Por Bob Fernandes, no “Terra Magazine”
"Minha mãe (Norma Thereza) me liga todos os dias, preocupada, não entende como eu sigo tranquilo. Acha que estou alienado…" conta, relaxado e sorrindo, Fernando Haddad, o prefeito de São Paulo.
A mãe do prefeito se preocupa com o olho do furacão em que o filho de 50 anos se meteu ao criar uma Controladoria Geral do Município e, assim, destampar os esgotos do propinoduto na cidade.
Montada no setor de recolhimento de impostos como o ISS (Imposto Sobre Serviços) e, ao que parece, também do IPTU, a gatunagem é calculada em, pelo menos, meio bilhão de reais.
Por conta de investigação iniciada pela Controladoria criada por Haddad, foram presos – depois soltos – quatro auditores fiscais.
São eles: Ronilson Bezerra de Rodrigues, ex-subsecretário da Receita e segundo na hierarquia do ex-secretário das Finanças Mauro Ricardo, isso no governo de Gilberto Kassab; Eduardo Barcelos, ex-diretor de arrecadação; Luis Alexandre Cardoso de Magalhães, ex-agente de fiscalização e Carlos Augusto Di Lallo do Amaral, ex-diretor da Divisão de Cadastro de Imóveis.
O furacão já engoliu, inclusive, o secretário de governo de Haddad, o vereador Antonio Donato (PT), que deixou o cargo na terça-feira (12), depois de acusado por um dos quatro fiscais presos de ter recebido R$ 200 mil para campanha.
Começo da manhã da quinta-feira (14). Posto diante dos fatos, a cada resposta o prefeito avança, avisa a quem quer que seja que não cederá, não mudará o rumo das investigações no que depender dele:
(…) “não há como recuar e não haverá recuo, porque é uma decisão que foi tomada ‘a priori’, não ‘a posteriori’ dos acontecimentos. Foi tomada no momento da criação da Controladoria. Acontecesse o que acontecesse, não haveria recuo” [nos poderes e na independência da Controladoria].
E os riscos embutidos? E se isso, por fato ou em meio à guerra de versões, chegar a mais gente do partido, além de Donato?
Haddad, por mais de uma vez na conversa, lembra que Donato foi um dos responsáveis pela criação da Controladoria e que, portanto, o próprio secretário poderia ter freado as apurações. E segue em frente:
“O combate à corrupção, que todos dizem desejar, fica numa condição subalterna às consequências imprevisíveis e não controláveis do processo, que pode envolver nome de pessoas, inclusive, inocentes, próximas ou não…
O combate à corrupção no Brasil não é sincero… não existe combate à corrupção que seja indolor. Você imaginar que o crime não vai reagir? Imaginar que eu, por exemplo, não sabia que o crime reagiria? É ingenuidade…”
O prefeito foi surpreendido pela extensão da teia de corrupção? Pela pronta resposta, não, e a Controladoria nasceu também como consequência do que já se sabia e se imaginava:
(…) “a situação de descalabro me foi relatada ainda durante a campanha…”
--Tenho notado nos discursos do senhor uma queixa entre o descompasso do que está sendo apurado e o que tem sido divulgado em parte da mídia. Estou equivocado?
“Desde que bem situada a afirmação, ela tem procedência. Na verdade, o que às vezes eu noto é que o combate à corrupção, que todos dizem desejar, fica numa condição subalterna às consequências imprevisíveis e não controláveis do processo, que pode envolver nome de pessoas, inclusive, inocentes. Próximas ou não".
--Leio em jornais, ouço que “o prefeito está cuspindo para cima", e que isso "vai acabar envolvendo alguns dos seus"…
"Acho que uma afirmação como essa desmerece o próprio Jornalismo. Um analista ou jornalista que diz isso desmerece, de certa maneira, a própria profissão. Porque é tão claro que há efeitos colaterais imprevisíveis de uma determinação de apurar fatos escandalosos como esse… E, como se sabe também, no curso das investigações até mesmo pessoas que não estão envolvidas podem pagar um preço alto até demonstrarem que não tem nada a ver com o episódio… Então, das duas uma: ou você combate e assume os riscos inerentes a esse combate, porque você está lidando com criminosos, ou você faz o que a tradição brasileira recomenda: “não mexe com isso que vai acabar pegando em você”.
