quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O ataque aos sindicatos é o ataque ao seu ganha-pão

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

  Os sindicatos sempre estiveram sob fogo cerrado porque são as principais ferramentas de organização e defesa dos trabalhadores. Os sindicatos atuam ao nível da estrutura econômica, portanto, interferem diretamente nos interesses econômicos dos donos do Dinheiro. Sozinho o trabalhador não tem nenhum poder para enfrentar o capital.  O único poder social dos trabalhores é o seu número porque ele se encontra em grande quantidade. Mas esse poder numérico só existe se o trabalhador estiver organizado em sindicato.

     Os sindicatos aumentaram sua importância porque estamos num momento crucial da história do país. Recentemente o país sofreu um golpe de Estado que fez a fome retornar com força, piorou ainda mais a situação da indústria, o Imperialismo ganhou ainda mais poder, a situação dos trabalhadores entrou numa regressão inédita, o desemprego e a desigualdade  explodiram.  Entre os golpistas há inúmeras discordâncias: em relação a Bolsonaro, em relação ao enfrentamento da pandemia, etc. Mas eles têm grande unidade em relação ao programa econômico de guerra contra a população, que entrega riquezas ao estrangeiro e destrói direitos trabalhistas e sociais.

     O golpe de 2016 levou a um retrocesso político e econômico muito grande. O país está nas mãos de uma direita terraplanista completamente lunática, e sob o jugo dos militares. O fato coloca o risco concreto não só de um golpe militar aberto, num eventual agravamento da situação econômica, mas da instalação de um regime fascista. Para o qual, inclusive, o fato do núcleo de poder federal já ser fascista, contribuiu enormemente. Enquanto somos distraídos pelos crimes menores dos golpistas (rachadinhas e outros), o regime vai se movendo à direita, com perdas de direitos, assassinatos de líderes populares, destruição dos sindicatos, e assim por diante. Ao mesmo tempo, em meio a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, avançam as chamadas reformas neoliberais, sobre as quais há total unidade da burguesia. Por exemplo, acabaram de aprovar no Congresso o novo marco regulatório de água e saneamento no Brasil, que abre o setor para as empresas privadas.

    A queda da taxa de sindicalização, entre 2012 e 2018, de 16,1% para 12,5% decorre do imenso fogo cruzado sobre os direitos dos trabalhadores e suas organizações. A crise econômica atual, que é a mais brutal da história, fez disparar o desemprego e a precarização do trabalho, dois inimigos ferozes da sindicalização e dos sindicatos. Mas é o conjunto dos ataques para cima dos trabalhadores que explica uma queda tão expressiva da sindicalização. Por exemplo, a partir de 2016 começou a proliferar empregos por contra própria e sem carteira assinada, segmentos que tradicionalmente não se aproximam dos sindicatos. Ademais, explodiu o número de trabalhadores de aplicativos, a maior parte por conta própria, que também não se organizam através de sindicatos.

     Existe uma relação direta entre precarização do trabalho e queda da taxa de sindicalização. Quanto mais precário for o mercado de trabalho, mais informal, mais sem regras, menor a possibilidade de o trabalhador se organizar sindicalmente. A barbárie no mercado de trabalho dificulta muito a organização dos trabalhadores em sindicatos. O esforço do governo Bolsonaro para desmontar o mercado de trabalho tem por detrás o cálculo de desmonte também da organização sindical.

     Na primeira década dos anos 2000, a geração de empregos e a formalização do mercado de trabalho, aliviaram a tendência estrutural, que vinha desde a década de 1990, de precarização e piora na vida dos trabalhadores. Esta evidente melhora do mercado de trabalho possibilitou também uma elevação da sindicalização. Dentre outras razões porque os trabalhadores identificavam as melhorias, com o trabalho dos sindicatos. Uma das primeiras medidas dos golpistas de 2016 foi acabar com a política de ganhos reais do salário mínimo, implantada pelo Governo Lula em 2005, através de negociação com as centrais. Segundo o DIEESE, os ganhos reais do salário mínimo melhoravam a cada ano, diretamente, a vida de quase 50 milhões de pessoas que recebem remuneração correspondente ao piso nacional – assalariados, aposentados e pensionistas, trabalhadores por conta própria, domésticos. Se considerarmos que cada família tem em média três membros, a medida impacta direta e indiretamente a vida de quase 150 milhões de brasileiros.

     Uma política de ganhos reais do salário mínimo no Brasil é muito importante, na medida em que os salários são muito baixos. Os ganhos reais do salário mínimo, enquanto a política durou (Bolsonaro já acabou com a referida política) provocaram uma repercussão importante sobre os salários. Quando o salário mínimo aumentava conforme o crescimento do PIB, a tendência era empurrar toda a escala salarial para cima, impactando todos os níveis salariais, até mais ou menos, três salários mínimos. Começou a ficar evidente, por exemplo, que os pisos salariais por categoria tinham valor muito baixo.

     Foi na esteira desta ascensão do movimento sindical brasileiro, na primeira década dos anos 2000, que o movimento sindical catarinense obteve, possivelmente, a sua conquista histórica mais importante, que foi a obtenção dos pisos salariais estaduais, em 2009 (começou a vigorar em janeiro de 2009). Conquista esta que apenas cinco estados da federação obtiveram, sendo que a de Santa Catarina foi a que mais mobilizou os trabalhadores, porque decorreu de uma campanha popular no estado. Uma vitória daquela envergadura seria praticamente impossível neste momento em que os direitos estão sendo liquidados em escala e velocidades industriais.

