quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A quem interessa a destruição dos serviços públicos?

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso    

     Está em discussão no Congresso a PEC da Reforma Administrativa, que é mais um ataque virulento contra os serviços público e os servidores públicos. Essa reforma terá profundo impacto também para a população em geral porque irá piorar o serviço público em muitos aspectos. Portanto diz respeito a toda a população e não apenas aos servidores. Por conta de mais esse ataque para cima dos trabalhadores o DIEESE está debatendo sobre o assunto em todo o Brasil, nas chamadas Jornadas Nacionais de Debate. Na região Sul o evento será no dia 29/10 as 15hs (quinta-feira).

     Em relação ao governo Bolsonaro não se trata de mostrar que os serviços públicos são fundamentais para qualquer país soberano, que tenha projeto de desenvolvimento. O problema não é esse, não é que os membros do governo não saibam disso. A destruição do serviço público compõe a concepção de país que este governo tem. Eles não querem um país soberano e sim uma colônia dos EUA, portanto não precisa serviço público de qualidade.

     O governo Bolsonaro é inimigo dos trabalhadores como se sabe, pois é fruto de um golpe de Estado e de uma fraude eleitoral.  Mas em função da composição do governo Bolsonaro, dentro da classe trabalhadora o funcionalismo público é o inimigo principal. Esse sentimento pode ser ilustrado por uma metáfora que Paulo Guedes utilizou na fatídica reunião ministerial de 22 de abril, quando se referiu à proposta de suspender por dois anos os reajustes salariais de servidores públicos: “já colocamos a granada no bolso do inimigo”.     

     Neste ano o país vai gastar, pela Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, 409 bilhões de reais com a dívida pública. Quase ninguém fala sobre isso. Significa o gasto de 1,1 bilhão de reais todo santo dia, com banqueiros, somente neste ano. Somos escravos modernos, trabalhando para sustentar bancos. Enquanto isso os jornais ficam alardeando todo dia que o governo gastou tantos bilhões com o Auxílio Emergencial.

     Essa extrema direita que está no poder defende um estado a serviço exclusivamente dos banqueiros. O governo Bolsonaro não queria conceder nada a título de Renda Emergencial. A proposta do governo era ZERO. Depois de alguma briga no Congresso, chegou a R$ 600,00. Boa parte desse dinheiro, inclusive, nem chegou no seu destino, uma parte dos trabalhadores não recebeu.  Ao mesmo tempo, e sem pestanejar, o mesmo governo, através de Paulo Guedes, liberou R$ 1,216 trilhão para os banqueiros, ainda em março, valor que chegou rapidamente nos bancos. O objetivo do recurso, equivalente à 17% do PIB, era o de “manter a liquidez no sistema”, isto é, a disponibilidade de dinheiro para que os bancos pudessem operar normalmente.

     A grande imprensa em geral faz, historicamente, uma campanha diuturna contra o setor público, e para isso se utiliza de todos os instrumentos. Esse ataque é tão antigo e sistemático, que influencia fortemente, inclusive, os sindicatos do setor privado e suas bases. O ataque sofrido pelo serviço público se dá em várias frentes: mentiras e distorções à vontade nos meios de comunicação; privatização de tudo que é público, venda de ativos das empresas públicas a preço de banana, destruição dos direitos do funcionalismo, etc.

     Ultimamente estão divulgando a mentira de que os Correios dão prejuízo para o governo. Mas os balanços financeiros dos últimos vinte anos revelam que, em dezesseis anos seguidos, a empresa acumulou um lucro de 15,8 bilhões de reais, em valores corrigidos. Em 20 anos, a empresa apresentou prejuízo apenas em 2013, 2015 e 2016. Após um resultado neutro em 2017, em 2018 e 2019 apresentou lucro líquido novamente, de R$ 161 milhões e R$ 102 milhões, respectivamente. O estatuto dos Correios prevê que sejam repassados no mínimo 25% do lucro líquido ao Tesouro, ou seja, dinheiro na veia do governo. Não nos enganemos: os Correios só estão na lista para ser privatizado porque dá lucro. Multinacional só vai no filé-mignon, carne de pescoço eles deixam para o Estado administrar e bancar prejuízos financeiros. 