--Ou seja: ao mesmo tempo se cobrar investigação contra a corrupção e apontar para os riscos políticos da operação?
"O combate a corrupção no Brasil não é sincero. Não existe combate a corrupção indolor. Você imaginar que o crime não vai reagir? Imaginar que eu, por exemplo, não sabia que o crime reagiria? É ingenuidade. A reação pode ser uma armação, uma retaliação, pode ser uma ilação. Nós sabemos de tudo isso. Sabemos que quando o crime é coagido ele vai disparar sua defesa. Não vão ser balas de chumbo, mas serão balas simbólicas, que podem ferir reputações. Qual é a alternativa a isso? A alternativa é fazer o que a péssima tradição brasileira recomenda, o que recomendam as chamadas raposas: não mexer!"
--Mas, lemos, ouvimos, e também se sabe que setores do seu próprio partido, o PT, têm recomendado “cautela”, porque “esse escândalo pode sair do controle”. Isso é fato? E o senhor pretende contrariar o partido e continuar avançando nas investigações?
“Primeiro: quando você toma a decisão de criar uma Controladoria é um caminho sem volta. Por quê? Porque você sinaliza para sociedade que tem um órgão de fiscalização 100% autônomo, o que não é comum na tradição da política brasileira.”
--Mas há quem crie a Controladoria e controle o controlador…
“Mas aí eu não teria chamado quem chamei. Que era o Secretário Nacional de Combate à corrupção, o Mário Vinicius Spinelli, e que foi indicado pela Controladoria Geral da União (CGU), por ter mais de dez anos de serviços prestados de combate à corrupção no País. A CGU deve ser considera um dos grandes legados do governo Lula em relação ao tema corrupção. Não criar a Corregedoria à imagem e semelhança da CGU seria negar um dos valores que nós defendemos na esfera federal.”
--Não há como recuar?
“Não há como recuar. Porque é uma decisão que foi tomada ‘a priori’, não ‘a posteriori’ dos acontecimentos. Ela já foi tomada no momento da criação. Acontecesse o que acontecesse, não haveria recuo [nos poderes e na independência da Controladoria]. A decisão de que não haveria recuo foi tomada antes das investigações. Agora é o seguinte: ou se chega a conclusão que a Controladoria é uma coisa boa para um Estado, uma cidade ou um país, ou o que vai acontecer, sobretudo se os analistas continuarem avançando na direção incorreta? Ao invés da Controladoria ser um bom exemplo para ser disseminado pelo país, será considerado um gesto de “ingenuidade política”. E não recomendável para as “raposas tradicionais”. Só os “ingênuos” vão seguir o exemplo de São Paulo. É um paradoxo que a própria imprensa esteja fomentando esse próprio tipo de análise.”
--É inevitável que isso esbarre em financiadores de campanha tradicionais como, por exemplo, grandes construtoras. E aí, como é que vai ser?
“Essas coisas precisam ser bem discernidas. Uma coisa é, diante da lei eleitoral, cuja mudança eu defendo. Sou contra o financiamento empresarial para campanha. Acho que o financiamento tem que ser ou do cidadão, ou do fundo partidário. Com a lei em vigor, isso se torna uma espécie de ‘Lei Rouanet da Política’. Os aportes são das empresas privadas. Ou seja, você ganha em relacionamento e acesso. Mas isso não tem nada a ver com uma empresa que buscou acesso para se beneficiar e pagar menos, como aconteceu nesse episódio do ISS.”
--O público, os cidadãos terão acesso aos nomes das empresas beneficiadas pelo esquema dos fiscais do ISS?
“Há um calendário da Secretaria de Finanças, que é o pedido de reapresentação dos documentos emitidos por essa quadrilha. E que pode resultar em prejuízos para o erário. E imagina-se que deve ter tido todo tipo de situação, desde empresas que pagaram o imposto devido e continuaram sendo chantageadas pela quadrilha para ter o processo agilizado, até a empresa que, diante das circunstâncias, se aproveitou [do esquema] para pagar menos.”
