quinta-feira, 14 de novembro de 2019

No quadro atual da América Latina ilusões não são boas conselheiras


                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso
     A crise mundial da economia tornou muito difícil a melhoria de vida nos países subdesenvolvidos. Tornou difícil também a melhoria de vida dentro dos países desenvolvidos, claro, mas na periferia capitalista é ainda pior. Por exemplo, um dos primeiros alvos dos golpistas no Brasil foi a seguridade social, que está sendo desmontada, a partir da aprovação da contrarreforma da previdência. Outras medidas estão sendo  tomadas na mesma direção, pois a seguridade social se tornou um “luxo” para os países subdesenvolvidos. Direitos sociais tornaram-se um luxo até mesmo para o centro capitalista, os países imperialistas, que para manter o padrão de vida de parte de suas populações exploram o mundo todo.
     As contingências políticas e econômicas mudaram o humor dos EUA para governos progressistas e nacionalistas em toda a América Latina. Não se trata deste ou daquele presidente, os golpes são política de Estado dos EUA. O problema não está ligado especificamente à Donald Trump, quando ocorreu o golpe no Brasil o presidente dos EUA era Barack Obama. Os golpes estão ligados fundamentalmente à crise internacional do capitalismo e ao esforço dos EUA para recuperarem terreno na América Latina, que tratam como seu “quintal”.
     Os que denunciavam a participação dos EUA no golpe no Brasil, em 2015/2016nos, eram acusados de serem adeptos da “teoria da conspiração”. Mas agora, com o que ocorreu na Bolívia, onde os EUA financiaram e organizaram um sórdido golpe contra um governo eleito em primeiro turno na Bolívia, irão também dizer que a denúncia do golpe é teoria da conspiração? Na realidade é a própria conspiração, que é muito superior à qualquer teorização sobre o assunto. Os EUA não se detêm por nada: segundo o cientista social estadunidense, Noam Chomsky, em comunicado divulgado no dia 09.11, antes da “renúncia” de Evo Morales, o centro de operações da embaixada dos EUA em La Paz revelou dois planos no país sul-americano: “o ‘plano A’, um golpe de estado e o ‘plano B’, o assassinato de Ivo Morales ”).
     Sob grave crise do sistema, e disputa dramática por apropriação de fontes de matérias primas, os golpistas não irão se deter por pouca coisa. No caso boliviano, pesou muito no golpe (ao que parece), o fato de que o país detém 50% de todo o lítio existente no planeta. Um dos elementos presentes nos golpes de Estado, e no caso dos golpes recentes na América Latina isso é decisivo, é a busca por fontes de energia. Os países imperialistas sabem que não existe nação sem energia, especialmente países que exploram o mundo todo para manter sua economia e poder político. O lítio, um metal volátil e fundamental para as novas tecnologias, está concentrado principalmente no Chile, Bolívia e Argentina (juntos, estes três países possuem 75% das reservas mundiais). A maior reserva do mundo de lítio, está localizada no salar de Uyuni, um deserto branco de sal de 12 mil quilômetros quadrados, situado no sul da Bolívia.
     Nós brasileiros temos uma experiência recente (e amarga) de como o Império trata na prática as reservas estratégicas de matérias-primas existentes no mundo. Apenas alguns anos após o anúncio da maior jazida de petróleo descoberta no milênio (pré-sal) e a aprovação de uma lei que retinha a renda petroleira no país (lei de Partilha), ocorreu o golpe de Estado. Sendo que uma das primeiras medidas foi o fim da lei de Partilha, baseado inclusive, num projeto de José Serra que, quando candidato a presidente da República, havia prometido, em diálogo secreto, à representante da Chevron, acabar com a referida lei.
    O nível de repressão no Chile e no Equador, o golpe na Bolívia (que conta com a reação heroica de parte expressiva do povo), e a destruição de direitos no Brasil em escala industrial, são fatos interligados, que revelam que as ilusões com saídas fáceis não são boas conselheiras. Mostram inclusive, que não tem fundamento o excesso de euforia com a vitória das forças populares na Argentina. Especialmente num quadro de grave crise mundial, cujos efeitos procuram descarregar sobre nossas cabeças.   
                                                                                                                                              *Economista.
