quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Pisos, níveis salariais e soberania nacional


                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso
     Neste mês de janeiro segue a peleia dos trabalhadores catarinenses pela melhoria dos pisos estaduais, implantados há uma década, com muito suor e algumas lágrimas. A reivindicação inicial dos trabalhadores catarinenses, que visava igualar os pisos do estado aos do Paraná, é perfeitamente legítima e viável em termos econômicos. Como a referida proposta já foi rejeitada pelos patrões na última rodada (em 21.01), não vamos gastar muito espaço neste artigo com o assunto. Mas lembro que, se o critério de reajuste dos pisos em Santa Catarina fosse o mesmo do Paraná (INPC + variação do PIB de dois anos antes), aqui no estado os reajustes seriam superiores visto que a evolução do PIB catarinense tem sido superior a do estado vizinho. Na comparação de seis anos, entre 2012 e 2017, a variação do PIB catarinense foi superior à do Paraná em quatro. Além disso, o PIB per capita de SC, que é quinto do Brasil, é superior ao do Paraná, o que possibilita uma melhor condição para o pagamento de salários um pouco melhores.
     Conforme os trabalhadores têm repetido nas rodadas de negociação neste ano, reajuste salarial não quebra empresário. Especialmente quando aplicado para os que estão na parte de baixo da pirâmide salarial. Negociar R$ 100 de salário para o trabalhador comprar comida, é injetar vitamina na veia da economia. O que pode quebrar o empresário catarinense é a política suicida do Bolsonaro/Guedes e não um aumento de 10% nos salários para comprar feijão, arroz, batata e leite. Por exemplo, a saída de dólares da economia brasileira no ano passado (líquida de US$ 44,77 bilhões), que é recorde na história do país, esta sim prejudica a economia e as empresas como um todo.
     Aquilo que Paulo Guedes pretende anunciar nos próximos dias em Davos, na Suiça, é que deveria preocupar o empresariado. Segundo consta o governo Bolsonaro pretende abrir para empresas estrangeiras licitações e concorrências públicas realizadas no mercado brasileiro. Ou seja, Paulo Guedes irá fazer o Brasil aderir ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC), que obriga seus integrantes a dar isonomia de tratamento entre empresas nacionais e estrangeiras nas contratações públicas nas áreas de bens, serviços e infraestrutura. Quando Bolsonaro disse que não veio para construir nada e sim para destruir, ele não estava brincando. É bom lembrar que um dos pilares do Plano Brasil Maior, do ministro Guido Mantega, era a concessão de margem de preferência de até 25% a produtos nacionais em licitações nas áreas de defesa, medicamentos, maquinário e até têxteis, como uniformes fornecidos às Forças Armadas. O golpe de 2016 veio, é claro, também para interromper esse tipo de política que protege indústria e empresas nacionais em geral. Isso sim deveria preocupar o empresariado nacional.
     Aumento de salários e melhoria da vida dos trabalhadores (90% da população) são fatores que estão muito colados à questão da soberania nacional. Se empresas nacionais e as leis trabalhistas são destruídas, fica cada vez mais difícil melhorar a vida dos trabalhadores, especialmente dos da base da pirâmide, que ganham menos e estão mais sujeitos ao desemprego e a precariedade. Os salários no Brasil são baixos, dentre outras razões, porque o país tem que transferir riqueza para o centro imperialista. Os salários na China já são superiores aos do Brasil porque lá a política econômica é soberana e atende fundamentalmente aos interesses do pais. A vergonhosa condição do Brasil de colônia norte-americana, impede qualquer ilusão de melhoria das condições de vida e trabalho da população. Colônia não existe para melhorar a vida do seu povo, e sim para enviar riquezas para a metrópole.     
        Temos insistido com os empresários que a negociação dos pisos é realizada fundamentalmente por alimentação. Com os valores atuais dos pisos, no fundo o que se está negociando é o direito do trabalhador, e sua família, poderem comer em 2020. De posse do piso salarial o trabalhador não consegue fazer mais nada do que repor sua capacidade de comprar alimentos no mês. Mesmo assim com muitas restrições. Em dezembro de 2019, segundo o DIEESE, Florianópolis apresentou o segundo maior preço da cesta básica no país, custando R$ 511,70, acima do preço de São Paulo, que é capital econômica do país (R$ 506,50). No mesmo mês, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 4.342,57 ou 4,1 vezes o mínimo de janeiro (R$ 1.039,00).
     Não estamos falando de roupas da moda ou de vinhos. O trabalhador que ganha o piso (ou um pouco acima) não dispõe de reservas financeiras. Quem recebe piso (ou mesmo salário médio) em Santa Catarina, em muitos meses tem que escolher qual conta deixará de pagar. Vive mesmo na margem da sobrevivência, daí a importância de um ganho real, para começar a mudar essa realidade. A terceira rodada de negociação teve a presença de cerca de 60 trabalhadores muito atentos. Não temos dúvidas que será essa mobilização dos trabalhadores catarinenses que pode garantir uma melhoria no valor real dos pisos para 2020. Quem viver, verá.   

