terça-feira, 29 de setembro de 2020

A fome do Trabalho e a voracidade do Capital

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     Segundo dados do IBGE, divulgados em 17 de setembro, o número de brasileiros que enfrentam insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Em 2018 havia 10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 mil em 2013. Segundo o IBGE, na população de 207,1 milhões de habitantes em 2018, 122,2 milhões eram moradores em domicílios com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões viviam com algum grau de insegurança alimentar.  Reconheçamos que o fato de que 41% da população brasileira sofra em algum nível a insegurança alimentar é uma síntese do nosso abissal atraso econômico, político, e social. É o preço do nosso subdesenvolvimento, e também do golpe de 2016.

     Dos 84,9 milhões de brasileiros na condição de insegurança alimentar, 56 milhões estavam em domicílios com insegurança alimentar leve, 18,6 milhões, insegurança alimentar moderada, e 10,3 milhões de pessoas em domicílios com insegurança alimentar grave. Na insegurança alimentar grave, há uma redução quantitativa severa de alimentos também entre as crianças, ou seja, uma ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos, que afeta todos os moradores. Nas zonas rurais, a insegurança alimentar grave é ainda mais comum do que nas cidades. Quase metade das famílias do campo vivem com algum grau de insegurança alimentar, e a no meio rural atinge 7,1%, contra 4,1% no meio urbano. 

     Em 2014 o Brasil tinha deixado o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Os números divulgados pelo IBGE nessa pesquisa recente revelam o que já se sabia: o Brasil voltou ao Mapa da Fome, ainda que o fato não tenha sido oficializado. O Mapa inclui países onde mais de 5% das pessoas ingerem menos calorias do que o recomendável internacionalmente. A pesquisa evidenciou também a desigualdade regional do Brasil. Menos da metade dos domicílios do Norte (43%) e Nordeste (49,7%) tinham segurança alimentar, isto é, acesso pleno e regular aos alimentos. Os percentuais eram um pouco melhores no Centro-Oeste (64,8%), Sudeste (68,8%) e Sul (79,3%). Na Região Norte do país a insegurança alimentar grave (10,2%) corresponde a cerca de cinco vezes a verificada na Região Sul (2,2%).

     Já se tinha conhecimento que desde 2016 a desigualdade social tinha explodido no Brasil, como revelam todos os indicadores de distribuição de renda (índice de Gini, rendimento domiciliar per capita, distribuição pessoal da renda, etc). O próprio fato de que a taxa de desemprego dobrou após o golpe de 2016, indicava nesse sentido. A expansão do fenômeno da fome era só uma questão de tempo, e resultado quase que matemático das políticas golpistas, dirigidas contra as poucas conquistas populares. Em qualquer país a fome estrutural é motivo de vergonha, porque regra geral, ela acontece por razões políticas e não climáticas ou demográficas. Mas no Brasil esse constrangimento tem que ser levado à décima potência porque o país é o segundo maior produtor de alimentos do mundo.

     Numa sociedade capitalista, para ter acesso aos alimentos é preciso ter renda. Por isso, no combate à fome é fundamental a geração de empregos (de preferência, formais) e o aumento do salário mínimo, dentre um conjunto de outras ações articuladas. Aliás, a retirada do Brasil do Mapa da Fome em 2014, é resultante de uma operação bastante sofisticada, que envolveu: política de emprego e renda, crédito à agricultura familiar (Pronaf), expansão da merenda escolar, política de estoques de alimentos, política de controle da inflação, e assim por diante. Tais políticas, que devem ser desenvolvidas de forma articulada, necessariamente têm que ser conduzidas pelo Estado. O setor privado não tem interesse e nem condições de assumir tal coordenação. O setor privado, no máximo faz uma doação modesta e depois gasta um recurso equivalente ou maior do que o da doação, para propagandear o acontecido. 

     Segundo o Banco Mundial, no Brasil 9,3 milhões de pessoas ganham menos de US$ 1,90 por dia, ou seja, vivem em extrema pobreza. Segundo o Banco, no Brasil cerca de mais de 5,4 milhões de pessoas deverão passar para a extrema pobreza neste ano em razão da crise econômica e da pandemia.  Se a previsão estiver correta, o total chegaria a quase 14,7 milhões até o fim de 2020, ou 7% da população. Vale observar que os dados do IBGE sobre a fome se baseiam em pesquisa de campo realizada em 2018, ou seja, a situação de hoje é muito pior do que era. A situação econômica de lá para cá continuou se deteriorando, e a pandemia, somada à incompetência do governo, não só continua matando muita gente, mas também está agravando enormemente os indicadores de renda e pobreza.  

     A destruição de direitos e da limitada democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, trazidos pelo golpe de 2016, estão colocando o Brasil, e o subcontinente latino-americano, na mesma situação da Europa no fim do século 19. Não é por acaso que Bolsonaro está reforçando o orçamento militar e o das forças policiais auxiliares. Como não investe em educação, saúde, e no combate à fome, tem que gastar em armamentos para conter uma eventual reação da população.

     Segundo ainda o Banco Mundial há hoje em torno de 821 milhões em situação de insegurança alimentar no mundo, mas há 135 milhões que realmente passam fome. É a insegurança alimentar crônica. São pessoas que estão não só em situação de insegurança, mas não tem o que comer. A previsão é a de que nos próximos anos, em torno de 130 milhões se juntarão a esses 135 milhões, totalizando 265 milhões. Ou seja, vai dobrar o número de pessoas com fome crônica no mundo.

     Descrevendo a situação no outro extremo da sociedade, a ONG Oxfam realizou uma análise para algumas das empresas mais lucrativas do mundo com operações nos Estados Unidos, Europa, Austrália, Índia, Nigéria e África do Sul (está no estudo “Poder, Lucros e Pandemia”). A organização observou que 32 empresas devem faturar US$ 109 bilhões “a mais” no exercício fiscal de 2020 do que na média dos quatro anos anteriores. Segundo a Oxfam essas 32 empresas que estão lucrando com a pandemia devem distribuir 88% dos seus lucros excedentes a acionistas que pertencem, predominantemente, a grupos de alta renda.

