamento para ciência e tecnologia. O orçamento da ciência e tecnologia para esse ano é 7,3 bilhões, menor em termos nominais, do que o de 2014, de 8,4 bilhões.
   Os dados recentes da indústria são realmente impressionantes. A produção industrial caiu 18,8% em abril, na comparação com o mês anterior.  Em relação a abril do ano passado, a queda na indústria foi de 27,2%, Bens de consumo duráveis tiveram a queda mais acentuada de abril 79,6%, Bens de capital caíram 41,5%. Levantamento do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) com 93 segmentos industriais, concluiu que 77% do total (ou 72 segmentos) registraram desempenho negativo no acumulado de janeiro-abril/20 frente ao mesmo período do ano anterior. A utilização da capacidade instalada da indústria, que já vinha caindo antes da pandemia, chegou a 49% em abril. É um verdadeiro massacre.
     Estes resultados decorrem de uma confluência de fatores:
a) com o isolamento social, o consumo de bens e serviços, em geral, caiu drasticamente. A produção de uma forma geral só tem sentido se houver consumo;
b) em função da recessão mundial e da pandemia, há queda acentuada das exportações de manufaturados no Brasil (-32% em abril segundo o IBGE);
c) as cadeias de produção, por sua vez, foram desmontadas. A China, que juntamente com outros países da região, provê boa parte dos insumos industriais, mergulhou numa crise brutal no primeiro trimestre, para combater o covid-19.
d) nenhuma empresa quer investir neste quadro de brutal crise e incertezas.
      Graves crises como a atual, só conseguem ser enfrentadas com a coordenação do Estado, que tem condições de fazer políticas monetária, cambial, industrial, etc. No Brasil não existem medidas do governo para enfrentar os problemas da indústria e dos demais setores. O governo está preocupado em aproveitar a crise para retirar direitos dos trabalhadores e privatizar os ativos públicos. Políticas de entrega das riquezas nacionais e de destruição de direitos dos trabalhadores, são incompatíveis com projetos de desenvolvimento da indústria. Como mencionado, há uma relação entre soberania nacional e desenvolvimento da indústria. Não será o governo mais entreguista da história, que defenderá uma indústria forte e voltada para os interesses estratégicos do país. O projeto dessa turma é transformar o Brasil num fornecedor de matérias primas baratas para o centro capitalista mundial.
                                                                                            *Economista 15.06.20.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

A “tempestade perfeita” no Brasil



                                                                       *José Álvaro de Lima Cardoso

"O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa" (Jair Bolsonaro, em 18.03.2019, em Washington). 

     O Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, vinha gradativamente melhorando o perfil de distribuição da renda entre 2004 a 2014, através de uma série de mecanismos. Era um processo lento, muito baseado na geração de riqueza nova, já que a economia cresceu 3,72% ao ano naquele período (esse percentual é muito razoável, se considerarmos que, de 2016 a 2019 o crescimento médio do PIB foi zero). Aquele processo lento de melhoria do perfil de renda, fundamentalmente assentado na geração de milhões de empregos formais, foi interrompido com o golpe de 2016.
     A partir desse momento a distribuição de renda estagnou, a pobreza voltou com força e a equiparação de renda entre homens e mulheres, negros e brancos, que vinha acontecendo ainda que lentamente, recuou. Claro, não se organiza um golpe de Estado, que derruba um governo eleito pelo voto direto, para melhorar a vida da população. No que se refere à questão econômica os golpes sempre são desferidos para interromper processos de maior acesso à renda, redução da pobreza, ou ampliação dos direitos da maioria. Essa característica é ainda mais forte quando o golpe é coordenado por uma potência estrangeira, que obviamente tem objetivos econômicos e políticos bem específicos no processo.
     Não é que o imperialismo não deseje propiciar melhores condições de vida para o povo destes países vitimados por golpes. Não se trata disso. É que, no atual estágio de desenvolvimento da crise capitalista, ele não pode fazê-lo, sem prejudicar os lucros dos grupos econômicos que controlam a economia global. Os golpes em Honduras, Paraguai, Brasil, Bolívia (e outros, com metodologias um pouco diferentes) foram executados pela necessidade de manter os níveis de lucro e de domínio geopolítico e econômico na Região, do consórcio imperialista mundial, encabeçado pelos Estados Unidos.   
     A forma como a pandemia afeta o Brasil é uma espécie de síntese do que o programa econômico do governo, que é o aprofundamento do programa do golpe de 2016, reserva para o Brasil. O país é o segundo com o maior número de casos, com 691.962 casos até 07.06, somente os Estados Unidos tiveram mais doentes. Agora, somos o terceiro país do mundo em vítimas da Covid-19. São 37.312 óbitos do início da pandemia até ontem (07.06.20).
     O estado de São Paulo tem a mesma população da Argentina, cerca de 44 milhões de pessoas. Até 07.05 São Paulo tinha 143.000 casos notificados e mais de 9.000 mortes. São Paulo, além disso, em 24 horas, até domingo, tinha registrado mais 2.494 novos casos. A Argentina até ontem tinha 22.782 casos registrados e 664 mortes por covid-19. São Paulo apresenta 13 vezes mais mortes que a Argentina. Esta diferença no enfrentamento da pandemia, que implica em muito milhares de mortos a mais no Brasil, tem que ser creditada diretamente na conta da incompetência e conduta do pior governo da história do país.
     O Brasil está ingressando no que se pode chamar de “tempestade perfeita”, caracterizada por: 1.Contaminação em massa da população; 2.Depressão econômica; 3.Crise política inusitada (com governo Bolsonaro e grande polarização). Em relação à permanência de Bolsonaro não existe consenso entre os poderosos, há uma tendência do movimento Fora Bolsonaro crescer a cada dia, inclusive com adesão de setores da classe média, que apoiaram o golpe. Mas os golpistas permanecem unificados em relação ao programa de guerra contra o povo, sintetizado na fala de Bolsonaro, em epígrafe, proferida em plena sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA).  

