segunda-feira, 31 de maio de 2021

A política do “grande porrete” em ação no mundo

 

                                                                                                *José Álvaro de Lima Cardoso

     Os recentes acontecimentos de Israel, Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, Brasil, que são grandes “fatores de crise”, em diferentes regiões do mundo, parecem revelar um deslocamento à esquerda por parte da ação dos trabalhadores. Além disso, parecem ser movimentos interligados, que mostram uma tendência mundial. São elementos muito importantes, que revelam o esgotamento de um tipo de política do sistema capitalista, que é a “política neoliberal”. Tem que procurar entender a política do governo de Joe Biden (econômica, diplomática, etc.), olhando essa situação no seu conjunto. O polo político que ele representa está numa crise extraordinária. Ou seja, é uma crise gravíssima nos partidos mais representativos da política do imperialismo. Nos EUA esta crise não é uma possibilidade, ela é muito real. O país está em grande polarização, ou o governo faz alguma coisa ou será varrido pela mobilização popular.

      O plano de Biden, que pretende injetar US$ 6 trilhões na economia (quase 30% do PIB do país) tem que ser entendido dentro dessa lógica de enfrentamento da crise. Não significa uma ruptura com a política neoliberal. Não se trata também de uma guinada keinesiana na política estadunidense, como desejam alguns analistas. Apesar de serem medidas de grande envergadura, reveladoras, inclusive, da profundidade da crise, não há garantias que as políticas neoliberais sejam interrompidas. Até mesmo porque faz quarenta anos que o imperialismo só apresenta essa política para tentar resolver os problemas do capitalismo no mundo. A crise é muito significativa, o mundo parece estar caminhando para uma situação de verdadeiro colapso político e econômico, como poucas vezes se viu na história.

     Com os planos recém lançados, Biden inicia uma temporada de acirramento das relações com China e Rússia. A retomada dos investimentos públicos, é uma forma de competir com o modelo de desenvolvimento econômico chinês. Há uma avaliação, por parte do governo Biden, que a China está ocupando um espaço econômico exagerado, desproporcional ao seu poderio geopolítico e militar no mundo. Poderio econômico e poder bélico são fatores intimamente interligados. O golpe recente no Brasil, aliás, em boa parte motivado pela descoberta de novas jazidas de petróleo, parece não deixar dúvidas sobre esse fato. Portanto, nesse contexto, a relação China X Estados Unidos tende a ficar cada vez mais tensa, em meio a uma série de disputas sobre comércio, direitos humanos e as origens da Covid-19. Recentemente os Estados Unidos colocaram na lista maldita dezenas de empresas chinesas, utilizando pretextos. Biden vem criticando a China por seus “abusos” no comércio e em outras questões.

      Com Biden, os norte-americanos deverão promover uma série de conflitos militares no mundo, “por procuração” com outros grupos, tropas irregulares como fizeram na Síria e em outros países. O objetivo é estimular a oposição interna para depois, apoiado pela OTAN, partir para agressões militares. Provocação à Rússia, à China, à Venezuela, é esse o ambiente que deve prevalecer nos próximos anos. Joe Biden foi o candidato da máquina de guerra norte-americana: Pentágono, falcões, Cia e demais serviços de espionagem, forças armadas, grande capital imperialista, etc. Ou seja, a essência da política imperialista apoiou Biden. Trump presidente, comparado com Biden, é um “estranho no ninho”, acusado, inclusive, de aproximação com a Rússia.  

          O padrão de vida conquistados pelos norte-americanos está relacionado à sua ação imperialista no mundo todo. Então, ao mesmo tempo em que eles tem que se preocupar com a disputa geopolítica com a Rússia, estão de olho no tabuleiro político latinoamericano. Não é nada específico contra a Rússia ou China. É que atuam como um Império que são, e aqueles são seus principais rivais. Se quisermos entender a natureza da “democracia” nos países imperialistas, precisamos saber que o orçamento militar dos EUA para este ano, de US$ 740,5 bilhões, é superior aos orçamentos militares somados dos 10 países seguintes com os maiores orçamentos.

     A democracia norte-americana funciona segundo aquele princípio sintetizado por Roosevelt: “Fale suavemente e carregue um porrete grande” (Theodore Roosevelt, Presidente dos Estados Unidos, 1901-1909). A situação na América do Sul é muito frágil porque não tem nenhuma potência com capacidade nuclear. Por outro lado, nenhum país tem uma aliança estratégica do ponto de vista militar, com Rússia ou China. Tudo isso torna a situação do subcontinente extremamente vulnerável.