     Conforme conclui a ONG a atitude de tirar proveito da crise para obter superlucros excedentes é um fenômeno que acontece em todo o mundo. Por isso a riqueza dos 25 bilionários mais ricos do mundo aumentou espantosos US$ 255 bilhões de meados de março ao final de maio de 2020. Só nos Estados Unidos, o patrimônio líquido dos bilionários (muitos dos quais são ricos investidores em grandes empresas) apresentou um aumento de US$ 792 bilhões. Segundo a pesquisa esses grandes grupos econômicos são alavancados por uma série de privilégios corporativos e acordos unilaterais com governos. Enquanto os governos lamentam ter que socorrer trabalhadores que passam fome, muitas vezes concedendo migalhas, abrem o orçamento público para o interesse de grandes grupos econômicos. As empresas listadas na pesquisa da Oxfam têm poder de monopólio em seus segmentos de atuação e capacidade para influenciar qualquer governo do mundo. Fazem lobby, financiam campanhas dos candidatos a presidente e ao parlamento, etc.

    A mesma pesquisa da Oxfam mostra que, apesar do aumento das taxas de desemprego em patamares inéditos, e do fechamento de milhões de pequenas empresas em todo o mundo, os principais mercados de ações parecem que estão se recuperando, de forma rápida. O valor de mercado das 100 empresas cujas ações mais se valorizaram desde o início de 2020 no mundo, aumentou em mais de US$ 3 trilhões. Um sistema econômico destes só tem que entrar em colapso. A maior crise de empobrecimento e desemprego da história e os mercados de ações de recuperando, como se a economia estivesse em céu de brigadeiro. O fenômeno revela que o preço das ações se referencia muito mais em movimentos especulativos do que em indicadores de crescimento da produção, do emprego e da renda. Este ciclo de valorização das ações, completamente descolado da economia produtiva, resolve o problema de curto prazo dos capitalistas, mas agravará as contradições estruturais do sistema capitalista no longo prazo. Quem viver, e sobreviver, verá.  

                                                                                                                                                                                                                            *Economista 28.09.20

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Acumulação de capital e de antagonismos

 

                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso

     A COVID-19 representa uma das crises globais de saúde mais graves dos nossos tempos, como se sabe. Catalisou um dos choques econômicos mais dramáticos da história, tendo, dentre outras coisas, engrossado o número de pobres em centenas de milhões. Como ocorre nessas situações em geral, a atual crise global está afetando as pessoas diferenciadamente, sendo muito mais dura para os mais vulneráveis. Claro que o grosso da conta da crise é transferido para a classe trabalhadora. Mas, mesmo no interior dessa, o impacto é diferenciado, a depender de variáveis como o tipo de país, setor econômico, tipo de inserção no mercado de trabalho, gênero, e assim por diante. Sabe-se, por exemplo, que os trabalhadores em fábricas de processamento de carne estão sendo muito penalizados no Brasil, nos Estados Unidos e Europa.

     As mulheres, minorias étnicas, migrantes, são segmentos da classe trabalhadora extremamente penalizados também pela crise, por receberem menos, estarem na economia informal, e assim por diante. Quem ainda consegue se defender um pouco melhor do flagelo são os trabalhadores sindicalizados, que, apesar de todos os ataques dos últimos anos, têm mais direitos sociais, rendimento regular, e uma articulação coletiva que garante o mínimo de proteção. Neste contexto, um problema adicional é que as organizações sindicais vêm sendo desmontadas a um bom tempo, no mundo todo. No Brasil, em paralelo à construção do Golpe de Estado, de 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% ou 10,6 milhões de profissionais estavam associados a sindicatos. Em 2012, 16,1% da população ocupada era sindicalizada ou 14,4 milhões de profissionais.

     Na condição de primeira e mais importante linha de defesa do trabalhador, os sindicatos se movem, em qualquer época, sob violento fogo cerrado. Mas neste momento, os inimigos dos trabalhadores, que estão no poder, aproveitam a desarticulação sindical para tentar liquidar de vez direitos sociais e sindicais. Os governos golpistas vêm empreendendo, desde Temer, uma devastação sistemática dos direitos e da renda no Brasil, inclusive os referentes à estrutura e financiamento sindical. Esse era o jogo planejado, o golpe foi dado também para isso.

     Se estima que perto de 400 milhões de empregos em tempo integral foram liquidados em todo mundo, nos primeiros seis meses do 2020. Os trabalhadores mais vulneráveis (de baixa renda, informais, mulheres, minorias étnicas) são os que mais perderam seus empregos. Nos Estados Unidos, os empregos de estratos mais inferiores, de baixa renda, sofreram uma redução de 35% desde fevereiro. Esta é uma regra geral de funcionamento do mercado de trabalho: quem está na informalidade, tem escolaridade baixa, tem menor qualificação para o trabalho sofre mais rapidamente os impactos do desemprego. Além disso, quando a economia se recupera, esses trabalhadores são os últimos a se reinserirem no mercado de trabalho.

     Vemos no Brasil, mas é um fenômeno mundial, que uma parte expressiva dos trabalhadores não dispõem de acesso a sistemas de proteção trabalhista/social e a auxílios emergenciais governamentais. A renda do trabalhador informal, como se sabe, ”é da mão pra boca”, ou seja ele não dispõe de reservas. Se é demitido, como não tem seguridade social, como seguro desemprego ou FGTS, fica à mercê da “insegurança alimentar”, nome elegante para a Fome.     

