Escrito por Elaine Tavares |
Quarta, 27 de Novembro de 2013 |
Apesar de
toda a propaganda que se faz do Equador, colocando-o
dentro de um espectro de "país dirigido pela esquerda",
não são poucas as contradições vivenciadas pelo governo
de Rafael Correa, cada vez mais distante do que se
poderia considerar um mandato com o povo.
Indiscutivelmente, o primeiro mandato trouxe avanços
importantes, como a realização de uma nova Constituinte,
soberana e autônoma, que, apesar de todos os percalços,
conseguiu levar para dentro do documento que rege a vida
das gentes numa nação uma série de avanços fundamentais
que, inclusive, servem de exemplo a todo o mundo.
Mas, no
cotidiano da vida, quando a Constituição começou a ser
regulamentada, os interesses econômicos e políticos
começaram a aparecer com força e a ditar regras que, de
certa forma, destroem toda a lógica do sumak kausai (o
bem viver - que é o bem viver de corte indígena, não é o
consumismo do mundo capitalista), centro de toda a
Constituição nacional. Um dos exemplo mais visíveis é o
da mineração e da exploração de petróleo. Mesmo que a
natureza tenha ganhado um capítulo dentro da carta
magna, revestindo-se de direitos, na prática tudo cai
por terra quando os interesses econômicos cobram a conta
do que chamam "progresso". Em nome do que denominam
"desenvolvimento", as classes dominantes impõem seu
modelo e passam por cima do que foi construído
coletivamente com muita luta pela população do país.
Os povos
indígenas são os que mais têm sofrido nesse processo.
Primeiro porque sistematicamente sofrem desqualificações
sobre a sua maneira de viver a política. Não é raro que,
a qualquer grito de rebeldia, eles sejam imediatamente
ligados a setores da direita raivosa do Equador, tal
qual o grupo do ex-presidente Lucio Gutierrez, de
descendência indígena. Basta que haja qualquer oposição
ao projeto governamental e lá vem o velho discurso de
que os índios estão sendo manipulados, que fazem o jogo
da direita etc. ...
É fato que
a direita se aproveita - e muito bem - das batalhas
travadas pelos indígenas contra as propostas do governo,
mas daí a dizer que eles são manipulados é pura
ideologia. E também mostra que a elite dominante
continua mantendo pelas populações originárias um
profundo desprezo, a tal ponto de nunca admitir que os
indígenas possam pensar, formular políticas e definir
suas demandas de maneira autônoma e livre.
Outro
discurso que o governo usa com bastante maestria, até
porque Rafael Correa é bastante carismático e uma figura
midática, é o da necessidade do progresso. Alegando que
o país tem imensas riquezas minerais que necessitam ser
exploradas para que as gentes possam ascender a bons
níveis de consumo, o governo vem passando por cima
daquilo que foi a pedra fundamental da nova
Constituição: a vontade popular. No caso dos territórios
indígenas, está na lei que, para qualquer tipo de
exploração dos recursos, a comunidade precisa ser
ouvida. Mas não é o que acontece. Mesmo que as
comunidades estejam gritando contra a exploração,
fazendo lutas, enfrentando a polícia, o governo
permanece surdo. E ainda joga o restante da população
contra os indígenas, alegando que eles estão tentando
impedir o "progresso" do país. De certa forma, o governo
alimenta o velho ódio, de origem colonial, entre brancos
e índios. Não são raros os textos e opiniões de gente da
esquerda de toda a América Latina que também cai nesse
canto de sereia.
Ataque
à educação indígena
O mais
novo ataque do governo de Rafael Correa é contra a
educação indígena. Mesmo que a Constituição tenha
garantido o direito à pluriculturalidade, na prática o
que está acontecendo no campo da educação é o
soterramento de toda e qualquer iniciativa indígena,
ganhando força a homogeneização da educação. O primeiro
golpe foi na Universidade Intercultural Amawtay Wasi,
universidade indígena que existe no Equador desde 2004
com o objetivo de atuar na educação superior a partir de
uma pedagogia autóctone. Ou seja, a forma de ensinar e
os conteúdos do ensino estão completamente ligados ao
jeito de ser das comunidades indígenas que, ao contrário
do que muitos pensam, mantiveram vivos seus pressupostos
éticos e pedagógicos apesar de mais de 500 anos de
dominação.
