postado em: 06/11/2013
Artigo de Marcos Antonio Macedo Cintra e Eduardo Costa Pinto no Carta Maior
A China planeja desempenhar um papel mais proeminente nas
finanças globais, dado o seu elevado montante de ativos financeiros (RMB
– veja nota abaixo – 113,3 trilhões em dezembro de 2011, o que equivale
a cerca de US$ 18 trilhões) e de reservas internacionais (US$ 3,5
trilhões em junho de 2013). Para alguns analistas estaria em curso um
processo de transição de uma potência manufatureira e comercial
(“fábrica do mundo” e primeira nação comercial) para uma potência
financeira, que passaria a explorar as vantagens competitivas do capital
monetário e bancário chinês em âmbito global.
Editorial recente da rede Xinhua – agência de notícias estatal chinesa – jogou ainda mais lenha nessa fogueira especulativa ao afirmar que “chegou a hora de uma nova moeda internacional de reserva”.
Os dados sobre o mercado de câmbio e de reservas internacionais não evidenciam qualquer condição material de uma rápida transição da moeda internacional. Apesar da situação externa devedora dos Estados Unidos (posição líquida de investimento internacional negativa de US$ 4,5 trilhões em junho de 2013), esse país, na era da globalização, mantém elevado poder econômico em virtude de ser emissor da principal moeda internacional. Com isso, não enfrenta qualquer tipo de restrição externa, já que seu passivo “externo” é composto por obrigações denominadas na sua própria moeda.
Essa posição do dólar no sistema monetária internacional ficou evidente durante a crise financeira 2008-2013, que teve como epicentro os Estados Unidos. A “fuga para a qualidade” dos investidores (privados e públicos) mundiais foi na direção dos títulos do Tesouro americano mesmo com a redução das taxas de juros para níveis próximos de zero. Isso evidenciou, mais uma vez, o papel desses títulos, denominado em dólar, como ativos líquidos de última instância da economia mundial.
Nesse sentido, o discurso da agência de notícias é muito mais um instrumento de retórica da política externa da China do que uma política efetiva de transição do renminbi pelo dólar. O governo chinês tem isso em conta. A sua estratégia cautelosa de ampliação de sua moeda evidencia a dificuldade desse processo.
É verdade que a China vem desenvolvendo diversas estratégias para internacionalizar sua moeda. Porém, o processo de internacionalização do renminbi enfrenta constrangimentos de grande monta, dada a natureza e os desafios do processo de desenvolvimento do país. Por ora, a internacionalização do renminbi (e das instituições bancárias chinesas) se constitui em uma estratégia defensiva.
A estratégia cautelosa da China de ampliar o papel do renminbi como moeda de denominação e de liquidação das transações comerciais e financeiras internacionais e, eventualmente, transformá-la em uma moeda-reserva não possui precedentes históricos. O país utiliza, pragmaticamente, um conjunto vasto de instrumentos e de experimentações de políticas e trajetórias e, portanto, faz uso de um amplo processo de aprendizado. Todavia, os desafios são enormes, mesmo considerando o delineamento de objetivos de longo prazo.
Em primeiro lugar, a experiência histórica mostra que a existência de um mercado financeiro líquido e profundo, a conversibilidade da moeda e a abertura da conta de capital precederam o uso internacional de uma moeda nacional. A China está procurando realizar uma internacionalização da moeda nacional com conversibilidade controlada.
Em segundo lugar, a tentativa de internacionalização da moeda chinesa ocorre em um momento histórico em que prevalece a moeda fiduciária, sem lastro com o ouro. Isso significa que a credibilidade do renminbi não poderá ser construída pela capacidade de o Banco Central da China converter sua moeda em ouro, como ocorreu com a libra e com o dólar. O renminbi somente pode ser comparado ao dólar, ou seja, com a moeda-reserva internacional.
Em terceiro lugar, o enorme e persistente superávit em conta-corrente (escassez de renminbi fora do país) dificulta a expansão internacional da moeda, sem uma ampliação do dólar no balanço do Banco Central da China (exportações para as economias desenvolvidas e importações de commodities, sobretudo, energia) e de investimentos em valores mobiliários americanos.
A estratégia de Pequim de internacionalizar a sua moeda, ancorada em decisões políticas e utilizando de diferentes instrumentos, está orquestrada em três grandes movimentos – lentos e graduais –, planejados até pelo menos 2020.
Primeiro, aumentar o uso do renminbi na denominação e liquidação do comércio internacional e em acordos monetários (bilaterais e multilaterais), sinalizando com a função de emprestador de última instância de sua moeda (e, portanto, de seu banco central) em âmbito internacional.
Segundo, criar um mercado offshore de renminbi em Hong Kong (posteriormente, em outras praças financeiras), possibilitando instituições e instrumentos para os investidores não residentes deterem e negociarem a moeda chinesa, sem uma abertura da conta de capital. Esse mercado offshore proporciona serviços essenciais de liquidação e compensação em renminbi e um espectro de ativos financeiros para ancorar a riqueza dos investidores residentes e não residentes (corporações, bancos, fundos de investimento, indivíduos etc.), permitindo sua circulação fora das fronteiras da China, e serve como teste para experimentações de produtos, infraestrutura, definição de preços e grau de abertura da conta de capital.