     A perda de empregos decorrente da crise mundial afetou mais mulheres do que homens: estima-se que 54% dos empregos perdidos são de mulheres, mesmo constituindo elas menos de 40% da força de trabalho mundial. No entanto, enquanto trabalhadores, do mercado formal e informal, se esforçam ao máximo para não morrer de fome, muitas das maiores empresas do mundo estão usando seu poder econômico e político não só para se proteger das consequências das crises (econômica e sanitária). Foi esta a constatação de estudo recente, divulgado pela ONG Oxfam, intitulado: “Poder, Lucros e Pandemia”, que revela como, em todo o mundo, as grandes empresas aproveitam a crise para engordar os lucros dos seus acionistas, que se concentram, em 90%, nos países ricos. Segundo a Oxfam, os lucros altíssimos são obtidos, na melhor das hipóteses, porque as empresas atuam em um setor que se beneficiou com a pandemia. Na pior, porque estão lucrando mesmo às custas das pessoas que estão sofrendo com os custos da pandemia.

     Reconheçamos que, guardadas as devidas diferenças, o fenômeno não é novo na história. Durante a Segunda Grande Guerra, entre os trabalhadores escravizados nos territórios ocupados pela Alemanha, centenas de milhares foram usados por grandes corporações alemãs como Thyssen, Krupp, IG Farben, Bosch, Blaupunkt, Daimler-Benz, Demag, Henschel, Junkers, Messerschmitt, Siemens, Volkswagen, BMW. Assim como a empresa holandesa Philips.  É fato relativamente conhecido, inclusive, que a famosa grife Hugo Boss fabricou uniformes para o exército nazista antes e durante a guerra. Neste mesmo período o Deutsche Bank roubou bens de judeus e vendeu ouro de vítimas do Holocausto.

     Segundo o citado estudo da Oxfam, grandes empresas do mundo aproveitam a crise e a COVID-19 para acumular uma riqueza ainda maior para seus acionistas e altos executivos. Tais empresas pertencem a um grupo cada vez menor de capitalistas, na esmagadora maioria bilionários residentes nos países imperialistas centrais. Tais grupos já vêm ganhando muito dinheiro desde a década passada, que foi a mais lucrativa da história. Os lucros das empresas listadas na Global Fortune 500 aumentaram em 156%, saindo de US$ 820 bilhões em 2009 para US$ 2,1 trilhões em 2019.  Tal desempenho dessas empresas na década passada, coincide com um empobrecimento dos trabalhadores em todos o mundo. Os salários ficaram estagnados, aumentou a taxa de desemprego, a precarização do trabalho se generalizou. São dois lados de uma mesma moeda.

     Os lucros extraordinários auferidos pelas empresas na década passada, como mostra a Oxfam, foram, na sua grande maioria, distribuídos a acionistas ricos. Inclusive pelas mãos dos altos executivos das empresas, que, em regra, são também acionistas. Ao mesmo tempo em que ganharam muito dinheiro, as grandes empresas aperfeiçoaram os seus mecanismos de evasão e sonegação fiscal. Embora as estimativas variem, segundo a pesquisa da Oxfam, o total de perdas fiscais globais anuais decorrentes da evasão fiscal de empresas pode chegar a US$ 600 bilhões por ano.

                                                                                                    *Economista 21.09.20

sábado, 19 de setembro de 2020

A farsa da Lava Jato e a espiral da crise

 

                                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

 

     Nesta semana o Intercept Brasil e o sítio da Agência Pública, divulgaram mensagens privadas, trocadas em 2018 entre o então coordenador-geral da operação Lava Jato, Deltan Dallagnol, e Bruno Brandão, diretor-executivo do escritório brasileiro da ONG Transparência Internacional. Mais do que mensagens casuais os vazamentos transparecem um razoável grau de articulação entre a ONG (que tem sede na Alemanha) e a Lava Jato, principal instrumento do imperialismo para encaminhar o golpe no Brasil.  Pela troca de mensagens entre os dois fica evidente o uso do prestígio da ONG para o desenvolvimento das ações políticas golpistas da Lava Jato, e para proteger os membros da operação, que àquela altura, ainda enganavam a maioria da sociedade brasileira, fantasiados de paladinos da moralidade.

     Essas denúncias de agora, as da Vaza Jato em 2019, e as de alguns meses atrás (que revelaram o envolvimento estreito entre a Lava Jato e o FBI), confirmaram o que a gente já sabia: o óbvio envolvimento dos países imperialistas no golpe de Estado no Brasil. Claro, com destaque para os EUA, que considera a América Latina o seu pátio dos fundos. A comprovação da atuação, e interesse, do imperialismo no golpe, são dimensões fundamentais da compreensão do turbilhão de acontecimentos ocorridos no Brasil nos últimos oito ou nove anos.  Sem o conhecimento e a concatenação desses complexos fatos, é muito difícil entender a conjuntura brasileira atual. Assim como ocorreu em 1954, 1964, e em outros golpes contra o povo brasileiro, entre os principais grupos de interesses no golpe de 2016, o principal é o do Império. É fundamental compreender isso porque muito do que está ocorrendo na economia e na política brasileiras, está relacionado com o fato. Ou seja, o processo golpista está vivo e em andamento.  

     Por conta da crise econômica mundial e dos golpes de Estado, que atingiram quase todo o subcontinente, a situação política na América Latina é instável e caracterizada por grande polarização. Com a crise mundial, para o imperialismo não foi mais possível conviver com governos reformistas e nacionalistas, que atrapalhavam as intenções dos EUA na região. A crise econômica mundial tornou imperativa uma política geral de guerra contra os direitos da população. Governos de esquerda, mesmo que moderados, são sempre obstáculos importantes a implementação deste tipo de política, mesmo porque, chegaram ao poder respaldados pelo voto. Obviamente que esse tipo de política antipopular gera uma instabilidade muito grande, na medida em que uma parcela expressiva da população, mais consciente e aguerrida, se nega a seguir para o matadouro sem lutar. 