                                                                                                *Economista. 08.06.20

sábado, 6 de junho de 2020

Pobreza no Brasil: breves apontamentos sobre um problema estrutural


                                                                                 *José Álvaro de Lima Cardoso

     Os dados revelam que, com o golpe de 2016 explodiu a desigualdade social no Brasil, que é um grande fator de pobreza. Se alguns têm muito numa ponta, faltam a outros, na outra ponta. Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado um crescimento tão elevado, em tão pouco tempo, da concentração de renda. Se tomarmos os dados da publicação “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”, publicação recente do IBGE, pode-se verificar a gravidade do problema já antes da brutal crise trazida pela pandemia. Os dados mostram, por exemplo que, em 2019, os 10% mais ricos se apropriavam sozinhos de 43% de toda a renda do país, alcançando um dos maiores patamares histórico de concentração desde que a pesquisa começou a ser realizada.
     Como a crise e o desemprego, a pobreza no sistema capitalista tem uma funcionalidade. O fenômeno é mais forte na periferia subdesenvolvida e periférica da economia global, mas ocorre também no centro capitalista, como demostra o caso dos Estados Unidos. Mesmo usufruindo de todas as imensas vantagens de ser o principal país imperialista do globo, o país enfrenta grandes contradições internas, porque o seu modelo de desenvolvimento gera imensa desigualdade social. Existem mais de 40 milhões de pobres nos EUA. Cerca de 40% dos estadunidenses se queixam de que não conseguem cobrir despesas inesperadas com emergências, que ultrapassem 400 dólares.
     Esses indicadores representam verdadeira bomba relógio, que explode de vez em quando, como está acontecendo neste momento. Os conflitos nos EUA decorrem do ponto de vista imediato numa reação completamente justificada à violência contra os negros, ilustrada pelo brutal assassinato de George Floyd. Mas o pano de fundo reside no fato de que os negros são as maiores vítimas da pobreza e da desigualdade nos EUA. O assassinato foi o catalisador da revolta, num país em que um em cada mil negros morre pelas mãos da polícia. Mas o que está por detrás da explosão atual também é a desigualdade, que afeta profundamente o conjunto da vida dos negros nos EUA.
     O Brasil vinha, até 2014, melhorando os seus indicadores de distribuição de renda.  Para tanto, os estudos mostram que foram determinantes:
1) a geração de empregos e a valorização dos salários foram fatores determinantes para o crescimento da renda domiciliar per capita (respondeu por 71% da elevação entre 2004 e 2014);
2) seguido pelos repasses da Previdência (contribuição de 23%);
3) e pelas transferências de renda do Programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (reforço de 4%).
     A economia até 2014 vinha crescendo e distribuindo renda entre assalariados, fato inédito nos últimos 50 anos, até então. Quando a crise apertou, veio o golpe de Estado para – dentre outras coisas - interromper esse processo de melhoria da distribuição de renda. Foi um golpe perpetrado por razões econômicas, mas também políticas e culturais. Por incrível que possa parecer, a melhoria de vida dos pobres destampou um ódio clássico aos pobres, o ódio aos escravos, devido aos nossos 400 anos de escravidão (o sociólogo Jesse Souza nos explica isso muito bem, de forma conceitual. Mas o ódio aos pobres pode ser observado cotidianamente).
     O ódio tem esse caráter histórico e cultural apontado, mas tem também uma base econômica objetiva: com a redução da pobreza que estava acontecendo no Brasil, alguns milhões de pessoas (classe média alta e ricos), poucos, mais muito influentes na sociedade, começam a perder ou deixar de ganhar (passam a ganhar menos). Há toda uma visão na sociedade, cuidadosamente alimentada, de que o sujeito é bilionário por mérito próprio, porque se esforçou, estudou, etc. Do outro lado, o sujeito tem que comer calango porque é preguiçoso, não quer enfrentar o batente, etc. É esse tipo de mentalidade que faz com que as pessoas aceitem como natural, e até achem bonito, que o Brasil tenha cinco bilionários com riqueza equivalente à metade da população mais pobre do país, ou seja 100 milhões de pessoas.   
      Esse processo de redução das desigualdades que o país vinha promovendo foi interrompido com o golpe de 2016. A distribuição de renda estagnou, a pobreza voltou com força e a equiparação de renda entre homens e mulheres, negros e brancos, que vinha acontecendo ainda que lentamente, recuou. Não se promove um golpe de Estado, que derruba um governo eleito pelo voto direto, para melhorar a vida da população. Todas as políticas adotadas no Brasil após o golpe levam necessariamente ao aumento dos níveis de pobreza da população e à concentração de renda:
1.Enfraquecimento do Estado nacional de muitas formas (financeiramente, politicamente, diplomaticamente, militarmente): políticas coletivas, como combate a pobreza, se faz via estado nacional, como vendo agora na pandemia;
 2. Entrega das riquezas nacionais para o estrangeiro: o objetivo econômico central do golpe foi petróleo (que é “o golpe dentro do golpe”), mas estão entregando o que podem. Se o objetivo é entregar as riquezas, sobra menos recursos para distribuição de renda;  
3. Destruição das políticas de segurança alimentar, fazendo a fome aumentar exponencialmente no Brasil: após ter saído do Mapa da Fome da ONU (em 2014), o Brasil está retornando para o famigerado Mapa;
4. Privatizações: pretendem privatizar o que for possível e rapidamente. Há 119 ativos federais listados para serem vendido a preços de banana. Privatização se faz para engordar ainda mais a conta bancária de quem adquire o ativo e não para diminuir ou erradicar a pobreza no país vendedor;
5) Congelaram gastos primários (como educação e saúde) por 20 anos: PEC 95, a chamada Emenda da Morte, que nem países que perderam guerras aceitaram assinar. Portanto estão congelados também os gastos sociais;
6.Destruíram as leis trabalhistas: junto com elas desmontaram o mercado de trabalho e a renda. São 27,585 milhões de trabalhadores subutilizados (desempregados, subocupados, desalentados ou na inatividade por falta condições) e 12,5 milhões de trabalhadores desempregados;
7. O golpe causou a maior estagnação econômica da história do Brasil. Não há registro anterior, nas contas nacionais, de seis anos de recessão e/ou estagnação. Como vimos, a base para distribuição de renda entre 2004 e 2014 foi a geração de empregos combinada com melhoria salarial;