--Quase todos principais assessores do ex-secretário Mauro Ricardo foram ouvidos ou citados em gravações. Há justeza de tratamento em relação a isso, inclusive na mídia?
“O Ministério Público tem sido muito correto no tratamento dispensando ao tema. Hoje mesmo, li uma entrevista do promotor Bodini que quer ouvir o ex-secretário, em função dos fatos revelados. Já que era aqui, no prédio da Prefeitura, que o dinheiro chegava. Ele age corretamente. Porque tem que ouvir todo mundo. Não posso dizer que esse é o maior escândalo, porque em São Paulo não se sabe. Mas…”
--O Senhor sabe onde isso vai chegar? O IPTU seria outro tanto?
"Acho que a relação de R$500 milhões está correta, não iria muito além disso. Porque tem relação com o patrimônio dos acusados revelado até aqui, que é na ordem de R$80 milhões, fora as contas no exterior. O prejuízo não pode ser, ao menos, menor que R$300 ou R$400 milhões. Entendo que seja uma quadrilha que se formou para enriquecer. Ainda acho que o vínculo dessa quadrilha com a Política não foi esclarecido. Pode ser uma quadrilha que quis enriquecer se valendo de amizades e relacionamentos.”
--Há um ano e meio, eu mesmo, um repórter, recebia informações de comerciantes e empresários sobre a esculhambação nas subprefeituras. Eles reclamavam que não conseguiam nada sem ter que pagar propina. É possível o ex-prefeito não ter tomado conhecimento disso?
“Essa situação foi relatada ao longo da campanha, de que havia uma situação de degradação na Prefeitura. Não estou dizendo quem está envolvido, não é isso, porque nós criamos a Controladoria para tentar resolver. Esse é o marco.”
--Não é muito ampla a corrupção? O senhor não tem medo que a administração municipal fique paralisada?
“Você tem que ter método para isso. Qual foi a ação da Controladoria este ano? Nós efetuamos algumas prisões em flagrante até junho. E não havia como controlar isso. Porque o empresário chegava aqui dizendo que estava sendo achacado. E era o caso de fazer o flagrante com o apoio da Polícia Civil. Foram feitos, se não me engano, cinco flagrantes. São casos pequenos, mas simbólicos e paradigmáticos. Porque é aquela corrupção miúda, que degrada todo o ambiente da cidade. Então, houve uma ação forte e, desde março, nós estamos focados nessa quadrilha [do ISS], porque era uma situação grave. Dinheiro grosso e não miúdo.”
--O que tem de fato, de verdadeiro, [sobre suposta] tentativa do PT, ou mesmo do ex-presidente Lula, de intervir nessa crise?
“O presidente Lula só conversou comigo sobre isso uma vez. Ele fez um comentário, único, de ‘nós reclamamos da Corregedoria que paralisa o governo, mas ela faz muito bem para o Brasil’, se referindo à CGU. No Ministério da Educação, tive o privilégio de conviver com a Controladoria, que parece dificultar a administração num primeiro momento, mas você sabe que, no médio e longo prazo, os ganhos são inestimáveis. Tendo vindo da experiência federal e tendo ouvido o que se ouvia na cidade, não tinha como não criar a Controladoria Municipal.”
--Mas há conversas no partido sobre isso. Esses que o senhor chama de “as velhas raposas” não querem colocar panos quentes?
“Para mim nunca foi feita nenhuma referência direta. As pessoas que mais deram impulso à criação da Controladoria, criando condições materiais para que isso acontecesse, foram, antes de mais ninguém, o próprio Donato e havia três pessoas na administração que poderiam colocar fim nessas investigações: o Controlador, eu e o ex-secretário Donato. Eram as únicas três pessoas que poderiam comprometer o sucesso. E o Donato não o fez. A Controladoria era hospedada na Secretaria de Governo, a dele, antes de virar lei.”
--Mas, do ponto de vista político, o senhor não acha que ele poderia ter se afastado antes que a crise crescesse? O custo para o senhor e seu governo não seria menor?