     Os Estados Unidos, além de suas frotas de porta aviões, navios e submarinos nucleares que cruzam os mares de todo o mundo, possuem mais de 700 bases militares terrestres fora de seu território nacional nos mais diversos países. Eles conseguiram essas bases através de tratados e através do peso econômico da economia norte-americana, do imperialismo norte-americano. Russos e os chineses não têm esse poderio. Uma das razões dos EUA terem encaminhado o golpe no Brasil foi a aproximação com a Rússia e a China através dos BRICS. Em 2015, antes do impeachment, o Brasil tinha assinado com a China 35 grandes projetos de infra-estrutura no país, incluindo a Ferrovia Transocenianica, ligando o Atlântico ao Pacífico, ligando o Brasil (RJ) à Lima, no Peru.

     Um sintoma de que a política do “grande porrete” funciona nas relações internacionais, foi o quase sepulcral silencio da China e da Rússia, em relação ao golpe no Brasil, assim como nos demais países da América do Sul. A China perdeu uma porção de negócios na América Latina toda, por causa dos golpes, mas não se manifestou mais fortemente.  Os norte-americanos querem obrigar Rússia e a China a recuarem das posições geopolíticas que eles adquiriram no último período. Eles vão procurar fazer com que os russos e os chineses gradativamente cedam terreno, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista econômico.

     Bolsonaro apesar de todos os absurdos que comete, está sendo tratado com boa vontade pelo imperialismo. Aqui e ali eles dão uma podada no Bolsonaro, mas sem liquidá-lo. Vocês imaginem se Dilma Roussef tivesse cometido 0,5% das atrocidades feitas por Bolsonaro. O fundamental é que, enquanto nos distraímos com as monstruosidades que Bolsonaro diz, ele segue fazendo o que o imperialismo quer. Nesse momento estão privatizando a Eletrobrás. Se não conseguirmos barrar, será mais um crime de lesa pátria. A essência do golpe está, justamente, no que veio após a derrubada de um governo legitimamente eleito. Centenas (possivelmente mais de mil) medidas, objetivando: 1.destruir direitos; 2.tirar renda dos trabalhadores; 3.liquidar o pouco de soberania que o Brasil possuía 4. Saquear o Brasil.

     A essência do golpe não é o gabinete do ódio e sim as privatizações. A essência do golpe não as “rachadinhas” e sim os bilhões roubados do pré-sal e os bilhões que serão afanados com a privatização da Eletrobrás. O programa neoliberal unifica todos os golpistas. Não há diferença entre negacionistas e “civilizados”. Não há divergências entre direita tradicional e fascistas. É um equívoco querer se juntar com a direita chamada de “civilizada” para defender o Brasil. A direita “civilizada” participou do golpe de 2016 e quer vender o Brasil da mesma forma que os fascistas. 

 

                                                                                                       *Economista, 31.05.2021.

 

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

O que justificaria privatizar um porto que gera empregos e renda, e é estratégico para o desenvolvimento regional e nacional?

 

                                                                 

 *José Álvaro de Lima Cardoso

Os portos públicos brasileiros estão na linha de tiro dos golpistas para serem privatizados. Em fevereiro deste ano o governo catarinense anunciou a extinção da Santa Catarina Parcerias, a SC-Par, empresa estadual que administra os portos de Imbituba e São Francisco do Sul. Ainda que as informações sejam desencontradas e nada transparentes, segundo o que foi anunciado, a extinção da SC-Par virá acompanhada da privatização desses dois portos, ambos do governo federal, mas administrados em concessão pelo governo catarinense.

As medidas anunciadas não são fatos isolados. Os portos públicos brasileiros - e toda a complexa estrutura que os coloca em funcionamento - sofrem neste momento uma intensificação dos ataques da direita privatista. O modelo de exploração portuária que prevalece no planeta é o Landlord Port (exploração compartilhada público-privada). Esse modelo possui uma Autoridade Portuária (pública, naturalmente), geralmente municipal ou estadual, que tem o papel de fiscalizar e regular a atividade. É o modelo que vigora nos portos da Europa (Rotterdam, Bélgica, Hamburgo etc.), nos EUA (Los Angeles, New York-New Jersey) e Ásia (China, Coreia e Japão). Os portos citados são todos referenciais mundiais em eficiência, agilidade e sustentabilidade. O Landlord Port é o modelo sob o qual funciona, atualmente, o Porto de Imbituba, unidade para o qual dirijo este modesto artigo.