Assim, a
universidade surgiu justamente para se contrapor ao
modelo bancário de educação segmentada,
descontextualizada e colonizada. Entre seus princípios
está a proposta de criar um sistema de educação superior
que tenha a sua identidade (indígena), dentro de um
marco da integralidade do conhecimento, permitindo assim
superar a ruptura usual que existe entre teoria e
prática. Busca ainda formar profissionais que tenham uma
visão intercultural, descolonizada, capazes de entender
onde vivem e de buscar soluções para os problemas
concretos das nacionalidades e populações. Gente que
também seja capaz de conhecer os mais diversos saberes
que existem nas comunidades, apropriando-se deles para
melhorar a vida e para construir, de verdade, uma
sociedade intercultural, na qual o saber científico
conquistado pelo mundo ocidental dialogue com os saberes
originários, sem dominação.
Não
bastasse essa "heresia" descolonial, a Amawtay Wasi tem
uma estrutura física e pedagógica que está totalmente
integrada à cosmovisão dos povos indígenas. Todo o
trabalho se ampara nos princípios de vincularidade (a
relação entre o todo e as partes), complementariedade (a
necessidade de um ‘outro’, com o qual se dialoga),
simbólico (relação entre o saber científico e o que ele
significa no âmbito simbólico) e a reciprocidade (a
troca de saberes). Esses são conceitos muito difíceis de
serem compreendidos por aqueles que têm uma formação
racional, ocidental. É praticamente outra episteme e
precisa ser compreendida como uma forma radicalmente
diferente de atuar, de educar e de viver.
Pois com a
nova lei de educação, o governo de Rafael Correa decidiu
homogeneizar o processo educativo, sem levar em
consideração a própria Constituição que garante a
pluriculturalidade. Depois de vários meses sendo
visitada por tecnocratas governamentais, a Universidade
teve seu registro suspenso. Não pode mais funcionar da
forma como se organiza, a partir dos princípios que
regem o mundo indígena. Os "educadores" governamentais
querem que a Amawtay Wasi morra ou se iguale às demais
universidades organizadas dentro dos cânones ocidentais.
Mas não é essa a proposta da universidade indígena. Ela
quer, justamente, se contrapor a essa pedagogia
desestruturante e colonial. No contexto de uma sociedade
pluricultural, não há motivo para que isso não aconteça.
É só uma universidade diferente, que atua dentro
da episteme dos povos indígenas que ali vivem desde
muito antes dos espanhóis chegarem e invadirem seus
mundos, impondo uma cultura de dominação e de
extermínio.
Mas Rafael
Correa tem sido implacável, espalhando ainda que a
universidade é foco de resistência de grupos ligados a
Lúcio Gutierrez. Como argumento usa o fato de a mesma
ter sido criada durante o governo daquele presidente. Na
verdade, o que quer é destruir um espaço de formação
indígena construído a duras penas pelas comunidades.
As
escolas comunitárias
Todo esse
ataque ao mundo indígena ainda não terminou. Agora, o
governo decidiu também eliminar as pequenas escolas
comunitárias que atuam na lógica intercultural,
ensinando em duas línguas. Não quer mais que a educação
alternativa (leia-se indígena) se faça nas pequenas
unidades que atuam com a proposta de unidocência, porque
os indígenas acreditam que o conhecimento é um só, e não
pode ser dividido em aulas de 50 minutos desconectadas
do mundo real.
Mais uma
vez, os tecnocratas governamentais decidiram que a
educação de primeiro e segundo grau do Equador devem
seguir as propostas do Banco Mundial e precisam se
constituir em "Unidades Educativas do Milênio", às quais
são reputadas as novidades tecnológicas e todas aquelas
"maravilhas" que os projetos vindos de fora apregoam.
Falam em escolas equipadas com computadores, alto nível
de ensino, novos conceitos pedagógicos. Tudo dentro da
proposta ocidental, sem considerar as especificidades da
pedagogia indígena. Segundo a pedagoga e comunicadora
Rosa María Torres (http://otra-educacion.blogspot.com.br),
a proposta está centrada na aparência, sem que sequer se
mencione a situação dos professores, por exemplo,
categoria que tem protagonizado grandes lutas no país.