“Não acho… É difícil saber. Futuro do pretérito é difícil em política.”
--Uma porção importante de integrantes do partido, o PT, está sendo presa nesses dias, por envolvimento no chamado “mensalão”. Enquanto outra, essa que o senhor representa, está agora investigando e levando às prisões. São dois movimentos distintos. O PT não teria que apoiá-lo acintosamente?
“O que mais me entristece é ver um jovem rejeitar a política por considerações de natureza moral e ética. Para mim, as Artes, a Ciência e a Política são as três áreas em que o ser humano consegue inovar. A vida inteira acreditei nessas três esferas de valor, que são expedientes de grandes transformações sociais que têm repercussão universal. Quando vejo alguém rejeitar a política, me causa um desconforto enorme. Então, nós devemos isso. Sem entrar em julgamentos, nós, da nova geração da política, devemos isso, o resgate dos valores éticos, morais.”
--Diante dos fatos, sem fazer julgamentos, como diz o senhor, essa ação do PT, do prefeito aqui em São Paulo seriam um momento e movimento contrários, opostos ao de setores do PT que foram julgados na prática?
“Vamos abstrair um pouco os indivíduos e pensar no governo Lula do ponto de vista institucional. O impulso que o governo Lula deu para a autonomia da Polícia Federal, do Ministério Público e da Controladoria Geral, ninguém fez. O Lula não nomeou nenhum engavetador. Sempre o primeiro da lista tríplice da própria carreira. A Polícia Federal chegou a investigar o próprio irmão dele. A autonomia que o Jorge Hage (CGU) tem, assim como o nosso controlador… Ele, Hage, não despacha com a presidente. O plano de trabalho dele é totalmente independente e não discute com o executivo, como se fosse um plano de governo. Não se cobra satisfações do Hage ou do Spinelli. Isso não existe. O impulso que foi dado. Os próprios ministros do STF, gostem deles ou não, foram em maioria indicados pelos governos Lula e Dilma. E estão fazendo trabalhos independentes.”
--O que se pretenderia seria o combate à corrupção sem ‘erros políticos’?
“É a máxima brasileira de todos os tempos. ‘Nós exigimos de você uma revolução, desde que você não mexa em nada’. Essa é a máxima do Brasil. Existe um pensamento conservador de que tudo tem que mudar para que tudo permaneça como está.”
--Giuseppe Tomasi di Lampedusa?
“Isso mesmo. Mudar tudo para que tudo fique como está.”
--Já tem algum substituto para o Donato?
“Vou esperar até o final de semana para conversar com algumas pessoas. É um cargo muito chave para a Prefeitura.”
--O mundo político espera que, em algum momento, as ações da Corregedoria parem. Até onde o senhor vai com um ano eleitoral pela frente?
“Nós colocamos um processo em andamento. Ele tem uma dinâmica própria e não haverá recuo. O grande mérito da Controladoria é que ela não pode ser controlada por mim. E não será. Todo mundo tem interesse que a verdade venha à tona.”
--O que lhe causou espanto no descompasso dessa cobertura?
“Se o que se deseja mesmo é chegar aos esclarecimentos dos fatos, há procedimentos que precisam ser corrigidos. Como por exemplo, a capa da “Folha” da última quinta-feira. Entra para a história das “grandes capas”, junto com a ficha falsa da Dilma. Vai se situar na história na mesma configuração, do mesmo capítulo do que é possível se produzir no Brasil em termos de distorção. A própria 'ombundsman' do mesmo jornal, e é bom e justo que isso também seja ressaltado, analisou isso no último domingo.”
--O ex-governador e ex-prefeito José Serra disse, na semana passada, que “foram descobertas denúncias gravíssimas” e que “é inegável que há confronto entre partidos, na tentativa de usar isso como marketing político”. O senhor acha que é isso que ocorre?
“Se isso estiver acontecendo, eu só lamento. Porque numa “batalha de marketing”, a única vítima é a verdade.”
Foto: Fernando Borges / Terra
FONTE: reportagem do jornalista Bob Fernandes publicada no portal “Terra Magazine”
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