     Vamos entender que Paulo Guedes, e essa turma toda, quer é obter lucro. Esse negócio de soberania, serviços para os pobres, empregos, mercado consumidor interno, isso não faz parte do universo de preocupações deles. Eles querem destruir o SUS por exemplo, e as universidades públicas, para colocar as empresas privadas para prestar serviços. Empresas dos seus amigos, do grande capital. O fato de que apenas 30% dos brasileiros, no máximo, poderão pagar por saúde e educação, pois o povo brasileiro é financeiramente esmagado, para eles é um detalhe que não interessa. O governo e as multinacionais que apoiaram o golpe sabem que um mercado consumidor de 30% do Brasil, é superior à população de todos os demais países da América do Sul. A conta que fazem é essa.

     Vamos pensar um pouco: o capitalismo não consegue oferecer uma educação e saúde decentes para sua população, nem no centro do imperialismo mundial, os EUA. Nesse país, tirando os ricos, se as pessoas contraírem uma doença grave, inclusive sendo de classe média, elas sabem que irão morrer por incapacidade de pagamento, ou comprometer todo o seu patrimônio na cura da doença. Isso que se trata do centro mundial do imperialismo, país que suga recursos do mundo todo para manter o padrão que tem. Agora imaginem o Brasil, ou qualquer país da América Latina (uma Bolívia, Chile, Argentina), sem serviço público de saúde, com o setor sendo 100% monopolizado pelas multinacionais da saúde, que fazem qualquer coisa por lucros. Seria um verdadeiro genocídio.

      A destruição dos serviços públicos em saúde, educação e assistência, tem uma contrapartida que é o reforço do orçamento militar. O governo está reservando R$ 5,8 bilhões a mais no Orçamento do ano que vem para despesas com militares, em relação às despesas com a educação no País. É fácil de entender porque isso acontece. Se os serviços públicos estão sendo destruídos, e a educação e a saúde estão perdendo recursos o governo precisa reforçar o aparato de segurança.

                                                                                             *Economista 27.10.2020

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

A morte testemunhada dos direitos e da democracia

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

 

    No que se refere ao mercado de trabalho o objetivo declarado do governo Bolsonaro, definido ainda antes de assumir, é colocar todo o mercado de trabalho brasileiro em pé de igualdade com o setor informal, ou seja, não ter direitos trabalhistas. Diminuir ao máximo os direitos e substituir, na melhor das hipóteses, por uma política assistencialista, que mantenha os trabalhadores em situação de pobreza crônica. Isto é verbalizado frequentemente pelos membros do governo. Não por acaso, mesmo com a pandemia as medidas do governo continuaram aprofundando a vulnerabilidade, insegurança e precariedade no mercado de trabalho.

     Em função das mais de 40 milhões de pessoas em situação de desemprego aberto ou oculto no Brasil, está em debate no interior do governo a proposta de Renda Brasil ou Renda Cidadã, como medida assistencial substitutiva do Bolsa Família. O governo está dividido em relação à medida, dentre outras razões porque, aparentemente, o segmento mais poderoso da coalização golpista (o grande capital), vetou a proposta. Aprovada ou não dentro do governo, a proposta indica a intenção no referente à questão social: concessão de um benefício mínimo para os mais pobres, combinada com a extinção sistemática de direitos históricos dos trabalhadores (como abono salarial, 13º salário e outros).

      Há cerca de um mês o governo apresentou a proposta de custeio do Renda Brasil/Renda Cidadã, que envolveria recursos do FUNDEB e de precatórios, com evidentes reflexos sobre o financiamento da educação no Brasil. O governo parece ter recuado da ideia, em função de divergências internas. Mas, desde 2016, era relativamente fácil prever que os golpistas iriam atacar a educação pública como um todo, inclusive no nível fundamental. Recentemente membros do governo falaram em congelamento de aposentadorias, desta vez incluindo também pensões. A ideia inicial era congelar todos os níveis de aposentadorias, porém, em função da reação mesmo dentro do governo, a proposta passou a ser de congelamento nos benefícios superiores a um salário mínimo. 