Terceiro, transformar Xangai em um centro financeiro internacional, ampliando as conexões do mercado financeiro doméstico com o externo, sobretudo regional. Objetiva-se ainda aperfeiçoar o mercado de capitais (emissões de bônus corporativos e de ações, bastante restritas) e promover uma transição gradual para um mecanismo de taxa de juros de mercado na alocação dos recursos. No final de setembro de 2013, o governo chinês anunciou a instalação, em Xangai, da Zona Piloto de Livre Comércio da China, em torno de 29 quilômetros quadrados de docas, hangares e armazéns no distrito de Pudong. A área funcionará como um laboratório para reformar o setor financeiro do país. Pois, nesse âmbito, o mercado e não o governo definirá a taxa de juros; as empresas terão liberdade para converter renminbi em moeda estrangeira e para fazer remessas de recursos ao exterior.
É preciso observar, no entanto, que o modelo de crescimento econômico chinês encontra-se ancorado em taxas de juros reduzidas e taxas de câmbio desvalorizadas, ambas fortemente administradas pelo governo. A reprodução do modelo de crescimento – a atuação do sistema bancário, a dependência das grandes empresas estatais ao acesso ao crédito administrado, o financiamento da dívida pública – requer a manutenção de controles sobre a conta de capitais. Tudo isso se contradiz com o processo de transformação de Xangai em um centro financeiro internacional. Inclusive, a revista The Economist, sugere que a China poderá implementar uma conversibilidade “plena” (liberdade para conversão, com aprovação e registro pelas autoridades), mas não “livre”.
Dessa forma, mesmo com essas estratégias recentes, a moeda chinesa persiste inconversível (ou com uma conversibilidade limitada). E, na ausência de mercados financeiros abertos, líquidos e profundos, com acesso a investidores estrangeiros e com confiança dos mercados financeiros internacionais, o renminbi poderá se constituir em uma moeda de liquidação das trocas comerciais e de investimento, sobretudo, em âmbito regional. Mas será difícil que se torne, no horizonte visível, uma moeda-reserva relevante.
Nota
RMB é a abreviação da moeda chinesa renminbi – “moeda do povo” – cuja unidade básica é o Yuan. CNY é o código monetário oficial da moeda chinesa negociado no mercado nacional (não disponível no exterior). Em 2009, começou a funcionar um mercado de renminbi em Hong Kong, com o código monetário CNH.
*Este texto é uma versão resumida do artigo: La internealización del renminbi: possibilidades y límites ver: <http://www.vocesenelfenix.com/sites/default/files/pdf/6_3.pdf>. Marcos Antonio Macedo Cintra é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). E-mail: marcos.cintra@ipea.gov.br. Eduardo Costa Pinto é professor de economia política do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: eduardo.pinto@ie.ufrj.br.
Editorial recente da rede Xinhua – agência de notícias estatal chinesa – jogou ainda mais lenha nessa fogueira especulativa ao afirmar que “chegou a hora de uma nova moeda internacional de reserva”.
Os dados sobre o mercado de câmbio e de reservas internacionais não evidenciam qualquer condição material de uma rápida transição da moeda internacional. Apesar da situação externa devedora dos Estados Unidos (posição líquida de investimento internacional negativa de US$ 4,5 trilhões em junho de 2013), esse país, na era da globalização, mantém elevado poder econômico em virtude de ser emissor da principal moeda internacional. Com isso, não enfrenta qualquer tipo de restrição externa, já que seu passivo “externo” é composto por obrigações denominadas na sua própria moeda.
Essa posição do dólar no sistema monetária internacional ficou evidente durante a crise financeira 2008-2013, que teve como epicentro os Estados Unidos. A “fuga para a qualidade” dos investidores (privados e públicos) mundiais foi na direção dos títulos do Tesouro americano mesmo com a redução das taxas de juros para níveis próximos de zero. Isso evidenciou, mais uma vez, o papel desses títulos, denominado em dólar, como ativos líquidos de última instância da economia mundial.
Nesse sentido, o discurso da agência de notícias é muito mais um instrumento de retórica da política externa da China do que uma política efetiva de transição do renminbi pelo dólar. O governo chinês tem isso em conta. A sua estratégia cautelosa de ampliação de sua moeda evidencia a dificuldade desse processo.
É verdade que a China vem desenvolvendo diversas estratégias para internacionalizar sua moeda. Porém, o processo de internacionalização do renminbi enfrenta constrangimentos de grande monta, dada a natureza e os desafios do processo de desenvolvimento do país. Por ora, a internacionalização do renminbi (e das instituições bancárias chinesas) se constitui em uma estratégia defensiva.
A estratégia cautelosa da China de ampliar o papel do renminbi como moeda de denominação e de liquidação das transações comerciais e financeiras internacionais e, eventualmente, transformá-la em uma moeda-reserva não possui precedentes históricos. O país utiliza, pragmaticamente, um conjunto vasto de instrumentos e de experimentações de políticas e trajetórias e, portanto, faz uso de um amplo processo de aprendizado. Todavia, os desafios são enormes, mesmo considerando o delineamento de objetivos de longo prazo.
