segunda-feira, 9 de agosto de 2021

A Privataria nos Correios

 

                                                                               José Álvaro de Lima Cardoso

     A Câmara dos Deputados aprovou no dia 5 de julho o Projeto de Lei 591/21, do Poder Executivo, que autoriza a exploração pela iniciativa privada de todos os serviços postais e estabelece condições para privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), conhecida popularmente como Correios. Atualmente, a iniciativa privada participa do mercado dos serviços postais através de franquias, com os preços tabelados pela ECT. Alguns serviços, como envio de carta e telegrama, são monopólios dos Correios. Mas nos serviços de encomendas, por exemplo, o setor privado já atua. Foi aprovado na Câmara Federal um substitutivo que estabelece que o monopólio para carta e cartão postal, telegrama e correspondência agrupada ficará com os Correios por mais cinco anos, podendo o contrato de concessão estipular prazo superior.  

     O processo de privatização dos Correios é tão antinacional, que estão realizando a privatização da empresa em “regime de urgência”. Eles têm que fazer o processo a toque de caixa, sem nenhuma transparência. No meio de uma pandemia, onde o Brasil passou à condição de epicentro, na maior crise econômica da história, se apressam em entregar os Correios, a preços de banana, para o capital privado.

     Os Correios são uma estatal bastante eficiente, guardados os limites das condições em que funcionam as empresas públicas em países subdesenvolvidos. Estão presentes, por exemplo, em todos os 5.570 municípios brasileiros. Além de entrega de correspondência e produtos, presta vários serviços em suas agências, como a emissão, regularização e alteração de CPF; emissão de certificado digital; entrada no seguro por acidente de trânsito (DPVAT); distribuição de kit da TV Digital e pagamento a aposentados de INSS. Presta também outros serviços, como emissão de carteira de identidade, em alguns estados.

     Apesar de todo esse conjunto de serviços que os Correios oferecem, e sem apresentar prejuízos financeiros, o governo federal insiste em fazer caixa imediato, ignorando o fundamental atendimento à toda a população. O primeiro impacto a ser sentido será na qualidade do atendimento, principalmente nas cidades do interior brasileiro. O motivo é o fim do subsídio cruzado que permite que as cidades maiores, com maior movimento nas agências dos Correios, mantenham abertas as agências das cidades pequenas.

     Segundo os especialistas no assunto a população dos grandes centros vai sentir mais a privatização no valor do frete das mercadorias. Já a população das pequenas cidades vai sentir duplamente, na demora da chegada das correspondências e também no aumento dos preços. Atualmente, as empresas privadas de entregas de mercadorias utilizam os serviços dos Correios para fazer chegar até a população que mora em locais mais distantes, pacotes de encomendas. Nesse Brasil Continente, os Correios levam dois ou três dias de barco, atravessando o Rio Amazonas para levar a encomenda. As empresas, ao invés, de montar estrutura própria para fazer isso diretamente, usam os serviços dos Correios, que sai bem mais barato.

     As empresas privadas não farão isso, em função da reduzida margem de lucros, nesse tipo de atendimento. A consequência imediata será o aumento dos preços dos serviços de correios para as empresas e para a população em geral. Mesmo com a disseminação das compras via internet, os Correios continuaram ampliando o seu papel. Os livros, os eletrodomésticos, e um conjunto grande de encomendas têm que ser entregues. E os Correios fazem isso. Faz parte dos serviços da empresa a entrega de livros didáticos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no início do período letivo, e das provas do Enem.

    A Companhia vinha sendo preparada para ser privatizada desde o golpe de 2016. Recentemente fecharam o Banco Postal, serviço através do qual era possível para os moradores das pequenas cidades, onde não têm agências bancárias, nem lotéricas, fazerem seus pagamentos, sem necessidade de ir a outra cidade.  Os Correios atualmente tem 99 mil trabalhadores, 23% a menos do que tinha em 2011. Ao mesmo tempo em que reduziram o número de funcionários, ampliaram o atendimento, o que já começa a precarizar os serviços prestados à população. Os atendentes do Banco Postal, para não serem demitidos acabam aceitando a função de carteiros, e no final das contas o prejuízo é da população, que demora mais em ser atendida nas agências.