No campo
da propaganda o governo de Correa consegue convencer.
Desde 2008 vem construindo uma série de UEMs (Unidades
Educativas do Milênio), cujo número já ultrapassa as 24,
atendendo 23 mil estudantes. E segue construindo outras
tantas, dizendo que aumentará esse número em mais de 30
até 2014. Os prédios bonitos e bem pintados aparecem
como o "progresso para todos". E justificam a exploração
de petróleo na região do Parque de Yasuní. "Com o
petróleo teremos mais saúde e educação para todos", diz,
na tentativa de buscar apoio para as ações de fechamento
das escolas indígenas. Conforme anunciou, das 18 mil
escolas comunitárias que existem, apenas cinco mil
seguirão abertas. Conforme diz, as escolas comunitárias,
aquelas que são geridas de forma alternativa, "são o
atraso, a marca da pobreza".
Já os
educadores que sempre estiveram nas comunidades quando o
Estado as abandonava, têm outra posição. Eles dizem que
essas escolas que vivem à margem do sistema oficial são,
recorrentemente, referência na inovação e na
transformação cultural, tanto no Equador quanto no
mundo. Segundo eles, esse tipo de escola multigrau e
unidocente não é necessariamente uma escola para pobres.
Ao contrário, é uma escola que se contrapõe ao sistema
bancário imposto pelo Banco Mundial a toda América
Latina. Como exemplo lembram do programa Escola Nova,
que existe na Colômbia, e o das Escolas Não-Formais,
experiência de Bangladesh, ambas modelos premiados
internacionalmente.
Mas, ainda
assim, segue a "planificação" da educação, sem que se
leve em conta a voz dos educadores e das comunidades.
Toda a proposta vem sendo construída por burocratas,
apresentando as modernidades como a solução do problema
educativo. "Fecharemos as escolinhas precárias e os
alunos serão realocados nas Unidades Educativas do
Milênio", diz, sorridente, Correa, na televisão. Num
primeiro momento, tudo pode parecer muito bom. Novos
prédios, fusão de escolas, urbanização de escolas
rurais, transporte escolar. Tudo preparado para a
criação de grandes complexos escolares com educação
igualada/homogênea/ocidental, sem que se leve em conta
as especificidades culturais, tal como reza a própria
Constituição.
Diz a
pedagoga Rosa María Torres sobre uma UEM que visitou:
"Em Otavalo, norte de Quito, inaugurada em abril de
2009, com grande presença da mídia. Era a terceira UEM
construída no país e custara 2 milhões de dólares. Os
alunos, 800, são de maioria indígena. A escola abriu com
os sete primeiros anos de educação básica. Tem 38 salas
de aula, quadros digitais, cozinha, restaurante, espaços
esportivos, laboratórios, bibliotecas, 38 computadores e
internet banda larga. O desenho da escola é tradicional,
frio, sem qualquer presença da cultura local. Os
professores sequer sabem usar o quadro negro digital, é
visível a falta de capacitação. Nota-se que os espaços
são subutilizados, há problemas de segurança e não se vê
qualquer preocupação com a capacitação dos professores".
Ou seja, tudo conspira para uma ode à tecnologia, sem
cuidado pedagógico e muito menos com o contexto
cultural.
A
experiência das escolas indígenas
Inka
Samana é uma pequena escola indígena no sul do país,
reconhecida internacionalmente como espaço de uma
"revolução educacional", por sua proposta diferenciada
de ensino de saberes que vão além do formal. Pois também
ela deverá entrar no sistema homogeneizado da "educação
nacional", abrindo mão dos aspectos simbólicos e
culturais que a caracterizam. Os protestos têm sido
grandes, mas o governo segue surdo. Quem quiser conhecer
melhor essa bonita experiência de educação indígena pode
encontrar sua voz nas redes sociais (https://www.facebook.com/pages/INKA-SAMANA/101245569927872?fref=ts).
Rosa María
Torres lembra ainda de outras experiências comunitárias
indígenas como as da província de Pichincha, a Escola
Ecológica Samay e a Yachay Huasi (Escola do Saber), que
atuam no diálogo entre educação formal e educação
indígena. Há coisas do mundo das comunidades que as UEMs
não tocarão, com certeza, como a sabedoria dos mais
velhos, fazer uma rede ou como reconhecer uma semente,
reforçando a ideia de que só a educação
formal/ocidental/moderna/científica é que é importante.