                                                                                                              *Economista

domingo, 19 de janeiro de 2020

Quem apoia a política de destruição nacional deveria colocar as barbas de molho


                 
*José Álvaro de Lima Cardoso
      A saída líquida de dólares da economia brasileira no ano passado (entradas menos saídas) foi de US$ 44,77 bilhões. Esta é a maior evasão de divisas do Brasil em toda a série histórica, iniciada em 1982. O recorde anterior de fuga de capitais tinha sido registrado em 1999, quando o saldo cambial (diferença entre as entradas e saídas de dólares) ficou negativo em US$ 16,18 bilhões. Não por acaso o fenômeno ocorreu em 1999, no governo FHC, num ano em que o Brasil, monitorado pelo FMI, (grande credor brasileiro à época) tinha adotado uma política de livre flutuação cambial. Nessa ocasião a cotação do dólar ultrapassou pela primeira vez a barreira dos R$ 2. De qualquer forma, o número de 2019, é quase três vezes superior a fuga de 1999.
     O fluxo cambial é composto do fluxo comercial (exportações e importações), e do fluxo financeiro (investimentos, empréstimos e transações no mercado financeiro). O fluxo comercial foi positivo em 2019, em US$ 17,47 bilhões. A evasão dos dólares foi um fenômeno da esfera financeira das contas externas brasileiras. Os US$ 44,5 bilhões foram os retirados por investidores estrangeiros de aplicações na bolsa de valores.
     Esse comportamento dos grandes especuladores deveria levar os setores do capital mais voltados ao mercado interno, e em geral, os que apoiam o estrago que a dupla Guedes/Bolsonaro está fazendo na economia, a colocar suas barbas de molho. Vamos recordar que, desde o golpe em 2016, as medidas de destruição de direitos e da economia nacional, vieram acompanhadas de promessas de que elas iriam atrair fartos investimentos para o Brasil. Foi o caso da contrarreforma da previdência social (que objetiva desmontar a previdência pública), que, segundo promessa do governo, aumentaria a confiança dos investidores, o que supostamente faria “chover” dólares no Brasil. Mas o que assistimos no ano passado foi exatamente o contrário: a maior fuga de dólares da história na série registrada.
     A turbulência cambial e a saída recorde de capitais do Brasil, têm uma série de fatores internacionais, a começar pela encarniçada guerra comercial entre EUA e China, que no ano passado escalou, abalando a já combalida economia mundial. Mas os próprios eixos de política econômica do governo são fontes de enorme insegurança para investidores. Na segunda maior fuga de capitais registradas no Brasil, no governo FHC, o que vigorava era também o entreguismo e grandes ataques aos trabalhadores (é verdade que numa escala menor que a verificada no governo Bolsonaro). Subserviência aos países dominantes do mundo, combinada com extrema inaptidão técnica, não sinalizam confiança a nenhum tipo de investidor. Destruição de instrumentos públicos de intervenção estratégica do Estado e a desmontagem das estruturas de atendimento à população, ao afetar a estabilidade social do país, impactam também o humor dos investidores, que buscam segurança para os seus investimentos (nem que seja um mínimo).  
     Bolsonaro já cumpriu em parte, em 2019, promessa feita nos Estados Unidos, em jantar com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. "O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa", afirmou em 18.03.2019, na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington.
     O governo Bolsonaro, do ponto de vista de quem coordenou o golpe de 2016, foi um “mal menor”, ou seja, podia-se eleger qualquer um, desde que servisse para evitar o retorno ao poder dos que foram de lá retirados à força. Mas esse governo tem que equacionar duas variáveis complexas: 1. aprofundar o programa de guerra contra a população, iniciado no governo Temer; 2. Simultaneamente evitar que a referida política provoque uma reação dos prejudicados (90% da população). É uma equação complicada porque as duas ações são praticamente antagônicas. Pode-se enganar uma parte do pessoal durante algum tempo. Mas tal política tem limites, como vimos no exemplo recente da Argentina. Apenas a blindagem da mídia (em relação à política econômica) e as permanentes mentiras, em certa altura dos acontecimentos, já não são suficientes.  Por isso a violência contra a população aumentou muito no Brasil em 2019.
    Já foram centenas, eventualmente mais de mil ações ao longo do ano passado, abolindo ou reduzindo direitos, ferindo a soberania nacional, enfraquecendo instrumentos de intervenção estatal, e assim por diante. Na medida em que o programa do golpe vai sendo implementado, o aumento do desemprego, a precarização, a perda de poder aquisitivo, o retorno da fome, a destruição da indústria, e centenas de outras medidas, estão tornando a vida do povo cada vez mais insuportável.
    Esse quadro interno se soma a uma conjuntura de gravíssima crise financeira internacional, que pode apresentar uma escalada a qualquer momento, em função das dificuldades de retomada da economia mundial. Enquanto isso, o governo Bolsonaro expõe a economia brasileira ainda mais às turbulências mundiais, torrando as reservas internacionais, deixadas pelo governo anterior. Em 1º de janeiro de 2019, as reservas internacionais eram de US$ 374,715 bilhões, e em 31 de dezembro de 2019 estavam em US$ 365,481 bilhões.
                                                                                                  