                                                                                                                                  (14.11.19)

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Questão tributária e a rapinagem organizada do Brasil


                                                                                              *José Álvaro de Lima Cardoso
      A injustiça tributária é dramática no Brasil. Proporcionalmente os pobres pagam muito mais impostos, porque a incidência do tributo é majoritariamente indireta, ou seja, está embutida nos preços das mercadorias e serviços. Enquanto os mais pobres são penalizados, dividendos distribuídos para os acionistas não estão sujeitos à incidência de Imposto de Renda. O sistema tributário brasileiro é perverso, porque gera e mantém a desigualdade social e a pobreza. Mas a regressividade (que em tributação significa quem tem menos, paga proporcionalmente mais) do sistema não é apenas desumana e injusta. O sistema tributário brasileiro, por incidir sobre o consumo, ao invés de cobrar impostos a partir do perfil dos cidadãos (nível de renda, patrimônio, etc.), impede ou inibe a geração de empregos e a expansão do mercado consumidor interno.
     Quem detém o poder econômico e político no país, obviamente conhece muito bem essas características do sistema tributário nacional. As elites econômicas, os representantes do grande capital, os banqueiros e seus seguidores, sabem perfeitamente que o sistema tributário atual no Brasil é arcaico e que sua regressividade atrapalha o desenvolvimento. Deve fazer pelo menos meio século que economistas independentes, desenvolvimentistas e outros, vêm apontando estes problemas da estrutura tributária no Brasil, e a relação disso com o conjunto dos problemas do pais.
     Os economistas ligados aos bancos, aos setores oligárquicos, o alto escalão das multinacionais, conhecem o problema. Por que ele não é solucionado? Porque esse não é um problema, e sim uma solução para extrair mais da maioria da população. Progressividade no sistema tributário é uma conquista da luta social. Uma estrutura tributária regressiva, que extrai mais impostos dos mais pobres, em termos proporcionais, é de interesse dos ricos, que são os detentores dos poderes econômico e político. Esse raciocínio vale, claro, para todos os grandes problemas nacionais. Não se trata de ter ou não conhecimento do problema, ou adotar medidas tecnicamente “erradas”. É uma opção de não resolução de uma questão que, para a maioria da população é um problema, mas para as elites é uma solução.
     Tomemos, para ilustrar, uma situação atualíssima, a aprovação da contrarreforma da previdência. O DIEESE e outras instituições especializadas produziram inúmeros estudos técnicos provando que 98% dos argumentos que o governo utilizou para aprovar a contrarreforma da previdência são mentirosos. Foi realizada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional, presidida pelo senador Paulo Paim, em 2018, que organizou vasta documentação provando que não existe déficit na previdência social. Apesar dos deputados terem amplo acesso aos documentos, nada disso adiantou, o resultado da CPI foi simplesmente escondido da população. Conclusão: não foi uma questão de equívoco das elites políticas do Congresso Nacional. Se aprovou a lei que vai implodir a Previdência Social por opção das elites econômicas, que dominam (neste momento e historicamente), a maioria do Congresso Nacional. Assim, não se trata de determinada posição ser ou não “verdadeira”, ou “correta”, mas de uma questão de correlação de forças.
.  Antes do golpe de 2016, quando contávamos com uma correlação de forças um pouco mais favorável, pouca coisa foi feita para mudar a estrutura tributária, para torna-la minimamente justa. Como o Brasil vinha conjunturalmente bem, não se instituiu nem mesmo a cobrança de impostos sobre dividendos, e outras medidas mais óbvias e urgentes. Os governos conseguiram melhorar um pouco a vida dos de baixo, mas mantendo as estruturas, seja do sistema tributário, seja das demais áreas críticas. Se evitou, portanto, um enfrentamento real, de natureza econômica, com as elites. Quando houve o enfrentamento mais forte de todos, com a aprovação da Lei de Partilha em 2010, que entrava diretamente em colisão com os interesses imperialistas, a conspiração golpista foi acelerada.  
     A crise de 2008 foi um marco fundamental na política e na economia mundiais. Governos nacionalistas se tornaram intoleráveis na América Latina, e os EUA começaram a trabalhar para desalojá-los do poder, através de eleições ou golpes. A crise mundial do capitalismo, ao reduzir lucros no centro capitalistas, tornou muito difícil a melhoria de vida nos países subdesenvolvidos. Dificultou também, é claro, a melhoria de vida dentro dos países desenvolvidos, mas nos países subdesenvolvidos a situação é ainda pior. Por exemplo, a seguridade social no Brasil está sendo desmontada porque se tornou um luxo para a periferia capitalista. Neste contexto, mudou o humor dos EUA para governos progressistas em toda a América Latina, fato diretamente relacionado com a crise internacional do capitalismo.