Os portos públicos do Brasil são organizados também sob o modelo Landlord Port, com gestão pública e operação portuária privada. A maioria dos especialistas defende que este é mesmo o modelo mais eficiente para os portos públicos, no qual a concessão ao setor privado ocorre somente nas atividades de administração do condomínio portuário e na zeladoria. As demais funções, como regulação, fiscalização e planejamento portuário permanecem com o setor público. Toda estrutura complexa, como é um porto, tem problemas, com origens e naturezas diferentes. Por exemplo, é evidente que os portos públicos no Brasil, em geral, sofrem o problema de falta de investimentos em ações estratégicas em suas dependências, como dragagem, sinalização, automação, governança, entre outras. Mas, como poderemos observar nas páginas seguintes, este não é bem o caso de Imbituba, que tem recebido investimentos importantes.

O sistema portuário brasileiro é estratégico, sob os pontos de vista econômico, geopolítico e militar. O país possui uma costa de 8,5 mil quilômetros navegáveis, - número que sobe para 10 mil km se incluído o Rio Amazonas – e é composto por 37 portos públicos, entre marítimos e fluviais. É um gigante, que requer um padrão elevado de gestão, para ser bem aproveitado. Esse sistema gigantesco movimentou, em 2020, 1,151 bilhão de toneladas, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). Desse total, os Portos Organizados, que são os públicos, movimentaram 391 milhões e os Terminais de Uso Privado (TUPs), 760 milhões de toneladas de produtos. O setor portuário brasileiro viabiliza mais de 90% das exportações do país.

Ao invés de decorrer de uma estratégia, a adesão pura e simples à privatização dos portos catarinenses, revela, por parte do governo estadual, uma ausência de estratégia de desenvolvimento do estado (o que aliás, é muito evidente). Uma estratégia que leve em conta a necessidade de recuperação da indústria, que promova uma política agrícola forte e a elevação do valor agregado das exportações catarinenses. Se não existe planejamento público do desenvolvimento, empresas públicas estratégicas, como um porto, perdem também um pouco a razão de existirem.

O porto de Imbituba foi construído pelos ingleses em 1880, para o escoamento da produção de carvão, extraído nas minas na cabeceira do Rio Tubarão e transportado pela Estrada de Ferro Donna Thereza Christina. No início do século XX, a concessão das minas de carvão e da ferrovia foi transferida para a firma carioca Lage & Irmãos, que também assumiu o porto. O Porto foi decisivo historicamente para a viabilização de milhares de empresas, ao enviar a produção catarinense para várias partes do Brasil e do mundo. O Porto está localizado à apenas 6 KM da BR-101, uma das mais importantes rodovias do país, que é totalmente pavimentada em concreto rígido. O Porto localiza-se em uma enseada aberta e, além disso, possui profundidade que o caracterizam como um dos portos brasileiros de melhores condições de navegação. Isto possibilita por exemplo, a atracação de navios de grande porte, com grande capacidade de transporte de cargas, o que oferece ao porto uma razoável vantagem competitiva.

O Porto teve em 2020 um dos melhores anos de sua existência. O ano foi histórico, com recordes de embarques e de movimentação mensal e anual. Além disso o Porto obteve a diversificação das cargas movimentadas e atraiu fortes investimentos, num ano em que a economia brasileira recuou 4,1%. Entre janeiro e dezembro de 2020, foram movimentadas no Porto 5,9 milhões de toneladas, volume 1,8% maior que o realizado em 2019 e cerca de 85 % superior ao primeiro ano de administração pelo Estado de Santa Catarina, em 2012. Dentre as cargas mais movimentadas no ano passado está o coque de petróleo, a soja, o minério de ferro, os contêineres, o milho, o sal e a ureia. Ao todo, foram 234 atracações de navios em 2020.

Apesar das dificuldades adicionais advindas da pandemia, que exigiu investimentos específicos, em 2020 o Porto bateu três recordes históricos de volume de movimentação mensal: em junho, (602.370 toneladas), setembro (602.737 toneladas) e dezembro (662.512 toneladas). O Porto registrou também um aumento no volume médio de consignação de cargas por navio, com destaque para a maior delas, que atingiu 119,7 mil toneladas em uma única embarcação, pelo que se sabe o momento o maior embarque de granel sólido do Sul do Brasil, de acordo com os dados disponíveis no Estatístico da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

O Porto ampliou seu portfólio de cargas, agregando celulose, minério de ferro (hematita e magnetita), fertilizante (superfosfato triplo) e alimentos em big bags.[1] Foi a movimentação expressiva de minério que possibilitou que o Porto atingisse recordes de embarque, assim como atraísse importantes investimentos privados, como foi a construção de um novo armazém dedicado exclusivamente à carga, com capacidade de armazenagem estática cerca de 80 mil toneladas.