*Economista
20.01.20.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Pano de fundo do assassinato do general iraniano e crise no Oriente Médio


                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso
     São várias as interpretações para a ação do governo dos EUA, que no dia 3 de janeiro assassinou o general iraniano Qasem Soleimani, através de um ataque de drones no Aeroporto Internacional de Bagdá. O importante líder militar, chefe da Força Quds (tropa de elite da Guarda Revolucionária Iraniano), foi morto, segundo consta, com o auxílio dos serviços de inteligência de Israel, que repassou dados fundamentais para a ação. Em seguida, em 7 de janeiro, o governo Iraniano retaliou, atacando instalações das bases norte-americanas de Ain Al-Asad e Arbil, localizadas no Iraque.
     Não se sabe com precisão, mas aparentemente o assassinato do general foi uma ação descolada de uma estratégia mais geral, que justificasse ato tão infame. Alguns analistas atribuem a ação aos interesses eleitorais e políticos mais gerais, de Donald Trump, em função das eleições para presidente previstas para este ano nos EUA. Outros avaliam que o objetivo foi desviar a atenção do processo de impeachment que o presidente dos EUA está sofrendo.
     O contexto no Oriente Médio é extremamente complexo, embaralhando elementos geopolíticos, econômicos, militares, religiosos, etc. O Oriente Médio, apesar de abrigar menos de 5% da população do globo, possui 65% das reservas petrolíferas do planeta. Advém desse último fato, em boa parte, a importância econômica e geopolítica da região. Apesar das motivações imediatas (os fatos sempre apresentam mais de uma causa), o mais importante a ser analisado é o contexto geral no qual se insere a ação criminosa do governo norte-americano. O pano de fundo do assassinato do general é a progressiva perda de influência política do imperialismo no Oriente Médio como um todo, o retrocesso político na região, especialmente por parte dos EUA.
     Por tudo que representa, o Irã é o principal obstáculo às políticas do imperialismo na região. E o general era um dos líderes dessa resistência. O Irã saiu da esfera de influência do império há 40 anos, com a revolução de 1979, que demoliu um governo títere dos interesses anglo-americanos. O Xá Reza Pahlevi, deposto pela revolução, havia subido ao poder em 1953 através de um golpe contra Mossadegh, organizado pelos imperialistas. O Irã é um pais muito importante na região, o mais populoso (81 milhões) e o mais industrializado. Um país com esse peso e com política soberana, é tudo que os EUA menos desejam para a região.  
     Um episódio fundamental, marco na história da região, foi a guerra da Síria, entre 2011/2019. O imperialismo como um todo, liderado pelos EUA, através da chamada guerra por procuração (utilizando mercenários), procurou por todos os meios derrotar o governo Sírio, que é nacionalista, com o velho e esfarrapado pretexto de “restauração da democracia” no país. Claro que a guerra nada tinha a ver com democracia, foi mais uma ação do consórcio imperialista, a fim de preservar seus interesses. O governo dos EUA armou militarmente a oposição ao governo Sírio, dentro e fora do país e vendeu a ideia de que havia uma guerra civil, com o povo revoltado contra o governo. Mas, ao que se sabe, a maioria da população apoia o governo e não aderiu à luta armada, que foi empreendida fundamentalmente por mercenários contratados.
     Em dezembro de 2018 o governo dos EUA retirou parcialmente suas tropas da Síria (aproximadamente dois mil militares). O que, na prática, foi o reconhecimento da derrota, especialmente pelo fato de que o objetivo principal da investida era derrubar o governo Bashar al-Assad e colocar um governo fantoche no lugar (como fizeram no Brasil por outros meios). Em outubro de 2019 os Estados Unidos anunciaram a retirada total das suas tropas da Síria.