     No Brasil, os golpistas diziam que era tirar Dilma Roussef que o crescimento econômico e os investimentos internacionais retornariam, como num passe de mágica. Dado o golpe, com a grande farsa do impeachment, o governo Michel Temer foi um verdadeiro show de horrores, com continuidade na política de destruição do Estado e um retumbante fracasso na economia. Intencionando “fechar” o processo golpista, fraudaram as eleições de 2018, apoiados numa operação gestada no Departamento de Estado norte americano. Entrou Bolsonaro e a coisa só piorou. Com o advento da pandemia, logo de saída ficou evidenciado que Bolsonaro é o pior governo da história do país, uma penitência cruel, que o povo brasileiro jamais mereceria.

     Passados pouco mais de quatro anos do golpe de 2016 no Brasil (tomando o impeachment de Dilma Roussef como referência), é evidente a degradação do regime político vigente. Era inevitável que isso acontecesse já que os governos pós Dilma são frutos da liquidação do pouco de democracia que o país tinha até o golpe. O golpe levou a um retrocesso político e econômico muito grande. O país está nas mãos de uma direita terraplanista completamente lunática, e dos militares. Isso traz um risco concreto não só de um golpe militar aberto, numa eventual piora da situação econômica, mas da instalação de um regime fascista. Para o qual, inclusive, o fato do núcleo de poder federal já ser fascista, contribuiu enormemente.

     Apesar do evidente avanço dos golpistas no Brasil (e em toda a América Latina), estes não conseguiram dar uma estabilidade política ao país, a polarização política é muito grande. A instabilidade está relacionada diretamente com o fato de que eles não conseguiram dar uma saída para a crise econômica. E o seu programa de governo, que se resume a destruir direitos e entregar patrimônio, obviamente está tornando a situação ainda pior. 

    Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que comanda verdadeiramente o processo no Brasil), quer mais. Toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o enfraquecimento da Petrobrás, a privatização da água, tudo isso não satisfaz os setores que financiaram e deram o golpe no Brasil.

     A população brasileira, e mundial, está comendo o pão que o diabo amassou. Milhões de trabalhadores perderam seus empregos em decorrência da falência de pequenas e médias empresas, e da falta de alternativas de recolocação no mercado de trabalho. Os trabalhadores informais são ainda mais impactados, visto que a maioria não tem acesso a qualquer tipo de proteção trabalhista ou social e a auxílios governamentais. A renda do trabalhador informal funciona ”da mão pra boca”, ou seja ele não dispõe de reservas. Se perde o emprego, como não tem nenhum tipo de seguridade social, cai em insegurança alimentar, ou seja, começa a passar fome mesmo.

     Do outro lado, as grandes empresas aproveitam a crise econômica e pandêmica para aumentar ainda mais os seus lucros. A ONG Oxfam realizou uma análise para algumas das empresas mais lucrativas do mundo com operações nos Estados Unidos, Europa, Austrália, Índia, Nigéria e África do Sul. A organização observou que 32 empresas devem faturar US$ 109 bilhões a mais no exercício fiscal de 2020 do que na média dos quatro anos anteriores. Segundo o estudo, cinco empresas - Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft – devem ter lucros excedentes de US$ 46 bilhões durante a pandemia. Detalhe: lucros excedentes, acima dos “normais”.

     No Brasil, os efeitos da pandemia também têm sido desiguais. Enquanto a maioria da população perdeu emprego e renda (o país tem hoje cerca de 13 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores informais) e mais de 600 mil micros, pequenas e médias empresas já fecharam as portas, os 42 bilionários brasileiros tiveram sua riqueza aumentada em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) durante a pandemia.

     Um ciclo de aceleração da concentração da riqueza, como esse analisado pelo estudo da Oxfam, resolve o problema imediato do capital porque aumenta lucros, enxuga empregos, aumenta o exército industrial de reserva, etc. Mas este mesmo ciclo, agrava o problema no médio e longo prazos, em função da impossibilidade de o sistema realizar a riqueza produzida, trazida pelo empobrecimento de uma grande parte da população. Ou seja, aparentemente resolve o problema imediato, mas agrava as contradições estruturais do sistema capitalista no médio e longo prazos.  

 

                                                                                                 Economista, 18.09.20

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Resistir a qualquer custo!

 

                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso    

      As negociações coletivas se desenvolvem em meio à uma brutal crise política, econômica e social. As negociações, que são uma das tarefas mais importantes dos sindicatos, nunca foram fáceis, mas nessa conjuntura ficaram ainda mais adversas. Um dos efeitos disso é a não reposição das perdas salariais, que para a maioria das mesas, é a cláusula mais relevante da negociação coletiva no Brasil. O motivo é simples: como as negociações no Brasil são extremamente limitadas, o reajuste salarial acaba sendo a cláusula mais importante.

     Segundo pesquisa do DIEESE relativa ao primeiro semestre de 2020 (“Pandemia muda contexto das negociações coletivas no 1º semestre de 2020”), houve redução do número de cláusulas relativas a reajustes salariais em 28% na comparação com o negociado no mesmo período de 2019 (conforme registrado no Sistema Mediador, da Secretaria de Relações de Trabalho). Como não teve redução no número de registros de instrumentos coletivos no período, tudo indica que a queda no número de reajustes está relacionada à mudança do objeto das negociações coletivas, que passaram a se concentrar em questões relativas à pandemia da Covid-19. Ou seja, em muitas mesas, os patrões nem quiseram discutir a cláusula do reajuste salarial ou equivalente. Uma indicação disso é que, ao menos 55% dos instrumentos analisados nessa pesquisa pelo DIEESE (4.082 instrumentos) registraram cláusulas relacionadas à covid-19.

     Além de quase 30% dos instrumentos de negociação no primeiro semestre, nem ao menos preverem reposição da inflação no período, uma parcela significativa ou praticou reajuste inferior à inflação, ou adiou o reajuste para o período de pós-pandemia. Em muitos casos o acordo traz a cláusula de reajuste, só que definindo o mesmo para começar a valer meses à frente da data-base, impondo assim uma perda de salários reais. Por exemplo, houve negociações em que as partes acertaram a aplicação do INPC-IBGE do período, mas para começar a vigorar bem mais à frente, em alguns casos em janeiro de 2021.