É possível que, em decorrência de suas características de Porto Público, o combate à Covid-19 tenha sido de qualidade acima da média dos portos brasileiros. A Autoridade Portuária promoveu várias reuniões junto aos representantes da comunidade portuária, realizou a distribuição de materiais de conscientização para a população do Porto e proporcionou suportes adicionais de higiene. Ao que se sabe, Imbituba foi um dos primeiros Portos do país a ter equipe de saúde exclusiva para monitoramento 24 horas de sintomas de Covid-19 nos trabalhadores, caminhoneiros e nos demais prestadores de serviços do Porto. Segundo a Administração, ao longo do ano passado foram mais de 70 mil abordagens de controle de saúde para evitar o contágio dentro da área portuária.

O Porto de Imbituba (como também ocorrem em outros portos públicos) se constitui em um verdadeiro ecossistema que faz interagir arrendatários, operadores portuários, agências marítimas, órgãos intervenientes, trabalhadores portuários autônomos, colaboradores de carreira e comissionados da autoridade portuária, trabalhadores terceirizados, estagiários. É um grande número de atores, com diferentes interesses, o que torna a cadeia extremamente complexa. No caso de privatização, em um contexto no qual a autoridade portuária seja tarefa de um consórcio de empresas privadas, a instalação de outros terminais se tornaria mais complexa. Entre outros fatores, porque poderá haver a concorrência de mercado entre a empresa que está pleiteando o ingresso e alguma (s) das que compõe o consórcio.

O Porto fechou 2020 com um lucro líquido de R$ 10,3 de lucro, em um ano em que milhares de empresas faliram e o PIB recuou 4,1%. Os números financeiros positivos, apesar da crise econômica nacional e dos efeitos da pandemia, aconteceram pelo esforço de diversificação da movimentação, assim como pelo fato de que as receitas do porto advêm principalmente da movimentação de commodities, em especial de origem agrícola e mineral. A movimentação destas, mesmo em momentos de crise brutal, costumam estabilizar ou crescer, como aconteceu no Porto de Imbituba em 2020. Mas o Porto é estruturalmente lucrativo. O lucro oscila em função do comportamento da economia, mas a Companhia tem gerado lucro significativo nos últimos anos, de R$ 17,4 milhões na medida entre 2016 e 2020.

Um dos “segredos” da obtenção de lucros, por parte do Porto, é a regularidade com que tem apresentado ganhos de produtividade. O Porto saiu de uma movimentação de 2,1 milhões de toneladas/ano em 2012, para 5,9 milhões de toneladas/ano em 2020, o que representa um crescimento de 181% de crescimento da produtividade em um período de 8 anos. Com crescimento, inclusive, no ano passado, de quase 2%. O Porto de Imbituba é de múltipla vocação, ou seja, transporta todo tipo de mercadoria.

Não é fácil defender a privatização de um ativo que apresenta indicadores financeiros excelentes, com lucro líquido regular e que ainda possui reservas de lucros que chegam a R$ 108 milhões. Mantendo ainda um patrimônio líquido de R$ 152 milhões, um crescimento de 10,92% em 2020, ano de crises combinadas. No caso do Porto de Imbituba a defesa da privatização ainda é mais difícil pelo simples fato de que o Porto já foi Private Landlord. Foi justamente a partir de 2013, com a assunção da SCPAR PORTO DE IMBITUBA, que ele adotou o modelo atual, de Landlord. A partir do novo modelo de governança todos os indicadores melhoraram, assunto que abordaremos no próximo artigo.

 

                                                                                         *Economista 24.05.2021



[1] Os big bags são recipientes grandes, cúbicos e flexíveis, feitos de um tecido em polipropileno, fazendo com que o tecido tenha alta resistência ao rompimento. Reza a lenda que, quando cheios de material, os big bags podem suportar até 3.000 quilos.

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Crise e o esgotamento das políticas neoliberais em todo o mundo

 

                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso

     Para entender a conjuntura nacional temos que lembrar que o capitalismo atravessa a maior crise da sua história. A pandemia da Covid-19 não provocou a crise econômica, apenas antecipou e piorou um tsunami que já vinha se armando no horizonte há bastante tempo. Não é só uma crise econômica, é uma crise política brutal também do sistema capitalista. Mesmo usufruindo de todas as vantagens de ser o principal país imperialista da terra, os EUA enfrentam grandes contradições internas, porque o seu modelo de desenvolvimento gera grande desigualdade social.