     A derrota na Síria (não apenas dos EUA, mas do imperialismo como um todo, incluindo França e Inglaterra), levou a crise do imperialismo na região a um ponto muito alto. A derrota, que foi um marco fundamental na crise, contou com o auxílio luxuoso de Rússia e China, que aportaram armas, tecnologia, suprimentos e assessoria. Principalmente após a derrota na Síria, ficou evidente que, se não houverem fatos importantes na política para a região, o imperialismo arrisca perder o controle de todo o Oriente Médio. Com essa derrota criou-se uma situação extremamente perigosa para a política imperialista. Na própria Arábia saudita, principal aliado dos EUA na região, vigora uma crise interna bastante forte, tendo havido, inclusive, um golpe de Estado em 2017 (possivelmente com a participação dos EUA, já que o pais é o principal aliado do império no Oriente Médio).
     A perda de influência dos EUA no Oriente Médio aparenta ser o pano de fundo do assassinato do general Soleimani. Qualquer situação mais extrema, que implique em mobilização das massas, pode levar a uma conflagração geral na região. No contexto desse conflito a posição do Irã é extremamente influente. A população xiita – que no caso do Irã alcança 93% da população – está espalhada por praticamente todos os países do Oriente Médio. Se calcula, por exemplo, que 65% dos muçulmanos no Iraque são xiitas, sendo apenas 35% sunitas. Um eventual levante geral contra o imperialismo, ademais, pode unificar xiitas e sunitas. Disso tudo sabem os estrategistas dos países imperialistas, que dominam a região há séculos. Vem daí, também, ações desesperadas como o assassinato do general.
     A rejeição ao imperialismo na região não é obra do espírito santo. Só no período mais recente, há cálculos de que, desde a invasão do Iraque (em março de 2003), como resultado dos conflitos provocados, já morreram mais de 3 milhões de pessoas. O general Soleimani era um símbolo regional de resistência às invasões e conspirações dos países ricos, em busca de petróleo, dinheiro e hegemonia na região. As mortes no Oriente Médio são um custo previsível da interferência imperialista, que está interessado exclusivamente nos lucros de suas empresas e na ampliação de seu poder estratégico.
     Uma das consequências imediatas dessa crise recente no Oriente Médio é o agravamento da crise da economia mundial. Não só pela elevação do preço do petróleo, que já ocorreu em parte, mas pela própria situação econômica de conjunto. Na lista dos mais graves problemas da situação internacional, certamente o confronto EUA X Irã aparece como um dos mais importantes. O assassinato do general de certa forma foi um tiro no pé, na medida em que provocou enorme radicalização política em todo o Oriente Médio. Foi esse fator que levou Trump a recuar, evitando uma escalada da guerra no Oriente Médio. Mais do que o normal, vale a máxima de que uma guerra na região é fácil de iniciar, mas ninguém pode prever como terminaria.
     As tropas americanas na região, inclusive, ficaram numa situação extremamente difícil. No dia 05.01, após dois dias do assassinato, o parlamento iraquiano exigiu a saída das tropas norte-americanas do país (cerca de 6.000 soldados que vivem na chamada Zona Verde).