     Além de prestar um bom serviço coletivo, os Correios não dependem de recursos do Tesouro Nacional (é uma estatal independente). A Empresa tem dado lucro nos últimos quatro anos, no ano passado este foi de R$ 818 milhões. Portanto não dá para utilizar prejuízo financeiro como desculpa para privatizar. Além disso, não há monopólio do serviço de encomendas no Brasil, e sim livre concorrência, com várias empresas atuando.

      Quase 90% das lojas virtuais brasileiras utilizam os serviços dos Correios. A maioria delas só usa os Correios, apesar de existirem no mercado centenas de competidores no serviço de encomendas. Os preços competitivos e a capilaridade dos serviços dos Correios constituem uma das principais alavancas a favor dos pequenos empreendimentos de e-commerce no Brasil, possibilitando que sejam feitas vendas para qualquer lugar do país ou do mundo.

     A infraestrutura dos Correios, construída ao longo de mais de 350 anos, cobre o país todo e funciona sistematicamente, integrando o território, e viabilizando megaoperações com êxito, como são os casos emblemáticos da distribuição de livros didáticos, do ENEM, do Seja Digital (distribuição de antenas digitais) e tantos outros.

     Os Correios, ao longo de sua história e, apesar das trapalhadas do Tesouro e do Ministério da Fazenda, tem conseguido se manter sem depender de aportes do Governo Federal. Segundo informações da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Correios e Telégrafos e Similares (Fentect), em um conjunto de 270 países, entre desenvolvidos e emergentes, apenas oito têm serviços dos correios privatizados. Portugal e Alemanha, entre os oito, já começam a discutir a reestatização do serviço. A Argentina reestatizou o serviço no governo de Cristina Kirchner, após reclamações da população.

     Os Estados Unidos mantêm o serviço postal, o United States Postal Service (USPS), com 600 mil trabalhadores (seis vezes o número dos Correios). Grandes empresas atuam na área de encomendas, sem concorrer em outros serviços prestados pela estatal norte-americana. É o caso do pagamento do seguro-desemprego, que é feito na estatal. Mas, à exemplo de todas as privatizações do governo Bolsonaro, as razões das privatizações não são técnicas. O governo não está privatizando os Correios para melhorar o serviço. Está privatizando justamente porque os capitais privados estão de olho no quase um bilhão de lucros que a companhia apresentou no ano passado. A privatizações dos Correios, já se sabe, irá favorecer a grupos específicos. Grandes grupos e, possivelmente, internacionais. Vai aumentar imediatamente a remessas de lucros para o exterior, os grupos que adquirem os ativos são estrangeiros, não tem nenhum compromisso com o pais. Obviamente remeterão os lucros para as suas matrizes.

      A exemplo das privatizações anteriores, a privatização dos Correios vai implicar em mais demissões, e juntamente com as demais demissões, irá agravar a concentração da renda, aumentar a pobreza e a miséria no país, impedindo também o crescimento econômico e a criação de empregos etc. É um círculo vicioso interminável. Esse jogo, é claro, não iremos resolver com diagnósticos (que são necessários). Ele será resolvido é nas ruas, com a população em ação contra a liquidação do Brasil.

                                                                                                             *Economista. 09.08.21.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Os gemidos e ranger de dentes da indústria brasileira

                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso

 

      A Pesquisa Industrial Anual (PIA) 2019, divulgada no dia 21 de julho pelo IBGE, mostra que, em 2019, o setor mais produtivo da indústria foi o de petróleo e gás, e o segundo setor foi o de produtos derivados de petróleo. Isto possibilita a geração dos empregos que pagam alguns dos melhores salários da indústria. Não foi por acaso que a principal motivação econômica do golpe de 2016 foi o petróleo. Na medida em que os poços vão sendo vendidos para fundos de investimentos, estes liquidam salários e benefícios, aumentando suas margens de lucratividade.

     Com base na elevada produtividade, o setor pode gerar grandes investimentos, como ocorreu em 2013, ano em que a Petrobrás investiu sozinha, o equivalente a R$ 150 bilhões em valores atuais. Esse era o período em que apesar da Petrobrás ser uma espécie de ”nação amiga” (pois respondia por 10% de todo o investimento no país), a mídia comercial, e o senso comum, afirmavam que a empresa estava quebrada.

     A participação do Brasil na produção industrial mundial caiu de 1,24%, em 2018, para 1,19%, em 2019, atingindo o piso da série histórica que começa em 1990. Apesar das perdas, o Brasil tinha conseguido se manter entre os 10 maiores produtores no ranking mundial até 2014. Em 2019 recuou para a 16ª posição. Com a recessão econômica brasileira, entre 2014-2016 o ritmo de perda de relevância da indústria do País no mundo se intensificou. Em 2014, o Brasil era o 10º maior produtor industrial do mundo, mas perdeu posições a cada ano e em 2019, foi superado pela Espanha, caindo para a 16ª posição.

     A crise da indústria, que já vinha ocorrendo de forma estrutural, desde a década de 1980, foi colocada em um patamar mais profundo com o golpe, que foi também contra a indústria. Os golpistas querem que o Brasil se torne em definitivo um mero vendedor de matérias primas agrícolas e minerais para o mundo rico. Afinal de contas, neocolônia não precisa de indústria.

     O desempenho das exportações da indústria de transformação brasileira no mundo também revela a perda de competitividade do Brasil. A participação do Brasil nas exportações mundiais da indústria de transformação chegou, em 2019, à cerca de 0,82%, igualando o menor percentual da série histórica, registrado em 1999. A perda de relevância do Brasil nas exportações mundiais da indústria de transformação ocorreu mesmo diante da depreciação do real nos últimos anos, que deveria estimular exportações. Isso não ocorreu, em função da gravidade da crise geral brasileira, incluindo a crise política trazida pelo golpe.

     A indústria brasileira é uma das que mais apresentaram recuo no mundo em quase 50 anos. Levantamento encomendado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), revela que o setor no Brasil teve a terceira maior retração entre 30 países, desde o ano de 1970, ficando atrás apenas de Austrália e Reino Unido. Os dados da pesquisa levam em conta o resultado da produção industrial até 2017, de lá para cá o setor recuou mais ainda. Nos dois países que apresentaram declínio na produção industrial mais forte que a do Brasil (Austrália e Reino Unido) a renda da população estava subindo quando a queda do desempenho da indústria começou a recuar em relação ao PIB. Quando o peso da indústria em relação ao PIB cai porque as famílias estão consumindo mais serviços, pode ser considerado uma trajetória natural, verificada nos países ricos.

     Mas no Brasil ocorreu uma desindustrialização prematura. A indústria começou a perder peso na estrutura produtiva antes da renda da população subir. Nos últimos anos, inclusive, a redução do peso da indústria no PIB, ocorre simultaneamente à queda da renda per capita. Mas temos que considerar que a posição de países como EUA e Japão, assim como a Europa, ocupam posições na divisão internacional do trabalho diferentes da do Brasil. O desenvolvimento dos países imperialistas e dos países pobres é de fato desigual e combinado. Ou seja, com a atual divisão internacional do trabalho, nunca iremos atingir o patamar de vida que têm as populações dos países ricos. A nossa pobreza está relacionada à riqueza deles.

      Por exemplo, os EUA, para manter o padrão de vida que mantém para uma parte da população - uma parte, apenas, já que o país tem 50 milhões de pobres- precisa drenar riqueza do mundo todo. Os golpes recentes na América latina estão relacionados a esse fenômeno. Um dos objetivos dos EUA, ao coordenar esse, golpes, foi rapinar recursos dos países atrasados. Petróleo no Brasil, lítio na Bolívia e assim por diante. Além das oportunidades que aparecem com as privatizações (vejam o que está sendo a entrega da Eletrobrás, um verdadeiro negócio da china para os países ricos, no qual a companhia será oferecida por 10% ou 15% do seu valor, conforme previsões).

     Em geral, nos demais países onde houve desindustrialização, a perda da participação da indústria no crescimento do país continuou sendo acompanhada do crescimento do PIB per capita. A desindustrialização do Brasil é precoce não só porque a indústria perdeu participação muito cedo no produto, mas porque a renda per capita avançou muito pouco. Nos países onde a indústria perdeu participação na produção de riqueza o capital industrial se deslocou para setores dinâmicos dos serviços. São esses países que investem pesadas somas na indústria 4.0, que integra diversas tecnologias. Nos EUA, por exemplo, a indústria perde participação, mas os segmentos que conseguem se manter são os de elevado desenvolvimento tecnológico, que surfam nas inovações da indústria 4.0. As empresas que produziam computadores, por exemplo, agregaram mais tecnologia e migraram para a área de softwares.

     No Brasil, com um governo cujo projeto nacional é de ser capacho dos países ricos, além de ser de economia subdesenvolvida, a desindustrialização ocorre de forma anárquica, com grande perda tecnológica. No Brasil cerca de dois terços da produção industrial é de baixa ou média tecnologia, tem baixo dinamismo. Boa parte da indústria “aperta ainda muito parafuso”. Os capitais que migram para serviços o fazem em serviços de menor qualidade, muitas vezes na economia informal. É comum empresários abandonarem a fabricação de determinado produto e passarem a importa-lo da Ásia, especialmente China. Se o governo, por seu turno, tem projeto nacional subalterno, não tem senso de preservação da indústria, a maioria do empresariado nem sabe do que se trata. Quem duvidar disso, analise com calma a posição dos empresários (de todos os tamanhos) sobre a destruição da Petrobrás perseguida pelos golpistas de 2016. É de um desinteresse pelos destinos do Brasil, que chega a estarrecer.      

     Em 1980, o parque industrial brasileiro correspondia a 4,11% da indústria mundial. A China, atual gigante industrial, na época tinha uma participação de 1,65% e ultrapassou o Brasil ainda nos anos 1990. O caso da China é único e foi precedido de uma revolução popular, em 1949. É bastante diferente, claro, do brasileiro. No Brasil, há sete anos consecutivos, desde a recessão iniciada em 2014, cai o número de indústrias no território nacional. Segundo um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), entre 2015 e 2020 foram extintas 36,6 mil empresas industrias. O número equivale a quase 17 estabelecimentos industriais liquidados todo dia. 

Há seis anos, o País tinha 384,7 mil estabelecimentos industriais, porém no final do ano passado, o número tinha caído para 348,1 mil.

     A fatia da indústria da transformação no PIB, de 11%, é o patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1946 (75 anos atrás). O problema conjuntural, ligado à crise, e o estrutural (desindustrialização), coincidem com um período no qual o mundo atravessa a chamada Quarta Revolução Industrial. O Brasil precisaria estar investindo bilhões em pesquisa e inovação industrial neste momento, procurando pelo menos, congelar a histórica defasagem científico-técnica que tem o país em relação aos países imperialistas.

     Não será um governo de golpistas que irá se preocupar com pesquisa e competividade da indústria brasileira. O orçamento total previsto para o MCTI neste ano é de R$ 8,3 bilhões. Só que o valor destinado a “despesas discricionárias” (ou seja, efetivamente disponível para pesquisa), é de apenas R$ 2,7 bilhões, 15% a menos do que em 2020 e 58% a menos do que em 2015.

     Além do mais, os terraplanistas que estão no poder estão destruindo as universidades públicas, que é quem faz pesquisa e inovação. No período mais recente, o país voltou a apresentar o fenômeno chamado de “fuga de cérebros”, que é a transferência de estudiosos de ponta, em todos os setores, para os países ricos. Ou seja, o Brasil gasta dinheiro público para formar esses “cérebros” e quem se beneficia do retorno que eles podem dar, após a maturidade científica, são os países ricos.

     Estamos em meio ao que se chama de uma “tempestade perfeita” com a pior crise dos últimos cem anos. Na indústria essa tempestade perfeita se manifesta através da desindustrialização, desemprego, precarização do trabalho, queda dos salários reais, internacionalização do setor. Não sairemos dessa encalacrada sem gemidos e ranger de dentes.

                                                                               *Economista. 02.08.21.