      As ações de destruição de direitos e da soberania são em grande número, o que dificulta até o acompanhamento. Todo esse processo atrapalha muito a ação sindical. A quantidade de direitos sociais e sindicais, liquidados a partir do golpe de 2016 são, por si só, a demonstração de que a correlação de forças continua muito desfavorável aos trabalhadores. É perfeitamente normal que os representantes do Capital não gostem de sindicatos. Comprovadamente, estes são a melhor arma da esmagadora maioria dos trabalhadores proteger seu emprego e renda.

     Mas aos incautos que, apesar de viverem do seu trabalho, alimentam uma cultura antissindical, é fundamental lembrar que os ataques aos sindicatos, representam ataques a todos os trabalhadores. Especialmente os que ganham menos. Estão tentando demolir os sindicatos, pelo simples fato de que um governo de extrema direita, com nuances claramente fascistas, está acabando com empregos, rendimento, e com a soberania do país. Os sindicatos precisam ser esmagados porque representam um obstáculo na transformação do Brasil, definitivamente, numa colônia dos Estados Unidos.

     A força de trabalho no Brasil, em 2019, era formada de 106 milhões de pessoas, metade da população. Com base nos dados da PNAD-IBGE, verificamos que mais de 95% da força de trabalho no Brasil é formada de trabalhadores (assalariados, conta própria, etc.). Mesmo entre os quase 5% de empregadores registrados pela PNAD, certamente a esmagadora maioria são micros e pequenos, cuja inserção no mercado de trabalho, muitas vezes, tem características muito próximas aos dos trabalhadores. Além disso o empregador também vive do trabalho. Vive do trabalho dos outros: porque é justamente uma parcela do trabalho não pago ao outro, que possibilita que ele faça reservas. Ao contrário do que alguns possam imaginar o lucro do empregador não é obra do espírito santo, e sim uma parte da riqueza produzida pelo trabalhador. Quando o governo entreguista e antinacional de Bolsonaro procura destruir os sindicatos, sua intenção é esmagar o rendimento de 95% dos brasileiros.

 

                                                                                                 *Economista 26.08.20.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

O ataque aos serviços públicos, e a dívida

 

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso

    Nos últimos tempos, no contexto mais amplo de ataques ao setor público, tem se intensificado também as investidas contra o funcionalismo público. Dentre outros objetivos, esta visa colocar a população contra os servidores. Se a população avaliar que o servidor é privilegiado, que não quer trabalhar, que ganha muito, fica mais fácil desmontar os serviços de saúde e educação, objetivos inconfessáveis da campanha. Regra geral tal campanha, a exemplo da campanha em geral pela privatização de estatais, é alicerçada em mentiras, senso comum e mistificações.

     Por exemplo, se dissemina sem dó o diagnóstico de que o Estado no Brasil é muito inchado, que existem muitos servidores públicos, serviço público é um “cabide de empregos”, etc. O fato é, que o Brasil é um dos países que menos tem funcionários públicos, na comparação com a população total de trabalhadores do país. Nessa comparação fica atrás, por exemplo, de quase todos os países europeus, que têm em média entre 10% a 15% do total de empregados no serviço público. Segundo o Atlas do Estado, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os vínculos de trabalho do setor público no Brasil aumentaram mais de 82% nas últimas duas décadas, saindo de cerca de 6,3 milhões de trabalhadores em 1995 para 11,5 milhões em 2016. Esse total inclui todos os segmentos: servidores concursados, estatutários, regidos pela CLT, e os de cargos comissionados. O total de vínculos, inclusive, é diferente do número de funcionários, visto que uma mesma pessoa pode ter mais de um vínculo. O fato é que, mesmo com a elevação nos últimos anos, o número de servidores no Brasil é inferior à média dos países desenvolvidos.

     Se pegarmos os dados de 2017, verificamos que no Brasil cerca de 12,1% da população ocupada trabalhava no setor público. Este percentual equivale a dois terços dos 18% de média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e mesmo em relação a países mais neoliberais, como os EUA (15,2%) e Reino Unido (16,4%). Países estes, que vem desmontando seus estados de bem-estar social, que algum dia já foi mais forte (especialmente no caso do Reino Unido).  

      O Brasil gastou no ano passado o equivalente a cerca de 13,7% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as esferas e poderes. Dos 11,4 milhões de vínculos de trabalho no setor público, uma boa parte atua em áreas sociais, como saúde e educação. Segundo dados da RAIS/2018, metade dos funcionários públicos ganhava até 3 salários mínimos (R$ 2,9 mil, considerando o valor do mínimo de 2018). Apenas 3% ganhava mais do que 20 salários mínimos (R$ 19,1 mil). Um funcionário público brasileiro ganha, em média, 8% a mais do que um trabalhador que exerce função semelhante no setor privado.