     A não reposição da inflação nos salários, ou o adiamento da reposição para meses após a data-base, vem provocando uma queda dos salários reais, estes já bastante irrisórios. O fato é especialmente grave para os salários mais baixos, já que, apesar da inflação em geral estar em torno de 3%, os alimentos têm aumentado de preço em ritmo bem superior. Como se sabe, quanto mais baixo o salário, maior o peso relativo dos alimentos sobre o orçamento. Uma família que tenha orçamento de R$ 1.500,00 (só com um empregado, por exemplo), gasta a totalidade dos recursos com comida, limpeza e higiene. O preço da cesta básica indica isso. Segundo o DIEESE, a cesta básica de alimentos em São Paulo, que custou R$ 539,95, em agosto, aumentou 12,15% nos últimos 12 meses. A variação de SP foi uma das menores do país. Em 8 das 17 capitais pesquisadas em agosto, apresentaram variações anuais acima de 15%. Em Florianópolis a CB está custando R$ 530,42 e aumentou 14,26% em 12 meses.

     O PIB caiu 11,4% no segundo trimestre de 2020 (comparado ao segundo trimestre de 2019). Foi a maior queda da série, iniciada em 1996. O consumo das famílias brasileiras despencou 12,5% no segundo trimestre, na comparação com o trimestre anterior. Essa queda do consumo, que também é a maior registrada na série histórica do IBGE é resultado matemático das políticas praticadas a partir do golpe de 2016, cujo objetivo é tirar o que puder dos direitos e da renda do trabalhador. Neste contexto de brutal crise econômica e super exploração do trabalhador, os patrões aproveitam a pandemia, e a natural desarticulação do movimento sindical, para não conceder reajuste salarial na mesa de negociações, e ainda retirar os poucos benefícios que os acordos e convenções coletivas, possuem, fruto de décadas de luta.  

     A mesma política de arrocho se observa nas estatais. O caso dos Correios é a prova de que a lei não existe mais no país há um bom tempo. A direção dos Correios simplesmente quebrou um acordo que tinha vigência até 31 de julho de 2021, com a apoio do STF. Com essa decisão, os trabalhadores dos Correios, que estão morrendo de Covid-19 na linha de frente, perderam direitos históricos, obtidos em décadas. Só é possível entender que um acordo que foi feito entre a empresa e os trabalhadores seja quebrado por uma decisão liminar, se entendermos que o Brasil está no Modo Golpe desde 2016. A greve dos Correios, que é histórica, tem também o caráter de ser contra a privatização da empresa, que é a próxima da lista de Paulo Guedes. A greve é contra a retirada de direitos, a privatização, e também a negligência dos Correios com a saúde dos trabalhadores em tempos de pandemia.

     A quebra do acordo por parte da direção da estatal certamente é uma preparação para a entrega da empresa aos tubarões. Entre as 70 cláusulas derrubadas pelo governo e o Supremo estão: 30% do adicional de risco, vale alimentação, licença maternidade de 180 dias, auxílio-creche, indenização por morte, auxílio para filhos com necessidades especiais, pagamento de adicional noturno e horas extras. O grupo econômico que arrematar os Correios, na bacia das almas (provavelmente uma multinacional), assumirá uma empresa onde os trabalhadores têm o mínimo de direitos, e uma remuneração que foi achatada no período recente.

     O aumento das dificuldades na negociação se verifica num contexto em que as adversidades da ação sindical, no seu conjunto, ampliaram muito. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE. O número de sindicalizados passou de 16,1% em 2012, para 11,2% em 2019. Além disso, há uma sistemática desqualificação dos sindicatos realizada através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, o que torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas.

     Os patrões estão aproveitando toda essa conjuntura de crise econômica e sanitária para tentar “depenar” os direitos dos trabalhadores, muitos conquistados a suor e lágrimas, às vezes obtidos em muitas décadas de batalhas. Em função desse quadro, a direção sindical do DIEESE em Santa Catarina, em documento recente, sugeriu algumas medidas aos dirigentes sindicais no sentido de enfrentar esses ataques, as quais listo a seguir:

1.Não assinar acordos ou convenções coletivas que imponham perda salarial para os trabalhadores. As negociações devem contemplar no mínimo a inflação do período;

2. Não assinar acordos ou convenções coletivas que impliquem em perder benefícios de qualquer natureza;

3.Não fechar acordos ou convenções que signifiquem perdas de direitos sociais, organizativos, ou de qualquer outra ordem;

4.Antes de fechar o acordo procurar obter informações de negociações do setor, no município, estado ou país.

     São orientações muito adequadas da direção do DIEESE. Em algumas situações é preferível ficar sem acordo coletivo, do que celebrar acordos ou convenções que impliquem em prejuízos para os trabalhadores. Se a entidade sindical referenda cláusulas que pioram a vida dos trabalhadores, oficialmente ela estará concordando com tais prejuízos. Nesse caso, é preferível simplesmente não assinar o acordo e encaminhar as medidas cabíveis, que passam principalmente pela mobilização dos trabalhadores. Mais do que nunca, é preciso resistir!

                                                                                               *Economista. 14.09.20

 

domingo, 13 de setembro de 2020

Em termos políticos e econômicos o Brasil está regredindo ao século 19

 

                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

     O que estamos assistindo no mundo todo, especialmente na América Latina, é uma decomposição dos regimes políticos, que anteriormente, ainda procuravam manter uma fachada de democracia. Onde antes havia uma democracia meia-boca, com baixo nível de participação popular e grande concentração de renda - caso do Brasil - estamos assistindo agora uma franca deterioração dos regimes. Ao invés de democracias limitadas, permanece apenas uma cobertura democrática, que esconde a verdadeira natureza do regime. A eleição presidencial brasileira de 2018 ilustra bem esse processo. Através de uma série de mecanismos jurídicos e políticos ilegais, que nada tem a ver com democracia, tiraram do páreo o cidadão que iria ganhar as eleições, numa operação diretamente coordenada pelo império americano, como inúmeras denúncias recentes revelam.   