     Quase 30 milhões de pessoas nos EUA vivem na chamada “insegurança alimentar”, não têm o suficiente para comer (quase 10% da população). Além disso, os EUA têm 500 mil pessoas em situação de rua (morando na rua ou em abrigos públicos). A maioria são negros ou latinos. O fato de que os EUA tenham um número tão grande na condição de pobreza, representa uma verdadeira bomba relógio. Uma revolta geral dos trabalhadores dentro do país imperialista mais rico do mundo teria um efeito político, econômico e social, simplesmente imprevisível.

    No mundo todo há uma série de acontecimentos que podem ser considerados “fatores de crise”. A Colômbia parece ter entrado em transe. O clima já era de muita insatisfação há anos. Mas com o anuncio, há pouco mais de duas semanas, de uma proposta de aumento de impostos, as manifestações explodiram. A violência da polícia escalou, com saldo de quase 50 mortos até aqui e centenas de desaparecidos. Nada disso conteve os protestos. Também não há expectativa de que irão acabar tão cedo. No outro lado do mundo, explodiu uma revolta da população palestina em Jerusalém, dentro de Israel.  Na França é surpreendente o desgaste do governo neoliberal e o crescimento da extrema direita. Não parece haver dúvidas que são fatores de crise, em diferentes regiões do mundo, e que estão extremamente interligados. São elementos muito importantes, que revelam o esgotamento de um tipo de política do sistema capitalista, que é a “política neoliberal”.

     Tem que entender a política do governo de Joe Biden, olhando a situação no seu conjunto. O polo político que ele representa está numa crise extraordinária. Ou seja, é uma crise gravíssima nos partidos mais representativos da política do imperialismo. Nos EUA esta crise não é uma possibilidade, ela é muito real. O país está em grande polarização. Ou o governo faz alguma coisa ou será varrido pela mobilização popular. E também pela extrema direita, porque, apesar de ter perdido as últimas eleições continua muito mobilizada, sob a liderança de Trump.

     O plano de Biden, que pretende injetar US$ 6 trilhões na economia (quase 30% do PIB do país) não é uma ruptura com a política neoliberal. Não se trata de uma guinada keinesiana na política estadunidense, como desejam alguns analistas. Apesar de serem medidas de grande envergadura, reveladoras, inclusive, da profundidade da crise, não há garantias que esta seja interrompida. A crise mundial é muito significativa. O mundo parece estar caminhando para uma situação de verdadeiro colapso político e econômico, como poucas vezes se viu na história.

     Este quadro conduz à uma grande disputa geopolítica e econômica, entre as potências, em todo o mundo. O Plano Biden, por exemplo, em boa parte está relacionado à disputa dos Estados Unidos com a China por mercados mundiais. Essa disputa tende a se acirrar muito nos próximos anos, como a postura agressiva do novo governo estadunidense demonstra. Biden tem subido o tom contra os seus principais rivais e logo no início de seu governo criticou Xi Jinping e Vladimir Putin por não “acreditarem na democracia” e chamou os regimes destes de autocracias. O pacote pressupõe um maior papel para o Estado, especialmente para o governo federal, na crise. Seu tamanho, também, é o reconhecimento da magnitude da crise e da necessidade de uma política agressiva de investimentos públicos, para tentar revertê-la. Os estrategistas do capital internacional manobram há anos para a economia voltar a ter um funcionamento “normal”, mas sem resultados, o que explica também a ousadia das medidas que vêm sendo tomadas desde o ano passado, ainda sob Trump. 

     O problema dos EUA não é apenas uma brutal crise econômica, mas também uma grande crise política. Para começar os EUA estão extremamente polarizados politicamente, já a algum tempo. Há protestos da população negra, dos pobres, há protestos da extrema direita, inclusive fascista. O medo dos setores dominantes, é o de que em algum momento, a polarização represente um enfrentamento nas ruas. As manifestações ocorridas no ano passado, a partir do assassinato pela polícia do negro George Floyd, na intensidade que se deram, não aconteciam desde a década de 1960.

     Com os planos recém lançados, claramente Biden inicia uma temporada de acirramento das relações com China e Rússia. A retomada dos investimentos públicos, é uma forma de competir com o modelo de desenvolvimento econômico chinês. Há uma avaliação, por parte do governo Biden, que a China está ocupando um espaço econômico desproporcional ao seu poderio geopolítico e militar no mundo. A história demonstra que poderio econômico no mundo e poderio bélico são fatores intimamente interligados.  O golpe recente no Brasil, aliás, em boa parte motivado pela descoberta de novas jazidas de petróleo, parece não deixar dúvidas sobre esse fato.