     Segundo dados do Banco Mundial, num conjunto de 53 países, na média internacional, o funcionário público ganha 21% a mais que o trabalhador do setor privado. Portanto, no Brasil, a diferença é bem menor. A diferença para mais, de 8% em funções similares no setor público, não significa nada, considerando que no setor privado os salários de uma forma geral são extremamente baixos. O setor público tem obrigação mesmo de melhorar os salários, até porque faz exigências maiores de qualificação.

     É verdade que nos poderes da República há muita diferença salarial, o que, frequentemente, confunde o observador. No Executivo, por exemplo, onde se concentram professores, médicos, policiais, apenas 25% dos trabalhadores ganham mais de R$ 5 mil. No poder Legislativo, onde estão vereadores, deputados, senadores e seus funcionários, mais de 35% recebe mais de R$ 5 mil. No Judiciário, onde trabalham juízes, promotores, funcionários de fórum, o percentual dos que ganham acima de R$ 5.000 sobe para mais de 85%.

     É evidente que o setor público brasileiro contém importantes distorções salariais, que precisam ser corrigidas. Os 16,2 mil juízes em atividade no Brasil ganham, em média, R$ 46 mil mensais e três em cada quatro recebem mais do que o teto do funcionalismo público, de R$ 39.293 mil. Atualmente um auxílio-moradia de um juiz está custando R$ 4.377,00. Praticamente duas vezes o salário médio de todos os ocupados no Brasil. É um negócio vergonhoso, uma clara distorção que precisa ser corrigida.

     Apesar desse tipo de distorção (certamente existem outras), esta não é a realidade da maioria dos servidores públicos. Como vimos, metade dos funcionários públicos ganha até 3 salários mínimos. Porém, a partir dessas distorções salariais, se construiu uma montanha de mentiras a respeito do funcionalismo público, que se dissemina no seio da sociedade, visando atingir os serviços públicos de uma forma geral, com intenção de privatizá-los. É uma verdadeira máquina de trituração da reputação dos servidores públicos. São ataques sórdidos, que obedecem a uma estratégia internacional de destruição do serviço público, desencadeada, dentre outros, por grandes empresas multinacionais, atrás de bons negócios.    

     Enquanto se desenvolve a estratégia de desmonte dos serviços públicos, o Brasil continua destinando quase metade do orçamento federal para o pagamento de juros e o rolamento da dívida pública federal. No ano passado o governo federal destinou aos banqueiros e rentistas a soma de R$ 1,038 trilhão ou 38,27% de todo o orçamento público federal. O governo Bolsonaro, segundo o Tribunal de Contas da União, gastou apenas R$ 11,4 bilhões, dos R$ 38,9 bilhões, da verba emergencial destinada ao combate da pandemia. Isso no instante em que o Brasil emplaca 3.460.413 contaminados e 111.000 mortos (isso, registrados). Enquanto isso, pela Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, estão previstos R$ 409,6 bilhões para o pagamento de “Juros/Encargos da Dívida Pública” neste ano.

     São quase meio trilhão de reais. Isso representa 1,1 bilhão de reais todo santo dia, somente este ano. Se transfere todo ano, bilhões e bilhões para algumas centenas de rentistas (que em boa parte nem moram no Brasil). Somente os gastos com os juros e encargos da dívida pública deste ano já totalizam um valor superior ao que o governo espera arrecadar com a torra de patrimônio púbico neste ano. E, praticamente, nem se fala nisso. Querem entregar a Eletrobrás, um patrimônio estratégico, por 18 bilhões e destinam diariamente um R$ 1,1 bilhão para os rentistas, em nome de uma dívida que não resiste a uma auditoria pública.  

     O debate sobre uma reforma administrativa deve seguir caminho contrário ao que a extrema-direita e os golpistas estão querendo trilhar. Ou seja, o debate deve ser feito a partir das necessidades do país e de seu povo, em busca do desenvolvimento econômico e social. Mas está claro que é impossível fazer tal debate com o atual governo, que na verdade quer destruir os serviços públicos e transformar o Brasil definitivamente numa colônia dos EUA. As questões do debate não são meramente técnicas e sim também políticas, ligadas à correlação de forças. A discussão sobre o Estado brasileiro, funcionalismo e serviço público tem que ser precedida da retomada da democracia no país.

                                                                                                               *Economista. 24.08.2020.

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A sórdida campanha contra o Setor Público no Brasil

 

                                                                              *José Álvaro de Lima Cardoso

     Já há muitas décadas existe no Brasil (e no mundo) uma campanha contra o serviço público, desdobrada em combate permanente às estatais e as estruturas públicas, de uma forma geral. Essa campanha é especialmente dura contra o funcionalismo público. A onda neoliberal que começou a varrer o mundo a partir dos anos de1980, rebaixou o Estado em geral à condição de culpado de todos os males do mundo. Essa onda praticamente começou, mais fortemente, em 1979 com a assunção de Margareth Thatcher no governo do Reino Unidos e se reforçou com a eleição de Ronald Reagan nos EUA, em 1981. As primeiras eleições pós ditadura no Brasil, em 1989, já tiveram como uma das suas tônicas principais a demonização do Estado e do funcionalismo público. Para tanto, a burguesia brasileira construiu em alguns meses, um “caçador de marajás” que iria salvar o Brasil de todo o mal, Fernando Collor de Mello.