Enfim, são dezenas de experiências comunais, culturais e
alternativas que estão prestes a sucumbir diante da
ideia de uma "educação única, nacional". Isso não pode
ser possível num país com tantos povos indígenas, já tão
acostumados a atuar dentro de seu mundo cosmogônico e
simbólico.
A luta é
desigual. O governo constrói prédios vistosos e garante
a gratuidade do ensino formal, mesmo que a qualidade
desse ensino esteja submetida aos ditames
internacionais. As pequenas escolas indígenas vivem de
contribuições da comunidade ou de ajuda externa. O
governo já declarou que não aportará recursos a essas
experiências. Sufoca todas elas no campo econômico e
depois acusa os educadores de aliança com ONGs
estrangeiras e grupos direitistas. É um cenário difícil
de se assimilar.
A mesma
prática tem se dado no campo universitário. No mesmo
momento em que anuncia o descredenciamento da
Universidade Intercultural Amawtay Wasi, o governo
divulga a criação de quatro novas universidades
estatais, onde os equatorianos poderão ter ensino
superior gratuito. Difícil para quem segue acreditando
que as culturas indígenas não têm nada a dizer no mundo
aceitar que as mudanças da educação equatorianas não
sejam boas. Pois se se aumentam as universidades
públicas, se se constroem novas escolas, amplia-se o
ensino gratuito. Poucos são os que questionam esse
processo de destruição do saber indígena, da forma
indígena de educar. Para boa parte das gentes, rendidas
ao mundo ocidental, racionalizado e dependente, mais
vale uma escola grande que um ensino de qualidade. Se as
diretrizes vêm do Banco Mundial, melhor ainda, vão
aprender conforme aprendem os "gringos".
Poucos são
aqueles que observam criticamente o processo de
aprofundamento do colonialismo mental em pleno governo
dito "progressista". A destruição das escolas
comunitárias, dos espaços indígenas de saber e da
universidade Amawtay Wasi são, na verdade, uma grande
ofensiva do capital contra os povos indígenas,
tradicionalmente um entrave nos planos de ganância e
destruição de empresas transnacionais, da elite local e
de muitos governantes. Estrangular essas experiências é
um ato de força e de beligerância.
Os
indígenas agora denunciam e não deverão aceitar tudo
isso sentados. Eles encontrarão suas formas de resistir
e manter viva suas culturas. Serão acusados de alianças
com Gutierrez, com forças estrangeiras que querem
destruir o governo "popular" e muitas outras coisas
mais. Algumas comunidades podem até se enredar nessas
armadilhas, isso não se descarta. Mas qualquer guinada
para a direita dos povos originários só se dará por
conta do desrespeito às culturas antigas, por conta da
insensibilidade do governo em dialogar, pela arrogância
- herança colonial - e pela intransigência de Correa.
O Equador
vive uma hora importante de aprofundamento da
dependência e da submissão aos grandes interesses
internacionais. Não há interesse em se aliar aos povos
autóctones para a construção do sumak kausai, conforme
grita a Constituição. O que parece direcionar a ação do
governo é o mesmo modelo desenvolvimentista que já
mostrou todas as suas tristes e destruidoras faces por
onde passou. Explorar petróleo, explorar minério,
desalojar famílias, garantir um consumo fictício a uma
classe média emergente, provocar a destruição do
ambiente, incutir uma educação alienante e colonizada e
maquiar o sistema de saúde. Tudo isso pode estar sendo
construído para servir de base para a consolidação
daquilo que "la radio buemba" (o que se diz nas ruas,
boatos) já anuncia: a vinda de um acordo comercial de
livre comércio com os Estados Unidos. Se isso se
confirmar, o futuro será sombrio, com o aprofundamento
da dependência econômica, política e cultural. Tudo como
antes.
Então,
nada de novo no front. A não ser a força viva das gentes
de Abya Yala que, mesmo derrotadas, se reorganizam e
voltam a se levantar.
Elaine
Tavares é jornalista
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quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Equador: a opção pela dependência
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