     Os montantes do plano estadunidense ficam muito aquém dos investimentos mobilizados pelos chineses na chamada Nova Rota da Seda. Lançado em 2013, com investimentos estimados entre US$ 4 e US$ 8 trilhões, os chineses realizam projetos de infraestrutura que se estendem por países da Ásia Central, Sudeste Asiático, Oriente Médio, África e Leste da Europa. A relação China X Estados Unidos vive um momento importante, com tendência a ficar cada vez mais tensa, em meio a uma série de disputas sobre comércio, direitos humanos e as origens da Covid-19. Numa ação recente, os Estados Unidos colocaram na lista negra dezenas de empresas chinesas que afirmam ter ligações com os militares.  Biden vem criticando a China por seus "abusos" no comércio e em outras questões. Retornou com força também, e de forma articulada, inclusive na grande mídia norte-americana, a hipótese de que o vírus da Covid-19 se originou na China.

     Os EUA precisam dramaticamente que o plano de recuperação da economia funcione. Os indicadores de emprego por enquanto não apontam firmemente para uma recuperação. Além disso, há temores de vários analistas de retorno da inflação. Está havendo um forte aumento dos preços de commodities: agro, metálicas, combustíveis e de bens industriais. Isso em meio ao imenso estímulo monetário que o governo vem promovendo, o que agrava o risco de aumento da inflação. Um dos riscos existentes, do ponto de vista do capital, no caso de uma elevação da inflação, é crescer o movimento dos trabalhadores para recuperação salarial. Potencial que toda elevação de inflação carrega consigo. Os estrategistas do império certamente temem muito essa possibilidade, especialmente na atual conjuntura de polarização e significativas manifestações de massa nos EUA. 

                                                                                            *Economista 14.05.2021.

 

 

segunda-feira, 10 de maio de 2021

O espantoso crescimento da fome no Brasil

 

                                                                              *José Álvaro de Lima Cardoso

     Uma das grandes tragédias do Brasil neste momento é o aumento impressionante da miséria e da fome. A confluência de crise econômica mundial, pandemia, inflação alta e explosão do desemprego, está levando à uma escalada da fome. O Brasil tinha saído do chamado Mapa da Fome em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família, grande crescimento do emprego formal, e em função das políticas integradas, como a garantia de financiamento para os pequenos agricultores. Com as políticas adotadas pelo golpe de 2016, todas no sentido da desmanche dos direitos, o país está voltando ao famigerado mapa, rapidamente. Um país entra no Mapa da Fome da ONU quando a fome regular atinge 5% ou mais de sua população. Há estimativas dos órgãos especializados de que o número de pessoas com fome crônica no Brasil já esteja próximo dos 10%.

     Já em 2016 todos os indicadores de pobreza e concentração da riqueza pioraram rapidamente, apontando para uma situação, a qual a pandemia somente apressou e agravou. Toda a política do governo Bolsonaro conduz a esse resultado. Desde as políticas mais complexas - como a entrega de refinarias -, até as mais corriqueiras, como atrasar a ajuda aos famintos em meses, por pura crueldade. Apesar da renda emergencial ter acabado em dezembro, o governo começou a pagar o benefício de 2021, de valor miserável, somente em 06 de abril, quase quatro meses depois.

     Apesar do rápido empobrecimento da população e de variantes mais letais da pandemia, o governo, impactado pela forte queda de popularidade, recriou o benefício apenas no dia 18 de março, através de três Medidas Provisórias. O benefício é ainda de valor inferior, variando de R$ 150 (para quem mora sozinho) a R$ 375 (para famílias chefiadas por mulheres). O pagamento da nova renda emergencial será realizado em quatro parcelas e teve início em 6 de abril. 

     No ano passado a massa de rendimentos mensal do trabalho caiu 6%, passando de R$ 217,8 bilhões para R$ 204,9 bilhões, segundo o IBGE. São R$ 13 bilhões a menos no orçamento dos trabalhadores, todos os meses, e um menor volume de renda disponível para o consumo, o que dificulta ainda mais a retomada do crescimento econômico. Neste ano a massa salarial já teve em janeiro a segunda redução mensal consecutiva, de acordo com dados do IBGE.

     Além da queda da massa salarial, a alta do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no grupo alimentos, em 12 meses, foi de 15% - quase o triplo do índice geral.  Com base na cesta mais cara que, em abril, foi a de Florianópolis, o DIEESE estima que o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ 5.330,69, valor que corresponde a 4,85 vezes o piso nacional vigente, de R$ 1.100,00. O cálculo é feito levando em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças.

     O ano de 2020 chegou ao fim com 8,4 milhões de ocupados a menos do que em 2019, segundo a PNAD. Se cada um dos trabalhadores tiver 2 dependentes, já são 24 milhões de pessoas passando necessidade, ou prestes a passar. A queda de consumo destas pessoas, que necessariamente aconteceu, afeta outros setores, produzindo mais desemprego e miséria.