     Com o golpe de Estado no Brasil em 2016, coordenado pelos EUA, em conluio com conspiradores internos, somado à fraude eleitoral de 2018, que alçou a extrema direita ao núcleo do poder, os ataques ao setor público no Brasil foram elevados à décima potência. O governo Bolsonaro trata todos os trabalhadores como inimigos. Mas, dentro da classe trabalhadora o funcionalismo público é o inimigo principal. Esse sentimento pode ser ilustrado pela linguagem metafórica que Paulo Guedes utilizou na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, quando se referiu à proposta de suspender por dois anos os reajustes salariais de servidores públicos: “já colocamos a granada no bolso do inimigo”. Essa pérola pode ser apreciada em vídeo disponível na internet.

     A grande imprensa em geral desenvolve, historicamente, uma campanha diuturna contra o funcionalismo público e para isso, se utiliza de todos os instrumentos. Esse ataque é tão sistemático, que influencia fortemente, inclusive, alguns sindicatos do setor privado e suas respectivas bases. Imaginem um entregador de comida por aplicativos, que precisa trabalhar 10 horas diárias para apurar uma renda mensal de R$ 1.500,00, (seco, sem carteira assinada e sem benefícios), assistir na TV que o auxílio-moradia de um juiz (R$ 4. 4.377,73) equivale a três meses de salário dele. A tendência é este trabalhador supor que esta é a condição do servidor público, em geral.  Na cabeça desse trabalhador, tal distorção explicaria, inclusive, a razão do teu salário ser tão baixo.  A matéria da TV ou do rádio, ou não mencionam, ou esse trabalhador hipotético não pararia para escutar, que metade dos servidores no Brasil ganha menos de R$ 2,7 mil por mês, brutos (ou seja, antes dos descontos).

     Os ataques sofridos pelo setor público ocorrem em várias frentes: mentiras e distorções disseminadas à vontade, tentativa de privatização de tudo que é público, venda de ativos das empresas públicas a preço de banana, destruição dos direitos do funcionalismo, e assim por diante. Esta campanha contra o setor público, que inclusive faz parte de uma articulação internacional, visa colocar o Estado exclusivamente ao serviço dos ricos. Por uma série de fatores, sabe-se que os servidores públicos no Brasil detêm uma boa capacidade de organização e mobilização, o que significa também uma razoável condição de oposição aos privatistas de uma forma geral. Por isso querem destruir as organizações sindicais em geral, mas especialmente as estruturas sindicais que organizam as lutas dos trabalhadores do setor público.  

      No Brasil o ataque aos servidores públicos está ligado também à pressão para que saiam do isolamento social decorrente da pandemia, já que essa é a orientação da burguesia no mundo todo. Os EUA e o Brasil são o epicentro da doença no mundo, com cerca de 40% dos doentes e 36% das mortes no conjunto do globo, somados. E a orientação do Capital no mundo todo é “primeiro os lucros, depois as vidas”! Os bocas-alugadas do capital, em todo o Brasil, têm se mostrado muito irritados com a minoria de trabalhadores públicos que ainda está conseguindo se proteger da doença através do isolamento social. Seguem as ordens de seus patrões, que querem que os trabalhadores assumam os seus postos, ignorando os riscos de contaminação. Como os donos do dinheiro, e muitos dos seus porta-vozes, não trabalham mesmo, fica fácil mandar os outros assumirem seus postos.

     O setor privado no Brasil, na prática, já saiu do isolamento social, assim como uma parcela expressiva também do setor público. A pressão é para que o setor público saia também totalmente do isolamento, independentemente do risco que isso signifique para os servidores e seus familiares. Existe, por exemplo, uma campanha contra os professores, que estão sendo acusados de “ganhar em casa sem trabalhar”, de ficar fazendo uma “boquinha” em casa com salários garantidos, e assim por diante. Evidentemente o objetivo é jogar a população contra os servidores, como se estes fossem culpados pelo isolamento social decorrente da covid-19.

     Os bocas-alugadas do capital, os políticos de partidos de direita, e os grandes empresários, que puxam a campanha para os servidores saírem do isolamento, obviamente estão bem protegidos da doença. Trabalham em casa, contando com todas as condições possíveis de resguardo. Quem sofre os ataques são justamente os servidores públicos, que estão na linha de frente do combate à Covid-19, lutando contra o vírus, a falta de condições de trabalho e em constante risco de contaminação. São trabalhadores que estão na linha de frente da guerra à doença. Muitos deles, inclusive, sacrificando a própria vida.  

                                                                                               *Economista 20.08.20

                                                                                             

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O colossal e perigoso retrocesso trazido pelo golpe no Brasil

                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso.

        Por conta da crise econômica e dos golpes de Estado, que atingiram quase todo o subcontinente, a situação política na América Latina é instável e caracterizada por grande polarização. Com a crise mundial, para o imperialismo não foi mais possível conviver com governos reformistas e nacionalistas, que atrapalhavam as intenções dos EUA na região. A crise econômica mundial tornou imperativa uma política geral de guerra contra os direitos da população. Governos de esquerda, mesmo que moderados, são sempre obstáculos importantes a implementação deste tipo de política, mesmo porque chegaram ao poder respaldados pelo voto. Obviamente que esse tipo de política antipopular gera uma instabilidade muito grande, na medida em que uma parcela expressiva da população (mais consciente) se nega a seguir para o matadouro, sem lutar.  