     EUA que, aliás, acabou de articular um sórdido golpe contra um governo eleito em primeiro turno na Bolívia. Segundo o cientista social estadunidense, Noam Chomsky, em comunicado divulgado no sábado, dia 09.11, o centro de operações da embaixada dos EUA em La Paz (capital boliviana) revelou dois planos no país sul-americano: “o ‘plano A’, um golpe de estado e o ‘plano B’, o assassinato de Ivo Morales ”.
       A proposta do governo no campo fiscal objetiva destruir o Estado brasileiro. No dia 05 de novembro, por exemplo, o governo encaminhou ao congresso projeto de lei que autoriza a privatização da Eletrobrás, e que tira do governo a chamada "ação de ouro (golden share)", que possibilita que a União tenha o poder de veto em decisões estratégicas que podem ser tomadas pela empresa, mesmo que possua uma participação acionária minoritária. A expectativa do governo é que o leilão de privatização da Eletrobrás, maior empresa de geração e transmissão de energia elétrica do país, seja realizado no próximo ano e resulte em uma arrecadação de R$ 16,2 bilhões.
     O detalhe é que, entre janeiro e outubro deste ano, o executivo federal gastou com o pagamento de juros e a amortização da dívida a “bagatela” de R$ 497 bilhões, ou seja, 31 vezes o valor que pretende arrecadar com a venda de um patrimônio estratégico na área de energia para o capital internacional. Do ponto de vista fiscal e tributário, nada é mais importante do que isso. O curioso é que, a partir das manifestações de alguns parlamentares oposicionistas sobre a “reforma” tributária, tem-se a impressão de que o problema é de ordem democrática, de disputa de ideias no parlamento. O fato é que isso não tem nada a ver com a realidade: a missão dos que estão no poder é desmontar o Estado brasileiro.
     O fato de uma das missões do governo é a destruição do Estado brasileiro, fica claro, por exemplo, pelas três PECs enviadas ao Congresso Nacional no dia 05.11. São três Projetos: a) PEC do pacto federativo muda a repartição de recursos entre União, estados e municípios, em troca de um ajuste fiscal; b) PEC Emergencial cria gatilhos para redução de despesas com servidores públicos quando houver dificuldade nas contas públicas; c) a PEC dos Fundos Públicos prevê a revisão de 281 fundos públicos, a fim de liberar R$ 220 bilhões e reduzir a dívida pública federal. O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), inclusive, que é a base do seguro desemprego, será extinto. Claro, a intenção é extinguir também o próprio seguro desemprego.
     Os incautos que, por acaso, tenham dúvidas que a rapinagem do Brasil é sistemática e conta com fortes apoiadores internos (que são fartamente bonificados $$), deveriam estudar com muita atenção a farsa da Lava Jato, que agora, por contingências afortunadas da história, está sendo desmascarada. Não faltou, desde o início da operação, volumoso material de pesquisa. A tarefa requer apenas um pouco de espírito crítico e amor (verdadeiro) pelo Brasil.
                                                                                   *Economista (12.11.19)                          

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A “fúria moderna” na luta pelo petróleo


                                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso
“A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se a dos grupos nacionais... (Eu) quis criar a liberdade nacional na potencialização de nossas riquezas através da Petrobras, e mal começou a funcionar, a onda de agitação se avoluma.... Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente” (trechos da carta testamento de Getúlio Vargas, de 1954).
     No dia 06.11 a Petrobrás irá realizar o leilão do Excedente de Cessão Onerosa, no qual está prevista a venda de 15 bilhões de barris de petróleo. No dia seguinte, 07/11, irá ocorrer a 6ª Rodada de Licitação do pré-Sal, no qual será realizada a venda de 42 bilhões de barris de petróleo. Conforme definiu a FUP (Federação Única dos Petroleiros), é “o maior saqueio da história do país”. A chamada cessão onerosa é um regime especial de exploração e produção de petróleo e gás, no Brasil implantado em 2010 por meio de um acordo com a União. Através da cessão onerosa a União cedeu o direito da Petrobrás produzir até 5 bilhões de barris de óleo equivalente em áreas do pré-sal da bacia de Santos, em troca de ações da empresa.