     O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mostra que nos últimos meses do ano passado 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar. Segundo a pesquisa, 55,2% dos domicílios brasileiros (116,8 milhões de pessoas) conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020. Desse número, 9% deles enfrentaram insegurança alimentar grave, ou seja, passaram fome mesmo, nos três meses anteriores ao período de coleta, feita em dezembro de 2020.

     A fome é um resultado quase que aritmético do conjunto de ataques contra a população a partir do golpe de 2016. São centenas de medidas (talvez acima de mil), todas contra os direitos e contra o povo. Além de medidas gerais, como a PEC do teto (EC 95, que congelou gastos primários do governo federal por 20 anos), vieram uma série de medidas menores, que elevou a fome no país. Por exemplo, em várias regiões do país, os governos federal, estaduais e municipais diminuíram ou eliminaram o fornecimento da alimentação escolar. Os governos foram interrompendo também o programa de apoio à aquisição de alimentos da agricultura familiar. Acabaram também os programas voltados ao semiárido do país, em especial em relação ao semiárido nordestino, como a construção de cisternas e outras iniciativas de apoio àquelas populações.

     Com a Emenda 95 veio a base legal e política para esvaziar as políticas sociais e programas de transferência de renda. Equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos, foram fechados. Assim que tomou posse, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) não foi extinto, mas tem orçamento ridículo, de R$ 500 milhões que, assim mesmo, não foi executado completamente no ano passado.  

     A Ação da Cidadania, fundada pelo conhecido Betinho, está completando 28 anos. No ano passado a ONG arrecadou 10 toneladas de alimentos. Porém segundo o seu presidente atual, a ajuda apresentou uma queda de 90% nos últimos meses, reflexo do fato de que a pobreza se espalhou na sociedade. A queda drástica nas contribuições está relacionada ao próprio empobrecimento dos trabalhadores. As pessoas foram perdendo o emprego, mesmo quando de ocupação informal. Empresas foram fechando, as pessoas foram morrendo, e os mortos são majoritariamente da classe trabalhadora.  

     Já na experiência passada no governo FHC tinha ficado evidente que o problema não será resolvido por ONGs, e sim por políticas articuladas e financiadas pelo Estado. Ninguém pode ser contra a doação de alimentos, mesmo que fosse beneficiar a apenas uma pessoa. Mas é importante saber que doação de alimentos não irá resolver o problema. Esse aprendizado tivemos na própria campanha encabeçada pelo Betinho: apesar da grande repercussão da campanha, quando FHC concluiu o seu segundo governo, havia um número recorde de pessoas passando fome no país. O que a campanha do Betinho conseguia fazer de colherinha, a política neoliberal de FHC desfazia de retroescavadeira. É importante considerar que o problema da fome não é falta de alimentos. O Ministério da Agricultura anunciou agora uma a safra de mais de 272 milhões de toneladas de grãos.  São 15,4 milhões de toneladas a mais que na safra 2019/2020.

     A política de segurança alimentar que levou anos para ser parcialmente construída, os golpistas de 2016 destruíram rápida e obsessivamente. O espantoso retorno da fome no Brasil revela dois aspectos essenciais: 1) o fracasso das políticas neoliberais enquanto saída para a gravíssima crise econômica atual. Faz quarenta anos que a burguesia apresenta as mesmas políticas neoliberais para enfrentar os problemas econômicos, políticas que, basicamente, destroem a economia e agravam a pobreza; 2) outra coisa que fica evidente nesse processo é a crueldade das chamadas elites, que fazem questão de condenar uma parcela significativa da população brasileira ao martírio da fome, como se fosse uma maldição fascista.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Para os trabalhadores (as), desemprego, desalento e fome

 

                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

     Podem procurar com uma lupa: do golpe de 2016, para cá, as medidas são todas contra os trabalhadores. Não há nenhuma contra o Capital. Sabe-se que o Estado é da burguesia. Mas, historicamente, ele sempre teve alguma permeabilidade para atender reivindicações dos trabalhadores, ou de outros segmentos da sociedade. Vamos lembrar que todos os direitos obtidos pelos trabalhadores, que agora estão sendo destruídos em escala industrial, foram conquistados durante a vigência de Estados burgueses.