     No Brasil, os golpistas diziam que era tirar Dilma Roussef que o crescimento econômico e os investimentos internacionais retornariam, como num passe de mágica. Dado o golpe, com a grande farsa do impeachment, o governo Michel Temer foi um verdadeiro show de horrores, com continuidade na política de destruição do Estado e um retumbante fracasso na economia. Para “fechar” o processo golpista, fraudaram as eleições de 2018, apoiados numa operação gestada no Departamento de Estado norte americano, a Lava Jato (cada vez mais desmoralizada pelo oceano de denúncias), entrou Bolsonaro e a coisa só piorou. Com o advento da pandemia, logo de saída ficou evidenciado que Bolsonaro é o pior governo da história do país, uma penitência cruel, que o povo brasileiro jamais mereceria.

     Passados quatro anos do golpe de 2016 no Brasil (tomando o impeachment de Dilma Roussef como referência. Claro que as articulações começaram antes.), é evidente a degradação do regime político vigente. Era inevitável que isso acontecesse já que os governos pós Dilma são frutos da liquidação do pouco de democracia que o país usufruía até o golpe. Com as denúncias recentes, principalmente acerca da Lava Jato, até as pedras já sabem disso. Por isso muitos agora querem limpar a própria biografia, querendo dar a impressão de que nada tiveram com o golpe.      

      O fato é que o golpe levou a um retrocesso político e econômico muito grande. O país está nas mãos de uma direita terraplanista completamente lunática, e dos militares. O fato coloca um risco concreto não só de um golpe militar aberto, numa eventual piora ainda maior da situação econômica, mas da instalação de um regime fascista. Para o qual, inclusive, o fato do núcleo de poder federal já ser fascista, contribuiu enormemente.

     Enquanto somos distraídos pelos crimes menores dos golpistas (tipo “rachadinha”), há uma direitização constante do regime, com perdas de direitos, assassinatos de líderes populares, destruição dos sindicatos, etc.. Ao mesmo tempo, em meio a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, avançam as chamadas reformas neoliberais, sobre as quais há total unidade da burguesia. Por exemplo, acabaram de aprovar no Congresso o novo marco regulatório de água e saneamento no Brasil, que abre o setor para as empresas privadas.

     Um outro exemplo de como a direita avança enquanto nos distraímos. Pela Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, estão previstos R$ 409,6 bilhões para o pagamento de “Juros/Encargos da Dívida Pública” neste ano. Quase meio trilhão de reais. Isso representa 1,1 bilhão de reais todo santo dia, somente este ano. Se transfere todo ano, bilhões e bilhões para algumas centenas de rentistas (que em boa parte nem moram no Brasil). Somente os gastos com os juros e encargos da dívida pública deste ano já totalizam um valor superior ao que o governo espera arrecadar com a torra de patrimônio púbico. E, praticamente, nem se fala nisso. 

     Apesar do evidente avanço dos golpistas no Brasil (e em toda a América Latina), eles não conseguiram dar uma estabilidade política ao país, há grande polarização política no país.  A instabilidade está relacionada diretamente com o fato de que eles não conseguiram dar uma saída para a crise econômica. E o seu programa de governo, que se resume a destruir direitos e entregar patrimônio, obviamente tendem a piorar a situação no médio prazo.  

    Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que comanda verdadeiramente o processo no Brasil), quer mais. A grande mídia, e os setores conservadores em geral, reclamam, inclusive, do fato de que as privatizações não estão caminhando. Ou seja, toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o enfraquecimento da Petrobrás, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e deram o golpe no Brasil. 

     Na outra ponta da corda a população come o pão que o diabo amassou. Segundo a pesquisa Pnad Covid-19, do IBGE, a taxa de desemprego chegou a 13,7% na última semana de julho. São 12,9 milhões de desocupados, 3 milhões a mais do que na primeira semana de maio, quando a taxa de desocupação estava em 10,5%. Além dos quase 13 milhões de desempregados, 28 milhões gostariam de trabalhar, mas foram considerados fora da força de trabalho na última semana de julho, por não terem buscando ativamente uma ocupação. Ou seja, numa população ocupada de 81 milhões, no final de julho o país tinha mais de 40 milhões de desempregados e aqueles que gostariam de trabalhar, mas não buscaram ocupação por alguma razão. Isso, em meio à uma pandemia que já matou quase 110.000 pessoas no país, boa parte delas por incompetência e descaso governamentais. Neste quadro, é impossível haver estabilidade política no país.

 

                                                                                                *Economista. 17.08.20

sábado, 15 de agosto de 2020

Celso Furtado e o ofício de interpretar o Brasil

 

 *José Álvaro de Lima Cardoso

    ”Poucos de nós temos consciência do caráter profundamente anti-humano do subdesenvolvimento. Quando compreendemos isto, facilmente explicamos por que as massas estão dispostas a tudo fazer para superá-lo” (Celso Furtado, A pré-revolução brasileira).