8. Destruição da indústria: a década que se encerra em 2020, poderá ser considerada perdida para indústria. Nos nove anos entre 2011 a 2019 a perda acumulada é de 15% na indústria. Após uns cinquenta anos, o Brasil caminha para sair do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo;
     Se a política é de entrega das riquezas nacionais, os direitos, da mesma forma, não conseguem se sustentar. Há uma relação direta entre soberania e direitos da população. E também da renda. Uma parte das conquistas da sociedade custa dinheiro, e há que financiar com recursos públicos que, em parte são arrecadados com as riquezas que o país possui. Neste contexto o aumento da pobreza é inevitável. Num governo tipo Bolsonaro, o combate à pobreza, se houvesse, seria como “enxugar gelo” porque o conjunto das políticas tem como resultado matemático a geração de um número crescente de pobres. 
     A pobreza de grande parte do povo brasileiro e do continente latino-americano certamente não é uma casualidade. O programa “Ponte para o Futuro”, implantado por Michel Temer após o golpe de 2016, num momento em que o Brasil tinha recém atingido a menor taxa de desemprego da história, não foi empurrado goela abaixo, apenas porque Temer é rico e está à serviço dos norte-americanos (apesar disto ser um fato). A razão é que há uma crise internacional do capitalismo, a maior da história, que tira o espaço para que países da periferia capitalista melhorem a vida de seu povo. Quando conseguem fazer é somente com luta encarniçada. 
     Não é que o sistema capitalista internacional não queira melhorar a vida dos trabalhadores dos países subdesenvolvidos. É que, no atual estágio de grande crise mundial, ele não pode, sem prejudicar os lucros dos grupos econômicos que controlam a economia mundial. Eles deram golpe em toda a América Latina não por diversão, ou porque são malvados, mas pela necessidade de manter seus níveis de lucro e seu domínio geopolítico e econômico na Região. 
                                                                                                *Economista. 03.06.20