Um pequeno glossário com
a lista dos principais clichês repetidos pelas redes
sociais para justificar, no discurso, um mundo de
violência e exclusão
Dizem
que uma mentira repetida à exaustão se transforma em
verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é
só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba
para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o
terreno para legitimar ofensas, preconceitos,
perseguições e exclusões ao longo da História. Nem
sempre é resultado da má fé. Por estranho que pareça, é
na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma
indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as
tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os
anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre
qualquer assunto e o exercício de moderação de
comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo
cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo
humanitário: ao replicar, você não está sendo original;
está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar
pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à
exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas
relincho*.
“Negros
tem preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de
terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das
redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É
propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão
na consciência em datas como esta: pessoas que nunca
tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em
entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é
recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a
maioria da população brasileira não circula em ambientes
frequentados pela elite financeira e intelectual do País,
como universidades, centros culturais, restaurantes, shows
e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica
aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar
que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora
os processos históricos de dominação e exclusão de seu
próprio país.
“Não
precisamos de consciência preta, parda ou branca.
Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada
que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a
exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca,
nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria
necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o
gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de
exclusão e agressão?
“Heteros
morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais
vulneráveis”
É
o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua
escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto
têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira,
por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas
não necessariamente por causa da orientação sexual da
vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se
perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide
estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque
este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo
oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é
tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em
plena Avenida Paulista.
“Estamos
criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que
essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por
quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê
na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas
pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do
trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para
constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria
para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas
costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga
imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto).
Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi
boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje (quando usa
camisa preta)?”. Quando joga futebol, vê a torcida
imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando
gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se
descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas
parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito
contra a própria condição ou está em busca de privilégio.
Resultado: precisamos de um novo glossário sobre
privilégios.
“A
mulher deve se dar o valor”
Repetida
tanto por homens como mulheres, é a confissão do recalque,
em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre
ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus
próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos
mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos
o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a
menina assume por sua conta e risco toda e qualquer
violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer,
andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem
quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça
certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a
agressão.
“A
Lei Maria da Penha não protege os homens da violência
feminina”
Na
Lua, é possível que a relação entre gêneros seja
equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem
que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua,
levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua
sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância
estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados
e invadidos por grupos de mulheres que dominam as
delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar:
“Quem mandou tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser
filmada, é porque quis se exibir”. Verdade. Mas não leva
em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela,
ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu
favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços
como comedor. Ela, enquanto isso, vai a exibida. A puta. A
idiota que se deixou ser flagrada. A vergonha da família.
A piada na escola. Parece uma relação bastante
equilibrada, não?
“O
humor politicamente correto é sacal”
É
a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente
incorreto serve para manter as posições originais ao riso:
ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando
nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos
pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays
e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à
medida que a plateia não se identifica com elas: a graça
de uma piada sobre português é proporcional à distância do
primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é
usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa
branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só
não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de
“elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples
fato de ser alto como o artiodátilo.
“Bolsa
Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e
trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a
sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente,
por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar
hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e
a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o
jornal e ler além o horóscopo ninguém quer”; se quisesse,
o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que
também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento
público do que programa de transferência de renda. Ou que
a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só
trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a
regularidade na escola e atravessar as portas de saída do
programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma
que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.
“Na
ditadura as coisas funcionavam”
Frase
geralmente acolhida por pacientes com síndrome de
Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia crescia para
poucos, às custas de endividamento externo e da
subserviência a Washington; universalização do ensino e
da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os
seus representantes, a imprensa não podia criticar os
generais e a sensação de segurança e honestidade era
construída à base da omissão porque ninguém investigava
ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era
prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira
página (os bolos eram de fato melhores).
“Você defende direito de
presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”. É o
sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das
leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito,
aplicação de penas e encarceramentos são privilégios
bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o
Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e
instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a
eventual agressão contra um integrante de uma família
seria compensada com a agressão a um integrante da família
do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de
leis e instituições, para ele, são licença poética: bons
eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos
públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor
do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a
tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e
violentar a família de quem, como ele, defende penas mais
duras para crimes inafiançáveis.
“A
criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte
no Brasil”
Frase
repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor
da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo
tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o
crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas
está longe de ser varrido junto com seus meliantes.
“Político
deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução:
“não gosto de política nem de médico cubano”. Pelo
raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e
todo político que precisa de tratamento médico DEVE
morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que,
na falta de médico brasileiro, o melhor é deixar morrer –
ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas
pelo humor de quem governa na canetada.
“Deveriam
fazer testes de medicamento em presidiários, não em
animais”
Também conhecida como
“não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que
tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não
aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga
para o tratamento desumano contra humanos. É repetida
também por quem se imagina livre de todo pecado e das
grandes ironias da vida, como um certo fiscal da
prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o
direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava
preso acusado de participação na máfia do ISS. É como
dizem: teste de laboratório na cela dos outros (ou do
filho dos outros) é refresco.
“Por
que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como
“acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na
banguela”.
*Este
post é permanente: será atualizado conforme outros
clichês não contemplados na primeira postagem
aparecerem. Todos estão convidados a colaborar.
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