     Em 26.07.20 comemorou-se 100 anos de nascimento de Celso Furtado, tido como um dos grandes “intérpretes” do Brasil.  Durante mais de cinquenta anos, esse paraibano de Pombal se dedicou à difícil e (fascinante) tarefa de entender a economia e a sociedade brasileiras. A obra de Celso Furtado reflete a permanente tentativa de entender o Brasil, no contexto latino-americano, e propor saídas para o subdesenvolvimento crônico, que acomete toda a Região. O essencial da exuberante obra do autor, mesmo tendo sido formulado mais nas décadas de 1950 e 1960, é muito atual. Dentre outras razões, porque os problemas que ele catalogou não foram resolvidos (por exemplo, o Subdesenvolvimento).   

     O autor misturou fina inteligência e o conhecimento de economia, com evidente sensibilidade social. Sua abordagem, ainda mais para os anos de 1950, era heterodoxa, se opunha aos padrões estabelecidos pelas teorias dominantes. Celso Furtado defendeu em suas obras e palestras, com a necessária frequência, uma ideia fundamental para os dias atuais: os países que se sujeitam a divisão internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estarão condenados ao subdesenvolvimento. Ou seja, não há desenvolvimento social e econômico sem postura soberania. Uma ideia chave, especialmente em tempos de descarada capitulação.

     A abordagem histórica perpassa as obras de Furtado. Como dizia ele, no “começo eu pensava ser historiador”. Mas o economista lia sobre muitos assuntos como ciência política, antropologia, filosofia, geografia, métodos quantitativos, além de história econômica, é claro. Levava muito a série a ideia de que para ser um bom economista, tinha que olhar muito além da economia.

     A obra de Celso Furtado tem como preocupação central a questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, incluindo a forma como as economias subdesenvolvidas e periféricas se inserem no sistema mundial. Ao contrário dos economistas da Escola Neoclássica, que destacavam as vantagens relativas da especialização produtiva dos países atrasados (ou subdesenvolvidos), Furtado irá mostrar em seus textos que a natureza das relações entre países centrais e subdesenvolvidos, bem como a própria estrutura social interna dos países periféricos, impedem o desenvolvimento e as mudanças sociais.

      Celso Furtado tinha constante preocupação também com o planejamento e com o desenvolvimento regional. Lhe interessava grandemente o desequilíbrio regional do Brasil, tendo defendido praticamente em toda a sua vida profissional, a necessidade de um amplo incentivo para o desenvolvimento nordestino. Por isso participou do Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste e, fomentou a criação de um órgão de planejamento regional – a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959. As formulações de Celso Furtado relacionam-se ao chamado enfoque Estruturalista Latino-Americano, que teve como centro os intelectuais e técnicos reunidos na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), instituição criada em 1948 pela Conselho Econômico e Social das Nações Unidas.

     Economia Estruturalista é uma abordagem da economia que destaca a importância de levar em conta características tipicamente estruturais ao empreender a análise econômica. Esta escola surgiu basicamente com o trabalho da CEPAL e está associada principalmente ao seu diretor Raúl Prebisch e Celso Furtado. Uma das preocupações centrais das formulações da Cepal era como o Estado poderia contribuir para o sistema de desenvolvimento econômico nas sociedades periféricas. Preocupação que se mostrou muito legítima, pois todo o desenvolvimento brasileiro desde então se deu a partir do coordenação e apoio do Estado.

     Ao estudar o subdesenvolvimento do Nordeste, Furtado percebeu que o problema da seca integrava um contexto de atraso, concentração de renda, baixa produtividade, e dominação econômica e política por parte das oligarquias. Ele irá mudar, juntamente com outros grandes conhecedores da Região, a perspectiva sobre os problemas do Nordeste. Tanto a Sudene quanto o Banco do Nordeste representavam a nacionalização da questão nordestina, relacionando-a à integração regional. A Sudene e o planejamento estatal tornaram-se recursos centrais para o desenvolvimento nordestino.

     Um dos pontos fundamentais dessa proposta de reformulação trazida pela Sudene foi o combate ao que se convencionou chamar de indústria da seca, ou seja, o uso dos recursos federais em proveito da estrutura de poder tradicional, das oligarquias nordestinas, sobretudo nas regiões mais secas do semiárido nordestino. A ideia de Furtado era transformar um problema, que era a pobreza e a desigualdade do Nordeste em relação ao resto do país, numa tremenda solução. Para tanto, defendia a realização de uma reforma agrária, que desse outro destino ao excedente rural, que não o uso improdutivo, e possibilitasse um vigoroso incentivo à industrialização da região. O que contribuiria para o desenvolvimento do país, como um todo.

     Furtado percebia que o futuro do Brasil como nação dependeria da transformação do Nordeste, pois as divisões regionais e sociais acabariam por comprometer o desenvolvimento, e a própria unidade política do Brasil. Celso Furtado era um radical no pensamento, mas um conciliador na política. Sabia que suas propostas não seriam “engolidas” por outros, teria que convencê-los. Mas suas propostas de industrialização, combate à pobreza, e às desigualdades regionais, entravam em rota de colisão com os setores conservadores e com a burguesia nacional, especialmente a mais atrasada e entreguista. Era um período de muita ebulição política e social. O país tinha sofrido uma tentativa de golpe de Estado em (1954), mais uma tentativa de golpe em 1961 (militares não queriam deixar João Goulart assumir) e os mesmos conspiradores e golpistas, sob coordenação dos EUA, estavam articulando outro golpe, que viria a ser sacramentado em 1964.