    O objetivo da criação da cessão onerosa foi o de garantir a primazia da Petrobrás na exploração de recursos estratégicos (petróleo e gás) e permitir que o país se apropriasse da chamada “renda petroleira”, isto é, o elevado excedente econômico possibilitado pela exploração do óleo. A Lei de Partilha, aprovada em 2010, após o anúncio do pré-sal, a maior descoberta de petróleo do milênio, pretendia investir todo o dinheiro dos royalties do petróleo em educação (75%) e saúde (25%). Além de aplicar uma parcela significativa no combate à pobreza e em projetos de desenvolvimento da cultura, do esporte, da ciência e tecnologia, do meio ambiente, e adaptação às mudanças climáticas. A riqueza do pré-sal era conhecida, nesse período como o “passaporte para o desenvolvimento” do Brasil.
     A ideia que estava por detrás da gestão da riqueza do petróleo, na lei de Partilha, era garantir que o ciclo do pré-sal, fruto de décadas de sangue, suor e lágrimas do povo brasileiro, através da Petrobrás, levasse ao desenvolvimento com distribuição de renda. Um sonho antigo dos nacionalistas que se sacrificaram na campanha de “O petróleo é nosso”. Como nos ensinam os especialistas, para que a renda petroleira sirva aos interesses da maioria da sociedade, ou seja, se converta em desenvolvimento econômico e social em benefício da população, as decisões capitais sobre a exploração, a produção e a pesquisa do petróleo, têm que estar centralizadas nas mãos do governo. Claro, garantindo-se mecanismos de controle por parte da sociedade. Do contrário, ao invés do petróleo ser uma alavanca do progresso de uma população, torna-se uma “maldição”, ao levar o país a depender exclusivamente da exportação de petróleo bruto, garantindo o abastecimento (e o desenvolvimento) dos países centrais e industrializados.
     Quem não entender que as políticas adotadas em relação ao petróleo, nos governos vigentes até 2016, foram a principal causa econômica do golpe de Estado, terá imensas dificuldades para entender o que acontece no Brasil de hoje. A aprovação da Lei de Partilha, em 2010, que previa a destinação de recursos bilionários para políticas públicas de educação e saúde, que poderiam colocar o Brasil em outro patamar de desenvolvimento, foi demais para os países imperialistas. Possivelmente, naquele momento resolveram intensificar o ritmo da conspiração para o golpe que adveio em 2016.
      A única forma de garantir a soberania nacional na questão do petróleo seria exercer a opção de contratar diretamente a Petrobras para realizar a produção e extração do petróleo nos campos de cessão onerosa. Quando a lei foi elaborada, um dos objetivos era o de exatamente garantir o controle, por parte dos brasileiros, da riqueza do pré-sal. Objetivo este que foi atropelado pelo  golpe e seus desdobramentos. Há no Brasil uma grande ilusão de que os ataques aos direitos e à soberania, irão cessar e de que as próximas eleições recuperarão a democracia e colocarão o país nos “eixos”. Acredito que a história recente do subcontinente mostra que essa interpretação é um erro. O processo atual mistura dois elementos simplesmente explosivos: gravíssima crise do sistema capitalista e guerra pelo petróleo. Essa combinação torna o caso extremamente “furioso”, conforme a definição de Monteiro Lobato, na década de 1940, quando falava da luta travada pela posse do petróleo no mundo.
  *Economista.
                                                                                                   05.11.19.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

A silenciosa (e desumana) guerra pela água na América Latina


                                                                          *José Álvaro de Lima Cardoso
    As mais expressivas manifestações populares no Chile, desde o fim da ditadura, as quais estamos testemunhando, são um vigoroso repúdio da população ao horrendo quadro em que se transformou a economia chilena para a maioria, com o desenvolvimento das políticas neoliberais. O Chile foi o primeiro laboratório macabro do neoliberalismo na América Latina, e durante um bom tempo, foi apontado como “modelo” na região. Recentemente, inclusive, foi apontado pelo ministro da economia, Paulo Guedes, como a “Suiça da América do Sul”.
    No Chile, praticamente todos os serviços foram privatizados, à exemplo do que aconteceu em outros países. Mas, possivelmente o país é o único do mundo no qual as reservas de água têm donos, e estes não têm nenhuma obrigação social, em contrapartida ao direito de posse. Augusto Pinochet, fruto de um sangrento golpe de Estado no Chile, impôs o Código de Águas, em que o direito ao uso da água se converteu em uma propriedade absoluta para aqueles que o solicitem, isto é, as grandes empresas. Atualmente toda a água do Chile é controlada por grandes empresas hidrelétricas, agrícolas e mineradoras, sendo que, em geral são grupos estrangeiros.