      Ao recuar de um confronto imediato, os EUA anunciaram o arrocho no bloqueio econômico feito pelos países ricos ao Irã, que é uma política verdadeiramente criminosa. Como fazem com Cuba desde 1960, como reação às medidas tomadas pelo governo revolucionário[1] e com a Venezuela, como retaliação a um governo independente (e com muito petróleo) na América do Sul. A política de embargo econômico traz grandes prejuízos ao país vitimado, pela falta de investimentos, atingindo em cheio a indústria, por exemplo. É também uma política genocida, que faz escassear alimentos, remédios e outros suprimentos essenciais, afetando diretamente segmentos mais frágeis da população (crianças, idosos, pobres, etc.). Para nós brasileiros, que nunca sofremos bloqueio econômico, é quase impossível avaliar o sofrimento e a resiliência do povo cubano, por exemplo, decorrente de quase 60 anos de bloqueio.
     A abordagem das notícias veiculadas no Brasil, que são vergonhosamente alinhadas com a versão norte-americana, vai tornando banal os EUA manterem tropas de ocupação em todo o Oriente Médio. Qual a normalidade do país mais armado do mundo[2] manter 80.000 militares em 22 bases espalhadas pelo Oriente Médio? Qual seria o objetivo de manter porta aviões-aviões nucleares, destroieres, cruzadores e submarinos na região mais rica em petróleo no mundo?
     O império americano, assim como os demais países imperialistas, encobre tudo isso com a alegada luta pela “democracia”. Mantêm tais aparatos militares na região, supostamente para garantir a democracia, já que os “bárbaros” do Oriente Médio não respeitam as liberdades democráticas. Invasões, bombardeamentos, financiamento de mercenários, etc, teriam como objetivo garantir a democracia na região. Há um gasto colossal para emplacar essa visão na mídia, redes sociais, arte e cultura, e assim por diante. Por exemplo, nos primeiros quinze dias do ano, o Twitter suspendeu dezenas de contas da Venezuela, Irã e Síria. Os banidos da plataforma incluíam chefes de Estado, inúmeras instituições estatais, veículos de comunicação e muitas pessoas que nada tinham a ver com os governos de seus países.
     No atual contexto de crise mundial, que explica em parte a ação dos EUA no Irã, um dos grandes riscos é de abastecimento do petróleo, pela importância do Irã na sua produção (o Irã é o 5º maior produtor de petróleo do mundo, atrás de EUA, Arábia Saudita, Rússia e Canadá) e pelo grau de sensibilidade deste mercado às crises políticas e militares. Após a reação do Irã ao atentado, com o bombardeamento de bases militares dos EUA no Iraque, Donald Trump declarou que os EUA não precisam mais do petróleo do Oriente Médio, porque seriam autossuficientes na produção. Mas este é um argumento falso, para dizer o mínimo.
     Petróleo não se resume ao problema do fornecimento aos países importadores. Com a primeira crise do petróleo, em 1993 e 1994, os países imperialistas começaram a operar para reduzir sua dependência do petróleo, especialmente das reservas do Oriente Médio. A Inglaterra, por exemplo, já naquele período, ampliou os investimentos do petróleo no Mar do Norte, reduzindo sua dependência em relação aos países do Oriente Médio. Nos últimos anos os EUA aumentaram muito a produção de petróleo, principalmente em função da tecnologia do fracking, método que implica na injeção de água em reservas subterrâneas, o que possibilita a extração de xisto, um tipo de hidrocarboneto localizado entre rochas em grandes profundidades.
     O mercado do petróleo, um dos mais importantes do mundo, é controlado pelos países imperialistas e suas gigantescas empresas de petróleo. Se o imperialismo perdesse o controle sobre o mercado de petróleo, o retrocesso econômico e a crise capitalista seriam acelerados. Uma guerra entre EUA e Irã tenderia a se espalhar por todo o Oriente Médio e levar os preços globais do petróleo a dispararem, levando a recessão, como já ocorreu nas várias conflagrações anteriores, em áreas estratégicas na oferta de petróleo.