     Outro exemplo, foi o golpe escancarado que o imperialismo promoveu na Bolívia em 2019. A coisa foi tão vergonhosa, tão descarada, que a própria grande imprensa noticiou que o general boliviano que exigiu a renúncia do presidente Evo Morales, Williams Kaliman, recebeu um milhão de dólares do Encarregado de Negócios da Embaixada dos Estados Unidos em La Paz, Bruce Willianson. O general traidor ganhou também um visto de residência permanente nos EUA, onde foi se esconder. O cidadão vendeu sua pátria e o seu povo por um milhão de dólares.

     Em outros países onde também houve golpes, como Honduras e Paraguai, o mesmo foi suficiente para afastar o risco de a esquerda ganhar as eleições seguintes. O golpe em si, com suas estratégias de repressão e desmoralização da esquerda tirou qualquer possibilidade deste segmento competir nas eleições seguintes. No Brasil foi diferente. Deram o golpe em 2016 e, em 2018, tiveram que gerar um processo-farsa para impedir que o candidato favorito das eleições, participasse e ainda com grandes chances de vencer. Bolsonaro, portanto, é cria de um golpe de Estado, mas também de uma fraude eleitoral. Ambos os processos contaram com a criminosa colaboração secreta de órgãos de inteligência norte-americanos, como agora está mais do que evidenciado. Em 2016, em 2018, e até há pouco tempo, quando se mencionava o golpe no Brasil, ainda diziam que era “teoria da conspiração”. Porém hoje, após um “caminhão” de denúncias, e com a desmoralização de Sérgio Moro, e o desmascaramento da Lava Jato, as pessoas já estão sabendo que as conspirações para o golpe foram muito maiores que qualquer de suas teorias.

     O que se vê na América Latina como um todo, no Brasil ainda mais, são regimes políticos com aparência de legalidade, mas que reprimem as forças populares e nacionalistas. No caso do Brasil, já vivemos debaixo de uma ditadura, cujos poucos espaços democráticos vão sendo gradativamente espremidos. O que temos no Brasil já é um arremedo de democracia. O povo está sendo massacrado, estão desmontando o Estado, estão acabando com o que restou de direitos no país. Claramente a sociedade brasileira caminha para a direita, como mostram a matança de lideranças populares, a destruição sistemática de direitos sociais e sindicais, a proliferação de grupos fascistas cada vez mais agressivos, e a própria existência de um núcleo de governo que é fascista.

     Por uma série de razões, apesar das evidências do fenômeno, é comum escutarmos que temos que esquecer o golpe de Estado de 2016, nos conformar com o governo Bolsonaro, que temos que nos preocupar com as próximas eleições, que através delas iremos recolocar o país nos eixos, recuperar as centenas de direitos perdidos, iremos retomar o desenvolvimento, iremos recuperar a democracia. Infelizmente a conjuntura não parece indicar isso.

     Apesar do evidente avanço dos golpistas no Brasil, no entanto, eles não conseguiram viabilizar uma estabilidade política no país, o que seria crucial para a estabilização do golpe de 2016. Permanece uma grande polarização no seio da sociedade. Essa instabilidade está relacionada, por sua vez, ao fato de que eles não conseguiram apresentar uma solução para a crise econômica. E o seu programa de governo, que se resume a destruir direitos e entregar patrimônio público, obviamente tende a piorar a situação no médio prazo. E quando o Brasil não tiver nada para entregar a preço de banana? E quando as reservas internacionais, deixadas pelos governos pré-golpe forem esgotadas? E quando não tiver mais nada para extrair da população trabalhadora, a não ser o próprio couro?

     Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que é quem dá as cartas realmente no processo do Brasil), quer mais e precisa extrair mais do país. A grande mídia, e os setores conservadores em geral, reclamam inclusive, do fato de que as privatizações não estão andando. Ou seja, toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o fatiamento da Petrobrás, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e coordenaram o golpe no Brasil. Encaminharam agora, por exemplo, a desarticulação do setor público, via Projeto de Emenda Constitucional para uma Reforma Administrativa. Tal reforma, dentre outros aspectos, acaba com direitos históricos dos servidores e  tende, no médio prazo, a desorganizar o Estado brasileiro.

     Na outra ponta da corda a população come o pão que o diabo amassou. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que há 12,878 milhões de pessoas desempregadas. Além dos quase 13 milhões de desempregados, o IBGE detecta também 27 milhões que gostariam de trabalhar, mas foram considerados fora da força de trabalho em agosto, por não terem buscado ativamente uma ocupação. Isso, em meio à uma pandemia que já matou quase 130.000 pessoas no país, boa parte delas por incompetência e descaso governamentais. Levantamento divulgado no dia 8 de setembro, elaborado pelo centro de pesquisa The Conference Board, revela que quatro em cada dez presidentes executivos de multinacionais pretendem fechar vagas de trabalho ao longo dos próximos 12 meses. Grandes empresas, como Coca Coca, Boeing e American Airlines estão entre as que já anunciaram cortes nas últimas semanas.

     A grave piora recente dos indicadores conjunturais se soma à uma situação estruturalmente muito aguda. No Brasil, os 50% mais pobres em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. No que se refere à propriedade a situação é ainda pior: os 50% mais pobres detém 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos detém entre 70% a 80% de tudo. Ao contrário do que alguns imaginam, não se trata de uma força de expressão: a destruição de direitos e da pouca democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, estão colocando o Brasil na mesma situação da Europa no fim do século 19. O pior é que no médio prazo todas as medidas do governo irão empobrecer o povo e concentrar a renda ainda mais.