     Em 1963, já como ministro de Planejamento de João Goulart, Furtado lança o Plano Trienal, elaborado em apenas três meses por uma equipe coordenada por ele. As políticas econômicas iniciais de Goulart não tinham funcionado. O objetivo do Plano Trienal era controlar a inflação (foi de 51,6% em 1962, 79,9% em 1963, e em rota de elevação) retomar o crescimento, e distribuir melhor a renda. O plano previa uma política de substituições das importações gradualmente, aumento dos investimentos do Estado, crescimento rápido da indústria. Um dos objetivos do Plano era criar condições para que os frutos do desenvolvimento se distribuíssem de maneira cada vez mais ampla pela população. Para isso os salários reais deveriam crescer com taxa idêntica à do aumento da produtividade do conjunto da economia, após os ajustamentos decorrentes da elevação do custo de vida (disso os golpistas de 1964 não perdoariam Furtado).

     Suas propostas à época (e ainda hoje), eram “subversivas”: reforma agrária, mudança na estrutura tributária, distribuição de salários conforme a produtividade. Em países dependentes e periféricos, todas essas reformas capitalistas, assumem um caráter revolucionário, dado o conservadorismo da burguesia brasileira e à forma subordinada de inserção do Brasil na economia internacional. A própria proposta de industrialização do pais e da região nordeste assumia um caráter transformador muito forte. Não se conseguiria implementar aquelas mudanças à frio, apenas através de medidas governamentais e negociadas, como a história iria demonstrar.

     É claro que as medidas propostas no Plano Trienal continham problemas e lacunas, como ocorre com 100% dos planos econômicos. Haveria muito o que debater tanto no Plano Trienal, quanto no conjunto da abordagem de Celso Furtado sobre outros temas. Mesmo porque, a crítica fundamentada é vital ao desenvolvimento da ciência e da reflexão. Mas não se tratava de deficiências técnicas do Plano Trienal, e sim da viabilidade política de sua implementação. O golpe de 1964 mostrou que, naquela conjuntura, não havia correlação de forças para implementar um plano que, mesmo que moderadamente, atendia ao grosso dos interesses nacionais.

    Após o golpe de 1964, a ditadura militar reconfigurou a Sudene, mantendo o poder dos coronéis, e implementou mecanismos autoritários de planejamento na utilização dos recursos vindos do governo federal. Com o golpe, Celso Furtado, um reformista e conciliador, é exilado. Furtado não poderia ser mesmo suportado pela ditadura: gostava do Brasil e do seu povo, e era nacionalista. Além de tudo era um sujeito extremamente culto, autor de quase 40 livros.  Isso tudo são defeitos insuportáveis para uma ditadura repressora do seu povo e lambe botas do imperialismo, como foi a de 1964.

     Dentre as ideias de Celso Furtado, merece destaque a de que os países que se sujeitam a divisão internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estão condenados ao subdesenvolvimento. Seria esperar muito que o atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, tivesse lido Celso Furtado. Mas não trata de conhecimento do problema, não é uma questão de domínio técnico da questão. É que a implementação das mudanças que Celso Furtado propunha, significaria retirar poder da burguesia monopolista internacional. E Paulo Guedes está ao serviço dessa.

                                                                                                *Economista. 14.08.20

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Rapinagem da América Latina: lidem com isso!

 

                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso.

     Os números da crise da economia mundial são impressionantes. O PIB dos EUA encolheu 32,9% no trimestre abril/maio/junho, a uma taxa anualizada. Foi a maior queda desde a Grande Depressão. Na Alemanha, motor da economia europeia, o PIB de abril a junho recuou 10,1% em relação ao trimestre anterior. É a queda trimestral mais acentuada desde 1970, quando os registros começaram a ser realizados. Se comparado ao mesmo período do ano passado, o recuo do produto alemão foi de 11,7%. O PIB da China subiu 3,2% no segundo trimestre na comparação com o mesmo período de 2019. No confronto com os três primeiros meses do ano, quando a economia do país parou, a alta foi de 11,5%. O crescimento chinês no segundo trimestre, baixo para o seu padrão histórico, destoa do resto do mundo. Mas a China é um ponto fora da curva, e a “fábrica do mundo”.

     No centro capitalista, não se trata somente de uma crise econômica, é também uma crise política brutal. Os Estados Unidos, mesmo usufruindo de todas as vantagens de ser o principal país imperialista da Terra, enfrentam grandes contradições internas, porque o seu modelo de desenvolvimento gera imensa desigualdade social. Pelo menos desde o governo Ronald Reagan (1981/1989), o estado de bem-estar norte-americano, que já era fraco, foi sendo paulatinamente destruído. Se estima que atualmente existam mais de 40 milhões de pobres nos EUA. Cerca de 40% dos estadunidenses se queixam de que não conseguem cobrir despesas inesperadas com emergências, que ultrapassem 400 dólares. Quase 30 milhões de pessoas nos EUA (quase 10% da população) vivem na chamada insegurança alimentar, não têm o suficiente para comer. A exemplo do Brasil, a insegurança alimentar nos EUA vem aumentando bastante com a pandemia. Além disso, os EUA têm cerca de 500 mil pessoas em situação de rua (morando na rua ou em abrigos públicos). A grande maioria são negros ou latinos.