                                                                                                         *Economista.
                                                                                                                                15.01.         


[1] Em 19 de outubro de 1960, quase dois anos após a revolução, os Estados Unidos embargaram as exportações para Cuba, com exceção de alimentos e remédios. O bloqueio foi uma retaliação à estatização das refinarias de petróleo, de propriedade norte-americana sem indenização. Em de fevereiro de 1962, o embargo foi estendido para incluir quase todas as exportações.

[2] O orçamento militar dos EUA para 2020 é de 750 bilhões de dólares, os maiores gastos anuais da história em armas nos EUA e o maior orçamento do mundo, disparado.   

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Governo Bolsonaro em 2019: a “desconstrução de muitas coisas”


                 
*José Álvaro de Lima Cardoso
    É importante sistematizar um balanço do governo Bolsonaro em 2019, mesmo que inicial, que foi de aprofundamento dos ataques aos trabalhadores e aos interesses soberanos do país. Antes mesmo de seu início, claro, já se sabia qual era a missão do governo Bolsonaro, sobre a qual os membros do governo nem procuravam disfarçavam: aprofundar as ações decorrentes do golpe de 2016, no referente ao fim da soberania e dos direitos sociais e trabalhistas. Era sabido que o governo objetivava destruir instrumentos públicos de intervenção estratégica do Estado, e que iria aprofundar a entrega do país para o sistema financeiro e grandes grupos multinacionais.
     Desmontar tudo que é público, já sabíamos no final de 2018, era a missão principal do governo Bolsonaro/Guedes. Bolsonaro cumpriu em parte, ao longo do ano passado, promessa feita nos Estados Unidos, em jantar com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. "O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa", afirmou em 18.03.2019, na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington.
      Algumas avaliações divulgadas neste início de ano fizeram um esforço de listar alguns ataques aos direitos sociais e trabalhistas, ações contra a cultura, contra o meio ambiente, contra a educação, etc. Mas a maioria das avaliações têm sido insuficientes, dados o número e a profundidade dos ataques. Foram centenas, eventualmente mais de mil ações ao longo do ano, abolindo ou reduzindo direitos, ou ferindo a soberania nacional, enfraquecendo instrumentos de intervenção estatal, e assim por diante.
     Vale destacar pelo menos alguns dos principais movimentos do governo, que ajude num balanço geral do governo em 2019:
1.Diminuição do valor do salário mínimo estipulado pelo Orçamento da União em R$ 1.006, para R$ 998, R$ 8 a menos;
2. Entrega da Base de Alcântara, uma das melhores bases para lançamento de      foguetes do mundo, sem qualquer contrapartida importante para o Brasil;
3.Redução significativa do mercado consumidor interno, com achatamento da renda e manutenção das altíssimas taxas de desemprego;
4.Aumento do número de pessoas que passam fome, com a destruição de políticas de combate à fome e com aumento da precarização e desemprego;
5.Liquidação, com dezenas de medidas, das políticas de proteção ao trabalho;
6.Aprofundamento do processo de destruição da indústria;
7. Aprovação da PEC da Previdência, reduzindo valor das aposentadorias e a chance de muitos brasileiros se aposentarem;
8.Profunda deterioração da imagem internacional do Brasil;
9.Desmonte da Petrobrás e entrega do Pré-sal;
10.Olímpico fracasso da política econômica: o Brasil continua com a economia estagnada;
11.Inúmeras ações para desarticular a organizações dos trabalhadores, especialmente suas entidades sindicais (por exemplo, a MP 873);
12.Manutenção do orçamento em ciência e tecnologia em quase nada e o congelamento de gastos primários (como educação e saúde) por 20 anos;
13. Aprofundamento do processo de primarização do Brasil, ou seja, a condenação do Brasil, a ser um eterno fornecedor de matérias primas para o mundo desenvolvido, se adequando aos interesses dos países imperialistas, especialmente dos EUA. No ano passado o Brasil teve mais produtos básicos (baixo valor agregado, como minerais, frutas, grãos e carnes) exportados que manufaturados.  Desde 1980 isso não acontecia;
14. Num momento em a economia mundial pode ter a sua mais grave crise da história, expuseram ainda mais o país às crises financeiras. Inclusive torrando as reservas internacionais, deixadas pelo governo anterior. Em 1º de janeiro de 2019, as reservas internacionais eram de US$ 374,715 bilhões, e em 31 de dezembro de 2019 estavam em US$ 365,481 bilhões;
15.Ataques aos servidores, com redução de salários e quadro de pessoal. Estão sucateando as repartições públicas e extinguindo órgãos. Proibiram concursos e extinguiram 27,5 mil cargos públicos;
16. Aprofundamento do processo de explosão de desigualdade social trazida pelo golpe de 2016. Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se havia observado;
17.Mobilização das bases do governo para aprovação do Projeto de Lei 3261/2019, que prevê a abertura da concessão do serviço de água e esgoto para empresas privadas no Brasil;
18. Encaminhamento de três PECs (Projetos de Emendas Constitucionais), chamadas, no conjunto, de Plano Mais Brasil. Na prática, o Plano Mais Brasil destrói o setor público brasileiro, em todas as instâncias;
19.Envio da Medida Provisória nº 905, de 11.11.2019 que trouxe a carteira verde e amarela e uma série de ataques aos direitos dos trabalhares.