      O dia 1º de maio coincidiu com um período no qual a classe trabalhadora brasileira jamais foi tão atacada em seus direitos em toda a história. O DIEESE divulgou no dia 30/04 um Boletim Especial alusivo ao Dia dos Trabalhadores (as), que aponta que a atual situação de total precarização do mercado de trabalho e o aumento do custo dos alimentos, não são consequências apenas da crise sanitária mundial, mas também estão diretamente relacionados com o projeto econômico e político implementado a partir de 2016, com o golpe. Segundo a publicação, o que se assistiu a partir da contrarreforma trabalhista, foi o aumento do desemprego e da informalidade, queda da renda dos trabalhadores e um movimento de precarização generalizada do trabalho. Precarização perseguida pelo governo, não se trata de um efeito colateral.

     Em relação ao aumento de preços, muito acima dos salários, o descontrole ocorre devido a diversas medidas operadas desde 2016: 1.redução dos estoques reguladores da Conab (Companhia Nacional de Abastecimentos; 2.fim do subsídio do gás e da política de valorização do salário mínimo; e 3.) aumento das exportações de alimentos. Ou seja, o descontrole de preços é fruto de políticas concretas do governo, que levam ao empobrecimento da população rapidamente.

     Segundo o estudo, baseado em dados da PNAD, quando a contrarreforma trabalhista passou a vigorar, no fim de 2017, a taxa de desocupação estava em 11,8%. No final de 2020, 13,9% da força de trabalho não tinham ocupação. O ano de 2020 chegou ao fim com 8,4 milhões de ocupados a menos do que em 2019. Com a falta de perspectivas, a possibilidade de contaminação e a necessidade de isolamento social, 8,9 milhões de pessoas estão fora da força de trabalho, sem renda, sem trabalho e sem esperanças. 

     No ano passado a massa de rendimentos mensal do trabalho caiu 6%, passando de R$ 217,8 bilhões para R$ 204,9 bilhões. São R$ 13 bilhões a menos no bolso dos trabalhadores, todos os meses, e um menor volume de renda disponível para o consumo, o que dificulta muito a retomada do crescimento econômico.

     A política de valorização do salário mínimo, que vigorou entre 2004 e 2018, cumprindo importante e necessário papel na distribuição de renda no país, teve o seu fim no governo Bolsonaro. A partir daí o salário mínimo começou a ser corrigido pela inflação. Porém, a partir de 2020, a correção ficou até abaixo da inflação. Com o aumento dos preços dos alimentos, em algumas das 17 capitais brasileiras, conforme a Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos do DIEESE, mais da metade do salário mínimo tem sido destinado para a compra dos alimentos essenciais suficientes para uma pessoa adulta durante um mês.

     Em 15 de outubro de 2016, a direção da Petrobras mudou a política de preços da empresa, e os valores dos combustíveis passaram a acompanhar os movimentos dos preços no mercado internacional. A partir daí os brasileiros começaram a sentir no bolso as oscilações de preços que ocorrem no exterior. O Brasil é uma potência petrolífera, só que a renda petroleira está a serviço de grandes multinacionais do petróleo e do sistema financeiro internacional. O País é o 10º produtor de petróleo do mundo, o maior produtor da América Latina. Mas o povo paga o preço dos derivados de petróleo, como se o país importasse todo o combustível que consome: quase R$ 6,00 um litro de gasolina e praticamente R$ 100 um botijão de gás.

     Em 2019, conforme registra o estudo do DIEESE, já durante o governo mais subserviente ao imperialismo, que o Brasil já conheceu, uma resolução do Conselho Nacional de Política Energética colocou fim à política do subsídio do gás de cozinha praticada pela Petrobras. Em meio a um rápido processo de empobrecimento dos trabalhadores, o governo retirou a possibilidade de muitas famílias adquirirem um bem tão essencial, como o gás. As famílias mais pobres tiveram que optar entre comprar alimentos ou gás, por isso muitas tiveram que começar a usar lenha ou carvão para cozinhar. Segundo o IBGE, em 2019, 14 milhões de famílias usavam lenha ou carvão, um número cerca de 3 milhões a mais do que em 2016. Esse número significa que uma a cada cinco famílias brasileiras cozinhava com carvão ou lenha em 2019.

     Uma cesta básica em Florianópolis está custando R$ 632,75, tendo aumentado mais de 22% em 12 meses, para uma inflação na casa dos 7%. O salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ 5.315,74, o que corresponde a 4,83 vezes o mínimo vigente, de R$ 1.100,00.

     Por isso a fome está explodindo no país e passou ser um dos dois problemas mais importantes, ao lado das mortes em grande quantidade, causada pela postura do governo. Segundo pesquisa da Oxfam, realizada em dezembro último, em 55,2% dos lares brasileiros os habitantes conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018. Em números absolutos, significa que, no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos. É uma situação simplesmente explosiva.