    A privatização da água no Chile, feita em favor de grandes grupos, além de ir contra os interesses da maioria absoluta, representa a impossibilidade de fiscalização e controle, por parte da sociedade, do uso do essencialíssimo produto. As empresas agrícolas, por exemplo, sem nenhum controle, extraem água diretamente das nascentes, o que leva a falta do bem para a população em várias regiões no país. Pequenos produtores agrícolas, enfrentam dificuldades crescentes para produzir, em função da falta de água. Já para as grandes empresas que se apossaram das fontes estratégicas de fornecimento de água, o que existe é a abundância do produto.
     O problema da falta de água, que é diagnosticado em várias partes do mundo, afeta sempre a sociedade de forma diferenciada. Como todo direito básico existente, quem enfrenta dificuldades no acesso a água são sempre os mais pobres, o que ocorre tanto nos países imperialistas centrais, quanto nos subdesenvolvidos. Os EUA e a Europa também enfrentam grandes problemas de falta de água, a maioria dos rios dos EUA e do Velho Continente estão contaminados e, no caso dos EUA, o próprio desenvolvimento recente da indústria extrativa de gás de xisto contribui para a contaminação dos lençóis de água.
   Esse importante debate ganhou um novo capítulo no Brasil, com a aprovação, no dia 30 de outubro, em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do relatório do Projeto de Lei 3261/2019, que trata da Política Federal de Saneamento Básico e cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico. Dentre outros tópicos, a lei prevê a abertura da concessão do serviço de água e esgoto para empresas privadas. É que estão chamando de novo marco legal do Saneamento. O projeto, dentre outros, define o prazo de um ano para empresas estatais de água e esgoto anteciparem a renovação de contratos com municípios. Nesse período as estatais de água e esgoto poderão renovar os chamados “contratos de programa”, acertados sem licitação com os municípios. Segundo o relator do projeto, o objetivo dessa última medida é possibilitar que as empresas tenham uma valorização dos ativos e possam ser privatizadas por um valor mais alto. Os destaques tentados pela oposição, que visavam melhorar um pouco o projeto, foram todos rejeitados. Os defensores do projeto têm perspectivas de sancioná-lo até dezembro próximo.  
     O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do Projeto de Lei em tela, qualificou os parlamentares que se posicionaram contra o projeto, de “corporativistas”. Classificado recentemente, por um outro parlamentar, como o “senador Coca-Cola”, Jereissati, é direta, e financeiramente, interessado na privatização dos serviços de água e saneamento no Brasil. Seu patrimônio é estimado em R$ 400 milhões (informações de 2014), e é um dos sócios do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única acionista brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores fabricantes de Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13 fábricas e 36 centros de distribuição.
    Na prática o novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, autoriza a privatização dos serviços de saneamento no país (não nos enganemos: esse é o objetivo principal). O item mais polêmico do projeto é a vedação aos chamados “contratos de programa”, que são firmados entre estados e municípios para prestação dos serviços de saneamento. Os referidos contratos atualmente não exigem licitação, já que o contratado não é uma empresa privada. É evidente que, se não houverem os contratos de programa, a maioria dos municípios teria que contratar serviços privados, pois não dispõem de estruturas nos municípios para desenvolver atividades de saneamento. É muito evidente que o projeto visa conduzir os municípios a contratarem empresas privadas.
     Esta lei provavelmente quebrará as estatais de saneamento, o que abriria as portas para a privatização da água. Água é a matéria-prima mais cara para a produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida produzido, por exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não existe nenhuma transparência nas informações divulgadas, mas ao que se sabe, as empresas de alimentos e bebidas contam com uma condição privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo, por exemplo, descontos. No entanto, são essas empresas que estão à frente da tentativa de aprovar o novo marco regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o setor privatizado, pagarão ainda menos pelos serviços.