 

                                                                                                 Economista 11.09.20

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Apesar das circunstâncias, não se deve ter medo de nada (ou Os sindicatos do lado certo da história).

 

                        *José Álvaro de Lima Cardoso

      Mesmo com o evidente avanço da extrema direita fascista no Brasil, com destruição de direitos e da democracia, o governo não conseguiu dar uma estabilidade política e econômica ao país. A instabilidade e a polarização estão relacionadas diretamente com o fato de que não conseguiram apontar uma mínima saída para a crise econômica. O seu programa de governo inclusive, ao destruir direitos e entregar patrimônio nacional, claramente tende a piorar a situação de conjunto, no médio prazo. Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que comanda verdadeiramente o processo no Brasil), quer mais e precisa extrair mais.

     A grande mídia, e os setores conservadores em geral, queixam-se, inclusive, do fato de que as privatizações não estão caminhando. Ou seja, toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o desmonte da Petrobrás, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e deram o golpe no Brasil. Eles querem, por exemplo, desarticular o setor público, como vimos pelo projeto de reforma administrativa, que liquida com direitos históricos dos servidores, e tende no médio prazo a desmantelar o Estado.

     Na outra ponta da corda a população come o pão que o diabo amassou. Além dos quase 13 milhões de desempregados, 28 milhões gostariam de trabalhar, mas foram considerados fora da força de trabalho na última semana de julho, por não terem buscando ativamente uma ocupação. Ou seja, numa população ocupada de 81 milhões, no final de julho o país tinha mais de 40 milhões de desempregados e aqueles que gostariam de trabalhar, mas não buscaram ocupação por alguma razão. Isso, em meio à uma pandemia que já matou quase 130.000 pessoas no país, boa parte delas por incompetência e descaso governamentais. Neste quadro, é impossível haver estabilidade política no país.

     Essa dramática piora recente dos indicadores conjunturais se soma à uma situação estruturalmente muito aguda. No Brasil, os 50% mais pobres em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. No que se refere à propriedade, os 50% mais pobres detém 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos detém entre 70% a 80% de tudo. Conforme apontou o economista francês Piketty, em entrevista recente para a imprensa brasileira, são níveis de desigualdade semelhantes aos da Europa no fim do século 19 ou começo do século 20.

     É neste quadro de profunda crise política e econômica que se desenrolam as negociações coletivas entre sindicatos de trabalhadores e patronais. As negociações coletivas, que são uma das tarefas mais importantes dos sindicatos e que nunca foram fáceis, ficaram ainda mais adversas neste cenário de verdadeira tempestade completa. Uma das consequências de toda essa situação é a não reposição das perdas salariais, que para a maioria das mesas de negociação no Brasil é a cláusula mais importante. Como as negociações no Brasil, para o grosso das negociações, são muito limitadas, o reajuste salarial é fundamental. Mas, segundo pesquisa do DIEESE relativa ao primeiro semestre de 2020, houve redução do número de cláusulas relativas a reajustes salariais em 28% na comparação com o negociado no mesmo período de 2019 (conforme registrado no Sistema Mediador)

      A queda no número de registros ocorreu em todas as datas-bases do primeiro semestre, mas especialmente em abril (41%) e maio (39%), período em que o isolamento social foi maior. Como não houve redução no número de registros de instrumentos coletivos no período, tudo indica que a queda no número de reajustes está relacionada à mudança do objeto das negociações coletivas, que passaram a focar questões relativas à pandemia da Covid-19.

      Além de quase 30% dos instrumentos de negociação no primeiro semestre, nem ao menos preverem reposição da inflação no período, uma parcela significa ou praticou reajuste inferior à inflação, ou adiou o reajuste para o período pós pandemia. Em muitos casos há a cláusula de reajuste, só que definindo o mesmo para meses à frente da data-base, impondo uma perda dos salários reais. Por exemplo, houve negociações que aplicaram o INPC do período, mas para começar a vigorar bem mais à frente, em muitos casos em janeiro de 2021.

     A não reposição da inflação nos salários, ou o adiamento da reposição para meses após a data-base, provocou, claro uma significativa queda dos salários reais, que já são bastante irrisórios. O fato é especialmente grave para os salários mais baixos, já que, apesar da inflação em geral estar em torno de 3%, os alimentos têm aumentado de preço em ritmo bem superior. Segundo o DIEESE, a cesta básica de alimentos em São Paulo, que custou R$ 539,95, em agosto, aumentou 12,15% nos últimos 12 meses. Em Recife, os alimentos básicos aumentaram 21,44% em 12 meses. Ou seja, os patrões estão aproveitando a pandemia, e a natural desarticulação do movimento sindical, para na mesa de negociações, não dar reajuste salarial ou retirar os poucos avanços que os acordos e convenções coletivas, têm.

      O aumento das dificuldades na negociação se verificam num contexto em que as dificuldades da ação sindical, de conjunto, aumentaram muito. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% estavam associados a sindicatos. Em 2012 esse percentual era 16,1%. Além disso, há uma sistemática desqualificação dos sindicatos feita através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, o que torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. É complicado o trabalhador comum entender que a existência do salário mínimo é uma conquista fundamental, numa sociedade na qual quase 60% da população vive com renda domiciliar per capita igual ou inferior ao valor do salário mínimo, e 43,1 milhões de pessoas, 20,6% da população, vivem em uma situação de insegurança alimentar.

     É nesse contexto extremamente desfavorável em que estão ocorrendo as negociações coletivas deste ano. Os patrões estão aproveitando toda essa conjuntura de crise econômica e sanitária para tentar “depenar” os direitos dos trabalhadores, muitos conquistados a suor e lágrimas, às vezes obtidos em muitas décadas. Assim, vale lembrar a observação da direção sindical do DIEESE em Santa Catarina, em documento recente, que trata da postura dos sindicatos na negociação coletiva:

     “Apesar da situação ser uma das mais críticas da história, não iremos nos desesperar. Apesar das circunstâncias serem extremamente temerárias também não devemos ter medo de nada. Afinal de contas, estamos defendendo os interesses da esmagadora maioria da população, e nos encontramos do lado certo da história” (11.08.20).