     As ações de destruição de direitos e da soberania são em muito maior número, foram destacadas acima algumas consideradas mais importantes. Já se sabia que o governo Bolsonaro tinha vindo para aprofundar as ações do golpe de 2016 e levar em frente a política anunciada de destruição nacional. Mas o balanço do governo, para ter utilidade, não deve ser um rosário de lamentações, já que essa atitude, pura e simplesmente, o máximo que pode fazer é conduzir à depressão. Na realidade, o mais importante é apurar o saldo das lutas travadas ao longo do ano, um saldo, obviamente, extremamente negativo. Temos que reconhecer que, do ponto de vista da população, à exemplo do que ocorre desde o golpe em 2016, as perdas foram catastróficas.
    A quantidade de direitos sociais e sindicais, liquidados pelo governo de extrema direita no ano são, por si só, a demonstração de que a correlação de forças continua muito desfavorável aos trabalhadores. Isso leva à conclusão inevitável de que os métodos e/ou a intensidade da luta travada pelos trabalhadores, foram, no mínimo, inadequados. Um dos problemas colocados, claramente, foi o da falta de uma avaliação correta da natureza do governo Bolsonaro, ou seja, da percepção de que este governo, conforme disse Bolsonaro em Washington, veio para fazer terra arrasada dos direitos da maioria, visando resolver a crise do capitalismo internacional. Não se pode desconsiderar que o governo Bolsonaro é cria do golpe de 2016 e da fraude eleitoral ocorrida em 2018.  
     Uma das consequências do desconhecimento da natureza do governo, foi querer enfrentar as suas políticas de forma isolada. Ao invés da população enfrentar o governo coletivamente, considerando o conjunto de sua política de guerra, tentou-se combater cada ação especifica, na medida em que iam sendo implementadas. O que seria impossível, até mesmo pela quantidade de ataques que foram realizados desde o início do ano, quase que diários. O resultado dessa política é que os protestos foram insuficientes e muitas vezes limitados à categoria que era mais prejudicada por este ou aquele ataque específico. Isso levou à uma fragmentação da luta. Os trabalhadores da Petrobrás, dos Correios, funcionários públicos, encaminharam suas lutas específicas, sem uma grande mobilização nacional, visando enfrentar o conjunto das políticas, que, na essência, vão contra o interesse de 90% da população, pelo menos.
     Não há nada que indique que 2020 será melhor. Os ataques aos direitos serão tão fortes, quanto menos vigorosas forem as mobilizações dos trabalhadores. Por isso é fundamental precisar a avaliação da natureza da política econômica e social do governo, para calibrar melhor as estratégias de organização e de encaminhamento das lutas.   
                                                                                                  
*Economista
07.01.20.