        Tudo indica que os golpes desferidos na América Latina, com a coordenação geral dos EUA, têm também como favor motivador, os mananciais de água na Região. Em 2016, logo após o golpe no Brasil, o governo dos Estados Unidos iniciou negociação com o governo Macri sobre a instalação de bases militares na Argentina, uma em Ushuaia (Terra do Fogo) e a outra localizada na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Um dos objetivos na instalação destas bases, tudo indica, foi o Aquífero Guarani, maior reserva subterrânea de água doce do mundo. O Aquífero, localizado na parte sul da América do Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) coloca a Região como detentora de 47% das reservas superficiais e subterrâneas de água do mundo. Os EUA sabem que não há nação que consiga manter-se dominante sem água potável em abundância, por isso seu interesse em intensificar o domínio político e militar na Região, além do acesso à água existente em abundância no Canadá, garantida por acordos como o do NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre EUA, Canadá e México).
     No começo de 2018, o “insuspeito” Temer encontrou-se com o presidente da Nestlé, Paul Bucke, para uma conversa reversada. Não é preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa foi um pouco além de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao Congresso uma Medida Provisória 844, que forçava os municípios a conceder os serviços, medida que não foi aprovada. No último dia de mandato Temer editou a MP 868, que tratava basicamente do mesmo assunto. Em março deste ano Tasso Jereissati foi nomeado relator do referido. Quando a MP 868 perdeu validade no começo de março, o senador Tasso encaminhou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que basicamente retomou o que constava da medida provisória. A proposta foi aprovada em comissão e plenário em tempo recorde, e rapidamente chegou à Câmara (o que demonstra a existência de forças muito poderosas por detrás do PL).
     A pressão para privatização da água é muito forte, conta com organizações financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do setor de alimentos e bebidas, e conta com cobertura do Banco Mundial. Os defensores da ´privatização têm um discurso sinuoso, como se não quisessem de fato, aquilo com o que sonham noite e dia. Sabe-se que a Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões humanitárias. Uma unidade da empresa é acusada de ter secado as nascentes em Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. A fábrica, segundo as organizações de defesa do meio ambiente secaram nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas – responsáveis por quase toda o abastecimento de água de Belo Horizonte. A Coca-Cola, claro, nega que a unidade esteja provocando falta de água na região e afirma que possui todas as licenças para funcionamento.
     No relativo ao problema da água tem vários casos envolvendo a Coca-Cola no mundo. Há relatos de que no México, regiões inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México, nos quais os bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns momentos, em determinados dias da semana, obrigando muitas vezes a população comprar água extra. O resultado é que, em determinados lugares, os moradores tomam Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de conseguir, além do preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes locais que consomem 2 litros de refrigerante por dia, com consequências inevitáveis sobre a saúde pública.
     Sobre o projeto de privatização das fontes de água no Brasil quase não se ouve posições contrárias. Estas são devidamente abafadas pelo monopólio da mídia. Exceto nos sites especializados e independentes. É que na área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no Congresso Nacional, nos Governos, nas associações de classes, empresariado, universidades. Os encontros realizados para discutir o assunto são patrocinados por gigantes como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses completamente antagônicos aos da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma parcela de seus lucros com propaganda, vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade ambiental e iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar de tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros, enganam muitos incautos.
   Apesar de extremamente importante, não é muito conhecido no Brasil o episódio intitulado “A guerra da água da Bolívia”, ou “Guerra da água de Cochabamba”. Os grandes grupos de mídia que dominam a informação, a maioria ligados aos interesses do imperialismo, por razões óbvias, escondem o acontecimento. Entre janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta popular em Cochabamba, a terceira maior cidade do país, contra a privatização do sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela empresa Aguas del Tunari (por “coincidência”, pertencente ao grupo norte-americano Bechtel) dobraram de preço. É fácil imaginar o que isso pode significar, em termos de qualidade de vida, para uma população extremamente pobre.  
    Em 8 de abril de 2000, Hugo Banzer, general e político de Extrema Direita que tinha assumido o governo da Bolívia através de um golpe de Estado, declarou estado de sítio. A repressão correu solta e a maioria dos líderes do movimento foram presos. Mas a população não recuou e continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em 20 de abril de 2000, com o governo percebendo que o povo não iria ceder, o general Hugo Banzer desistiu da privatização e anulou o contrato vendilhão de concessão de serviço público, firmado com a Bechtel. A intenção do governo era celebrar um contrato que iria vigorar por quarenta anos. Graças à mobilização da população, a lei 2029, que previa a privatização das águas do país, foi revogada. 

                                                                                                *Economista.
                                                                                                                     04.11.2019.