Em primeiro lugar, a experiência histórica mostra que a existência de um mercado financeiro líquido e profundo, a conversibilidade da moeda e a abertura da conta de capital precederam o uso internacional de uma moeda nacional. A China está procurando realizar uma internacionalização da moeda nacional com conversibilidade controlada.
Em segundo lugar, a tentativa de internacionalização da moeda chinesa ocorre em um momento histórico em que prevalece a moeda fiduciária, sem lastro com o ouro. Isso significa que a credibilidade do renminbi não poderá ser construída pela capacidade de o Banco Central da China converter sua moeda em ouro, como ocorreu com a libra e com o dólar. O renminbi somente pode ser comparado ao dólar, ou seja, com a moeda-reserva internacional.
Em terceiro lugar, o enorme e persistente superávit em conta-corrente (escassez de renminbi fora do país) dificulta a expansão internacional da moeda, sem uma ampliação do dólar no balanço do Banco Central da China (exportações para as economias desenvolvidas e importações de commodities, sobretudo, energia) e de investimentos em valores mobiliários americanos.
A estratégia de Pequim de internacionalizar a sua moeda, ancorada em decisões políticas e utilizando de diferentes instrumentos, está orquestrada em três grandes movimentos – lentos e graduais –, planejados até pelo menos 2020.
Primeiro, aumentar o uso do renminbi na denominação e liquidação do comércio internacional e em acordos monetários (bilaterais e multilaterais), sinalizando com a função de emprestador de última instância de sua moeda (e, portanto, de seu banco central) em âmbito internacional.
Segundo, criar um mercado offshore de renminbi em Hong Kong (posteriormente, em outras praças financeiras), possibilitando instituições e instrumentos para os investidores não residentes deterem e negociarem a moeda chinesa, sem uma abertura da conta de capital. Esse mercado offshore proporciona serviços essenciais de liquidação e compensação em renminbi e um espectro de ativos financeiros para ancorar a riqueza dos investidores residentes e não residentes (corporações, bancos, fundos de investimento, indivíduos etc.), permitindo sua circulação fora das fronteiras da China, e serve como teste para experimentações de produtos, infraestrutura, definição de preços e grau de abertura da conta de capital.
Terceiro, transformar Xangai em um centro financeiro internacional, ampliando as conexões do mercado financeiro doméstico com o externo, sobretudo regional. Objetiva-se ainda aperfeiçoar o mercado de capitais (emissões de bônus corporativos e de ações, bastante restritas) e promover uma transição gradual para um mecanismo de taxa de juros de mercado na alocação dos recursos. No final de setembro de 2013, o governo chinês anunciou a instalação, em Xangai, da Zona Piloto de Livre Comércio da China, em torno de 29 quilômetros quadrados de docas, hangares e armazéns no distrito de Pudong. A área funcionará como um laboratório para reformar o setor financeiro do país. Pois, nesse âmbito, o mercado e não o governo definirá a taxa de juros; as empresas terão liberdade para converter renminbi em moeda estrangeira e para fazer remessas de recursos ao exterior.
É preciso observar, no entanto, que o modelo de crescimento econômico chinês encontra-se ancorado em taxas de juros reduzidas e taxas de câmbio desvalorizadas, ambas fortemente administradas pelo governo. A reprodução do modelo de crescimento – a atuação do sistema bancário, a dependência das grandes empresas estatais ao acesso ao crédito administrado, o financiamento da dívida pública – requer a manutenção de controles sobre a conta de capitais. Tudo isso se contradiz com o processo de transformação de Xangai em um centro financeiro internacional. Inclusive, a revista The Economist, sugere que a China poderá implementar uma conversibilidade “plena” (liberdade para conversão, com aprovação e registro pelas autoridades), mas não “livre”.
Dessa forma, mesmo com essas estratégias recentes, a moeda chinesa persiste inconversível (ou com uma conversibilidade limitada). E, na ausência de mercados financeiros abertos, líquidos e profundos, com acesso a investidores estrangeiros e com confiança dos mercados financeiros internacionais, o renminbi poderá se constituir em uma moeda de liquidação das trocas comerciais e de investimento, sobretudo, em âmbito regional. Mas será difícil que se torne, no horizonte visível, uma moeda-reserva relevante.
Nota
RMB é a abreviação da moeda chinesa renminbi – “moeda do povo” – cuja unidade básica é o Yuan. CNY é o código monetário oficial da moeda chinesa negociado no mercado nacional (não disponível no exterior). Em 2009, começou a funcionar um mercado de renminbi em Hong Kong, com o código monetário CNH.
*Este texto é uma versão resumida do artigo: La internealización del renminbi: possibilidades y límites ver: <http://www.vocesenelfenix.com/sites/default/files/pdf/6_3.pdf>. Marcos Antonio Macedo Cintra é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). E-mail: marcos.cintra@ipea.gov.br. Eduardo Costa Pinto é professor de economia política do Instituto de Economia da UFRJ. E-mail: eduardo.pinto@ie.ufrj.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário