Sobre a Prisão de Dirceu e Genoíno:
As implicações de um linchamento político e a economia política do “lobismo”
Comecemos pelo óbvio, pois infelizmente o óbvio tem sido profundamente obscurecido pelo julgamento do STF e sua cobertura de imprensa. Qualquer pessoa que acompanhou um pouco mais à fundo a história do “mensalão” desde o começo sabe perfeitamente que ele não foi provado. Leia-se, não há qualquer evidência factual que ateste seja o desvio de recursos públicos seja a compra de deputados no Parlamento. Não me estenderei nesse texto sobre estes aspectos jurídicos da questão, e sugiro apenas, que os interessados leiam o livro “A outra história do mensalão” do jornalista Paulo Moreira Leite.
Sim, houve a prática de caixa 2, assumida por Delúbio Soares já em 2005, isto é, a existência de doações de campanha feitas sem registro pelos doadores privados, o equivalente nas campanhas políticas ao que as empresas fazem no mundo privado ao não emitir nota fiscal. Mas mesmo também neste ponto específico não se encontraram provas da implicação direta de Dirceu e Genoíno. Evidentemente, não se trata aqui defender o caixa 2 – ao contrário, buscaremos mais à frente neste texto refletir mais amplamente sobre as raízes do assunto – mesmo sendo óbvio que como disse o escritor Fernando Morais recentemente “Até os paralelepípedos da Barra Funda sabem que todas as campanhas políticas do Brasil são feitas com caixa dois”.
O nó da questão é que transformaram um caso de caixa 2 “no maior escândalo de corrupção da história” brasileira e evidentemente isso tem sérias implicações políticas. Ministros do Supremo abandonaram qualquer veleidade de neutralidade jurídica e apego aos fatos para dizerem que se tratava de uma “quadrilha com projeto de se perpetuar no poder”. À maneira de Goebbles, a mídia somada à interesses muito precisos que descreveremos mais à frente, conseguiu sem dúvida tornar uma mentira repetida à exaustão numa verdade inconteste. Mais do que isso, numa arquitetada ação propagandística conseguiram fazer com que “Mensalão”, virasse literalmente sinônimo de corrupção nos pontos de ônibus, bares e escolas em grande parte do Brasil. O não provado “Mensalão” assumiu um tal status de “crime político hediondo”, assim como “xerox” virou sinônimo de “copiadora”, enquanto que outros escândalos passados que ao menos do ponto de vista das evidências factuais são muito mais passíveis de receberem tal alcunha como a compra da reeleição de FHC em 1997 ou os incontáveis escândalos ligados ao processo de privatizações de estatais no mesmo governo, foram postos debaixo do tapete.
É sintomática a parcialidade da mídia em adjetivar petistas de “mensaleiros” , chegando em alguns casos mesmos a usar a palavra “bandidos” mesmo muito antes do julgamento viciado do STF se concluir. Já o “comprador de votos”, “o privateiro e propineiro tucano” FHC e seu PSDB não apenas permanecem intocados, como ainda o ex-presidente hipocritamente acaba de declarar na imprensa o “bem” que a AP 470 teria causado ao país.
Assim, o nosso veredito há de ser claro. Dirceu e Genoíno são presos políticos, mesmo que isso se dê amarga e contraditoriamente no contexto de um governo do PT. Isso nos permite então levantar outra questão: quando vamos prender, entre inúmeros outros, o cara que torturou o Genoíno? E o cara que mandou este cara torturar? E os políticos que mandaram este último cara dar a ordem de tortura? E aqueles empresários que financiavam todo o esquema paramilitar de tortura para que o cara torturasse? E os donos dos meios de comunicação que sabiam disso tudo e apoiavam tal regime e quiçá também financiaram? No final da história, no país presidido pela ex-torturada Dilma, não prendemos nenhum desses, e só mesmo o cara que foi torturado está preso.
Tais contradições que herdamos da ditadura militar, prosseguem de certo modo na dinâmica atual da política brasileira. E também são contradições que marcam a fundo o Partido dos Trabalhadores e seus governos. Suas alianças políticas e sua escolha por governar dentro da lógica existente não os livra de serem bombardeados pelos verdadeiros donos do poder. Para além das implicações mais óbvias e diretas da AP 470 já mencionadas acima, há uma outra dimensão que gostaríamos de reter aqui. Enquanto estão presos Dirceu e Genoíno, os donos do poder comemoram, pois permanecem livres e anistiados o lobismo e o contexto social que o fomenta. Como sabemos a prática do lobismo significa a manipulação da política e do Estado em prol de interesses privados. Envolve por vezes formas mais diretas e por vezes formas mais indiretas seja de sedução e cooptação, seja de coação e chantagem. Se em si mesmo o lobismo existe desde que existe a política, ele tem ganhado ainda mais força – no Brasil e no mundo – com o modus operandi do capitalismo contemporâneo. Por que? Na medida em que o capitalismo torna-se cada vez mais plutocrático e o capital sem controle a sua tendência a subverter o poder em torno de seus interesses torna-se mais intensa. Toda a cantilena em torno do “livre-mercado”, “concorrência”, “meritocracia” que sustentariam o edifício ideológico do liberalismo torna-se uma piada de mau gosto diante da lógica efetiva do capitalismo contemporâneo que é a da concentração, do monopólio, da ligação promíscua entre poder econômico e Estado, leia-se, dos privilégios constantemente repostos sobre aquilo que supostamente deveria ser o “livre jogo das forças econômicas”. O que se tem chamado nas últimas décadas de financeirização da economia global é o motor fundamental de tais tendências. Não apenas pelo fato de que há uma globalização financeira cada vez incontrolável, especulativa e soberana como pelo fato de que a própria lógica da produção real de mercadorias está crescentemente dominada pela lógica das finanças. Trata-se da “governança corporativa”, leia-se a predominância total dos grandes acionistas – externos à produção – sobre as empresas que através da mera posse de títulos de propriedade buscam em escala global rentabilidade máxima e liquidez constante tornando-se os verdadeiros e únicos senhores da economia capitalista. Afirmando-se o rentismo como finalidade última das relações econômicas, a “mão visível” dos grandes blocos de capital tende a prosperar sobre a idílica “mão invisível” dos mercados.
Deste modo, as recentes políticas de salvamento do setor privado às custas da sociedade em diferentes países a partir da crise mundial de 2008 não são um raio em céu azul, mas sim algo muito mais estrutural. Na esteira desse processo, não é preciso ser marxista para se ver que acentua-se o reforço da desigualdade e a traição à democracia, como tem insistido, por exemplo, o insuspeito Paul Krugman com relação aos EUA de hoje. Num ambiente instável em que o determinante é a valorização de papéis financeiros é claro que a concentração de capital e poder se reforçam, bem como os privilégios dela derivada. Afirma-se portanto um verdadeiro capitalismo de privilégios, onde é evidente que o lobismo em suas distintas facetas há de prosperar.
Tampouco precisamos de grandes esforços para notar que os Estados Nacionais tornam-se crescentemente cooptados e passam a ser pautados por tal lógica. A tradicional ideia keynesiano-desenvolvimentista de que o Estado pode e deve controlar o capital não encontra mais espaço. Em última instância é o capital que controla o Estado, usando como arma da globalização econômica como chantagem permanente. Ou seja, estamos aqui hoje você garantir meus lucros e privilégios. Do contrário, eu, o capital globalizado, fujo e retiro meus dólares, faço greve de investimentos mesmo quando o governo por exemplo assume parte dos riscos nas PPP`s, etc. As recentes pressões por mais aperto fiscal no Brasil – leia-se mais cortes de gastos e aumentos de impostos – e as ameaças das agências de risco sobre a qualidade de nossa dívida pública são mais um capítulo revelador dessa queda de braço perdida já de antemão em prol do capitalismo financeiro de privilégios e que mostra a inépcia das políticas keynesiano-desenvolvimentistas nos dias de hoje. Sem dúvida também foram tais chantagens por recursos imediatos aqui e agora que fizeram o governo Dilma abandonar ao capital externo através do regime de partilha riquezas substanciais do pré-sal. Sim, há aqueles que argumentam: ok, mas não há alternativa, a correlação de forças, temos que jogar esse jogo, etc. Podemos até entender o argumento, apesar de não endossá-lo. Mas quem o sustenta, deve no mínimo reconhecer esta é a raiz profunda do desmonte não só da capacidade de ação autônoma do Estado, como da própria democracia enquanto tal.
As tendências citadas acima tornam-se dramáticas ainda mais num capitalismo periférico e dependente como o Brasileiro. Aqui, a ideia de nação desde a colônia sempre foi obstaculizada pela lógica dos “bons negócios”, dos ganhos imediatos e predatórios sustentados por um patrimonialismo em que o Estado sempre foi o esteio e salvaguarda do enriquecimento privado. É nesse caldo de cultura que no Brasil forjou-se uma classe capitalista assentada na captura do Estado e nas suas benesses ao mesmo tempo em que vivendo à sombra do capital externo. Em outras palavras, uma burguesia nacional débil, temerosa ao povo e materialmente incapaz de qualquer autonomia diante da dinâmica hegemônica dos países-sede do capital monopolista do século XX. Não é portanto difícil entender porque nas crises dos anos 1980 e 90 a alternativa para a esta mesma classe seria abandonar qualquer veleidade de compromisso nacional – mesmo que só de aparências – e exigir a quebra do Estado brasileiro para salvar seu patrimônio – p.ex, estatização da dívida externa privada, ganhos enormes do sistema financeiro durante a alta inflação lastreados na explosão da dívida interna, etc – e finalmente com o processo de abertura econômica aprofundar seu papel de sócio minoritário do grande capital externo já altamente financeirizado e globalizado.
Ora, a fusão de tais dinâmicas – externa e interna – só fez acentuar o caráter de privilégios do capitalismo brasileiro. Em que pese o fato de os governos do PT lograrem promover importantes melhorias de vida para a metade mais pobre do Brasil que literalmente fora marginalizada durante as várias décadas de “modernização”, tal “modus operandi” de nosso capitalismo continua se aprofundando. Tal a razão última do que aqui chamamos de “economia política do lobismo”. Devemos entender tal fenômeno não apenas na sua dimensão mais nítida, como por exemplo, uma empreiteira que cede fortunas a diferentes partidos para se ver privilegiada numa obra futura. Há outras formas de “lobby”, um tanto mais sutis às vezes, mas não menos perniciosas. Grandes empresas e bancos que financiam a política institucional buscam fazer valer o seu papel privilegiado na vida nacional. Trata-se de assegurar benefícios fiscais futuros, ter certeza do protelamento de centenas de milhões em dívidas com governos em mecanismos como o REFIS, ter créditos favorecidos do BNDES, ter a certeza de que a política monetária e de crédito preservará os lucros dos bancos, para não falar ainda no caso clássico das privatizações subsidiadas dos anos 1990.
Corroborando – e muito – tais práticas, temos a própria estrutura institucional contemporânea das campanhas eleitorais. Cada vez mais mercantilizadas e tornadas negócios em si mesmas, ricas em formas espetaculares e pobres em conteúdos concretos, e consequentemente dependentes dos gigantescos caixas privados – 1 ou 2 – para todo e qualquer partido que almeje uma efetiva força eleitoral. O capitalismo brasileiro de privilégios ganha então duplamente: de um lado, a “commoditização” da política sufoca a possibilidade de crítica à sua hegemonia, ao mesmo tempo em que seus esquemas de financiamento reforçam ainda seu poder de lobby. Mais ainda, para além dos períodos eleitorais, a manutenção de privilégios e lobismos explícitos ou implícitos prosseguem nas suas formas ilícitas - como a propina - ou lícitas que são as diversas chantagens e coações“lícitas” já referidas neste artigo.
Ao linchar figuras-chave do PT, o capitalismo de privilégios, apoiado na não menos privilegiada e antidemocrática grande mídia brasileira, persegue também um duplo objetivo. Como bem observou o jornalista Paulo Moreira Leite, trata-se de construir uma “opinião publicada” forjada para que ela seja a única “opinião pública” possível. De um lado trata-se de canalizar a sensação de impunidade e de injustiça da população para Dirceu e Genoíno e assim encontrar um álibi temporário para a naúsea que a fusão promíscua entre poder econômico e político causam na sociedade. Não por outro motivo, são em grande parte tais linchadores os mesmos que tentam barrar a reforma política – proposta pelo PT – que poderia através de um financiamento público de campanha, ao menos tentar amenizar a referida promiscuidade. O encarceramento de Dirceu e Genoíno pode assim deixar livre o caminho para aqueles que precisam que tudo continue como está. Ao mesmo tempo, consegue-se com o linchamento achincalhar e desmoralizar o Partido dos Trabalhadores, compreendido aqui não apenas nos seus governos e lideranças, mas fundamentalmente na força social e histórica que, apesar dos pesares, o PT ainda simboliza e constitui, ou seja: os sindicatos, sem-terra, movimentos sociais e populares, intelectuais críticos, os trabalhadores organizados, etc. Ou seja, trata-se de jogar na vala comum todos aqueles que possam organizar uma resistência efetiva ou minimamente ao menos tentar limitar os aspectos mais perniciosos do fenômenos que ora descrevemos.
E para finalizar. Ironicamente, os dois dirigentes presos certamente foram as principais lideranças que na dinâmica do PT conduziram mudanças internas para que o partido costurasse as alianças políticas com partidos da direita e também para que os governos Lula/Dilma deixassem de apontar qualquer ruptura efetiva com o capitalismo de privilégios que temos sugerido aqui. Junto com a luta pela libertação de Dirceu e Genoíno, é preciso recuperar o sentido original e histórico do PT, partido que nasceu para transformar a ordem existente e lutar pelo socialismo. Até porque a AP 470 e o julgamento do “mensalão”, compreendidos aqui não nos seus contornos imediatos, mas na dinâmica de fundo da vida brasileira, nos sugere que hoje em dia para ser mesmo democrata, é preciso ser socialista. Contra o capitalismo brasileiro de privilégios a resposta ainda deve ser socializar o Estado e a economia.
Daniel Feldmann, professor universitário
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