 

                                                                                               *Economista, 07.09.20

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Movimento sindical em tempos de tempestade

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE, divulgados no dia 26 de agosto. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% ou 10,6 milhões de profissionais estavam associados a sindicatos. Em 2012 16,1% da população ocupada era sindicalizada ou 14,4 milhões de profissionais. Na condição de primeira e mais importante linha de defesa do trabalhador, os sindicatos se movem, historicamente, sob violento fogo cerrado. Além dos ataques patronais, há inúmeras outras dificuldades no trabalho de sindicalização e de arregimentação de pessoas para o trabalho coletivo. No mundo todo há uma mobilização dos trabalhadores que pode ser considerada de baixa intensidade, que impacta bastante o trabalho de sindicalização e ação geral do sindicato. Ou seja, o refluxo da mobilização da classe trabalhadora no mundo, obriga os sindicatos a “remar contra a correnteza”. A outra opção é afundar.

    A sistemática desqualificação dos sindicatos feita através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. É complicado o trabalhador comum entender que a existência do salário mínimo é uma conquista fundamental, numa sociedade na qual quase 60% da população vive com renda domiciliar per capita igual ou inferior ao valor do salário mínimo, e 43,1 milhões de pessoas, 20,6% da população, vivem em uma situação de insegurança alimentar. A conquista do salário mínimo, que se estende, direta ou indiretamente, a 70% da população, é fruto de décadas de lutas organizadas dos trabalhadores. Ou seja, da luta sindical.

     A cultura de valorização do individual, tão cultivada na sociedade, leva os trabalhadores em geral, a achar que conseguem resolver seus problemas solitariamente, sem a ajuda do sindicato ou de outras formas de organização coletiva. Uma parcela dos trabalhadores imagina que se destacar, e trabalhar muito mais do que a média, conseguirá ser reconhecida pela empresa e subir profissionalmente, sem precisar da ação coletiva do sindicato. E isso é verdade. O problema é que a fórmula funciona para um trabalhador para cada mil. Analisado o problema de perto, veremos que todos os direitos existentes são frutos das lutas coletivas dos trabalhadores. 

     Outro problema importantíssimo no trabalho sindical é a elevadíssima rotatividade do trabalho, no país. Existem categorias nas quais a taxa de rotatividade é mais do que 100%, ou seja, são admitidos e contratados um número de trabalhadores superior ao número total de trabalhadores no setor. Além disso, aumentam as dificuldades de os dirigentes estarem na sua base sindical e conversar com os trabalhadores. Há poucos dirigentes liberados, especialmente no setor privado. O trabalhador “comum”, em geral, não quer ser sindicalista, dado o nível de adversidades que a função enfrenta.

     É certo também que a vida duríssima do trabalhador (desemprego, baixos salários, péssimas condições de trabalho, etc.), dificulta que ele pare para refletir sobre questões de importância vital. A situação é tão desfavorável que o trabalhador nem quer parar para ouvir os argumentos dos sindicalistas, independentemente do assunto. Dessa forma, textos e materiais em geral produzidos pelo sindicato não são lidos pela maioria dos trabalhadores. Ou por falta de tempo, medo, desinteresse, falta de curiosidade, etc. Também o assédio moral e a super exploração dificultam muito o trabalho do sindicato.

       O trabalhador, pressionado pelo conjunto de dificuldades (e neste momento, em franco processo de perda de renda), muitas vezes espera do sindicato, vantagens de caráter assistencialista, as quais a entidade não consegue oferecer, por crescentes limitações financeiras. É certo que o assistencialismo não deve ser praticado pelo sindicato como um fim em si mesmo. A assistência não é função da entidade sindical, que nem dispõe de recursos para praticá-la. Porém, dada a extrema gravidade da crise econômica atual, de desemprego recorde e franco empobrecimento da classe trabalhadora, se o sindicato dispuser de condições, penso que ele deve amparar o trabalhador em suas dificuldades. Não existe ação sindical em meio à fome. Não me refiro à assistência social tradicional, acrítica, e como um fim em si mesmo. É uma ajuda que o sindicato pode prestar ao trabalhador desempregado de sua base, se isso não ameaçar a sua própria sobrevivência. Mas sempre vinculando a referida ajuda a um processo de formação básica sobre sindicalismo, deixando claro para o trabalhador que sua situação não é uma fatalidade, e sim resultado direto de um processo social.

     Uma grave dificuldade da ação sindical é que, historicamente, há uma sonegação à população em geral, e à juventude, da história dos direitos, e dos sindicatos. Isso ocorre na escola tradicional, nas instituições, nas empresas, nos meios de comunicação, etc. A história em geral é desconhecida, mas principalmente a história dos trabalhadores. Em consequência, uma parcela significativa da população, especialmente a juventude, supõe que os direitos existentes “caíram do céu”, ao invés de serem frutos de décadas de muita luta. Essa visão a-histórica dos direitos, por ironia, está sendo violentamente negada pela história recente, a partir do golpe de 2016, quando os direitos estão sendo destruídos, em escala e velocidades industriais

     Dirigentes sindicais, normalmente, não são preparados (“treinados”) para o trabalho de sindicalização. Além disso, falta muitas vezes firmeza política e ideológica para o desempenho desse trabalho. A tarefa de sindicalização requer conhecimento do sindicato e de algumas noções de economia e de política, que a maioria dos trabalhadores não dispõe. Um fenômeno que dificulta a sindicalização também é a política antissindical das empresas, com a disseminação de calúnias, associação do sindicato com desemprego, etc. Isso dificulta muito porque a empresa exerce grande influência sobre o trabalhador, na medida em que a vida deste e de sua família, dependem do emprego.

                                                                                                 *Economista 31.08.20