     O fato de que os EUA tenham um número tão grande na condição de pobreza representa uma verdadeira bomba-relógio. Uma revolta geral dos trabalhadores dentro do país imperialista mais rico do mundo teria um efeito político, econômico e social, simplesmente imprevisível. Este risco, inclusive, talvez tenha influenciado a decisão dos EUA, há mais de uma década, de retomar para sua área de influência os governos da América Latina, naquele momento ocupados por governos progressistas. A partir de Honduras, em 2009, os EUA foram derrubando, um a um, todos os governos progressistas eleitos na América Latina.

     Por conta da crise econômica e dos golpes de Estado, que atingiram quase todo o continente, a situação política na América Latina é instável e caracterizada por grande polarização. Com a crise mundial, para o imperialismo não foi mais possível conviver com governos reformistas e nacionalistas, que atrapalhavam (ou atrapalham) as intenções dos EUA no subcontinente. A crise econômica mundial tornou imperativa uma política geral de guerra contra o povo. Governos de esquerda, mesmo que moderados, são sempre obstáculos importantes a implementação deste tipo de política, mesmo porque chegaram ao poder respaldados pelo voto. Obviamente que esse tipo de política gera uma instabilidade muito grande, na medida em que uma parcela expressiva da população (mais consciente) se nega a seguir para o matadouro, sem reagir.  

     No Brasil, os golpistas diziam que era tirar Dilma Roussef que o crescimento econômico e os investimentos internacionais retornariam, como num passe de mágica. Dado o golpe, com a grande farsa do impeachment, o governo Michel Temer foi um verdadeiro show de horrores, com entreguismo sem limites e um retumbante fracasso na economia. Para “fechar” o processo golpista, fraudaram as eleições de 2018, apoiados numa operação gestada no Departamento de Estado norte americano (cada vez mais desmoralizada pelo oceano de denúncias), entrou Bolsonaro e a coisa só piorou. Com o advento da pandemia, logo de saída ficou evidenciado que Bolsonaro é o pior governo da história do país, uma penitência cruel, que o povo brasileiro jamais mereceria.

     Quando afirmávamos em 2014, que a Lava Jato nada tinha a ver com corrupção e que era uma operação do governo estadunidense para roubar petróleo, água, recursos naturais em geral, biodiversidade da Amazônia, e para interromper um limitado processo de construção de um projeto nacional de desenvolvimento, nos acusavam de estar alimentando uma “teoria da conspiração”. Esses seis ou sete anos, desde a intensificação da construção do golpe, mostraram que a conspiração é muito mais grave do que qualquer teorização do fenômeno. Nessa altura dos acontecimentos as “confissões” dos crimes cometidos pelos responsáveis pela Lava Jato seria mais do que suficiente para anular toda a farsa do processo de impeachment. O fato de que isso não tenha ocorrido mostra que os golpistas ainda estão no poder (nos vários poderes).

     Os golpes na América Latina, desde o de Honduras, em 2009, possuem dois eixos comuns: a) desenvolvimento de uma política de guerra contra a população; b) saqueio da Região. Uma esquerda reformista no poder, por mais moderada que seja, atrapalha a implementação dos referidos eixos de governo. Um acontecimento bastante recente, serve para revelar ainda mais a natureza do processo que se desenvolve na América Latina. Elon Musk, dono da empresa Tesla e a 5ª pessoa mais rica do mundo, escreveu em sua conta no Twitter“Vamos dar golpe em quem quisermos! Lide com isso”. A ameaça foi uma resposta a uma postagem enviada ao bilionário sobre seu objetivo de impedir que o ex-presidente boliviano Evo Morales continuasse no poder, pelo interesse no Lítio (chamado de Petróleo Branco, a maior parte das reservas mundiais estão na Bolívia).

     A descarada confissão do bilionário revela que a América Latina está sendo, de fato, saqueada por autênticos ladrões. Convictos da impunidade, não fazem nem mesmo questão de esconder o fato. O ex-presidente boliviano Evo Morales (2006-2019), golpeado inapelavelmente pelo império em 2019, denunciou no dia 07.08.20 que um “novo golpe de Estado” está sendo gestado em seu país, visando dar poderes absolutos à ditadura de Jeanine Áñez e impedir que a esquerda volte ao poder, cenário muito provável, se houverem eleições. Além de apontar os nomes dos golpistas nacionais, Morales denunciou também a participação dos Estados Unidos, com consultoria e equipamento bélico para reprimir o movimento popular, principalmente nas regiões de El Alto e Chapare, onde, segundo consta, haverá mais resistência ao possível novo golpe de Estado.

      Os golpistas na Bolívia tentaram institucionalizar o processo, através de novas eleições diretas, nas quais Evo Morales, exilado na Argentina, não pode concorrer. Eleições totalmente fajutas. Apesar de tudo, o partido de Evo Morales (MAS), inscreveu um candidato para as eleições, que aparece bem à frente, nas pesquisas eleitorais. Em função da grande possibilidade do candidato do MAS vencer as eleições, mesmo com todas as manobras possíveis, provavelmente darão um novo golpe. O que acontece na Bolívia segue um script, que, adaptado em cada país, está sendo seguido em todo o subcontinente latino-americano.

 

                                                                                                *Economista. 10..08.20