     Os tempos não estão para brincadeiras. Surgiu recentemente (ou ganhou visibilidade) um movimento intitulado Convergência Brasil, formado por grandes empresários, defendendo um Projeto de Lei que prevê a destinação de 30% dos recursos arrecadados com privatizações e com a economia advinda de uma Reforma Administrativa para o programa de renda básica que está sendo proposto pelo governo. Empresários sem nenhum compromisso com o desenvolvimento do país, lutando para privatizar empresas estratégicas para o Brasil, fundamentais sobre todos os pontos de vista, com a desculpa de destinar uma esmola para as multidões de desesperados que brotam no país. São figuras completamente sem escrúpulos, que defendem a privatização da Caixa, Banco do Brasil, Petrobras, Correios, a serviço de uma articulação internacional, que conspira contra o Brasil. É mistura de crueldade, oportunismo e picaretagem do empresariado brasileiro, que apoiou em massa o golpe de 2016, seguindo uma orientação “vinda de cima” e visando melhorar suas condições de assalto ao Estado.

     A estratégia do governo e desses empresários, para a questão social, portanto, é ampliar a assistência aos crescentes excluídos do mercado de trabalho, cortando direitos trabalhistas e políticas sociais duramente conquistadas. Ao mesmo tempo, vai implementando as políticas de guerra contra o povo, cujo um dos eixos centrais é liquidar direitos históricos. Compõem esse cenário a continuidade das medidas relacionadas à Reforma Trabalhista, proposta ainda não apresentada formalmente, mas reiteradamente mencionada por Paulo Guedes em seus pronunciamentos. É o caso da renovação da Carteira de Trabalho Verde e Amarela (que havia sido prevista por meio da MP 905/2019, mas que foi revogada pela MP 955/2020, ante sua não conversão em lei pelo Congresso Nacional), com características ainda mais negativas aos trabalhadores que a proposta original.

     O objetivo de Paulo Guedes, que funciona como um seguro dos banqueiros para iniciativas de Bolsonaro que possam contrariar seus interesses, é a de redução de custos. Guedes fala em remuneração por hora, com pagamento proporcional de direitos trabalhistas, bem como de ampliar a margem de utilização do referido contrato. As empresas começariam com 10% dos empregados contratados pelo regime de pagamento por hora trabalhada no primeiro ano, até ter todo o conjunto dos empregados pagos por hora.

     O governo é obcecado em reduzir custos do trabalho. Mas o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE está em R$ 4.892,75, quase cinco vezes o salário mínimo oficial. Quase 58% dos rendimentos domiciliares per capita observados em 2019 eram iguais ou inferiores ao valor do salário mínimo vigente nesse mesmo ano. Isso significa que quase 60% das pessoas no Brasil possuíam rendimento domiciliar per capita de até R$ 1.045,00 (um salário mínimo). Ou seja, contavam com menos que um salário mínimo para pagar luz, água, transporte, comida, remédio, etc.

     O conjunto das ações do governo Bolsonaro aponta para a destruição de uma sociedade calcada nos direitos trabalhistas. Por um lado, destrói direitos em escala industrial. Por outro vai tapeando a sobrevivência dos mais pobres, numa perspectiva exclusivamente assistencialista, o que dissolve a ideia de Direitos do Trabalho e submete cada vez mais os assalariados à concorrência, e às incertezas do mercado capitalista, sem praticamente nenhum anteparo do Estado.

     Todo esse “mercado de trabalho dos sonhos” dos capitalistas no Brasil, implica em retirar o movimento sindical do caminho. A Reforma Trabalhista e as medidas provisórias que a seguiram, objetivaram inviabilizar a existência de sindicatos autênticos, verdadeiros. Não por acaso, a asfixia das organizações de trabalhadores começou logo após o golpe, com a Contra Reforma Trabalhista de 2017. O enfraquecimento dos sindicatos é um pressuposto do projeto governamental, de erigir um mercado de trabalho completamente precário, mercantilizado e vulnerável, totalmente à mercê dos desígnios do Capital.

     A extinção de direitos nos moldes em que está pretendendo Guedes e Bolsonaro não combina com democracia, mesmo sendo essa muito limitada no Brasil. É impossível colocar o país no século XIX em termos de direitos sociais e trabalhistas e manter um sistema democrático ao mesmo tempo. Democracia tem que se concretizar em direitos nas várias dimensões da vida humana. Liberdade no abstrato, têm pouco valor se as pessoas não têm o que comer. O risco inclusive é de uma ditadura militar aberta. Que pode não vir no curto prazo, mas que é uma espada que paira sobre a cabeça de todos nós.

                                                                                                                   *Economista, 26.10.20

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Escravidão moderna e seus guardiões

 

*José Álvaro de Lima Cardoso

     A forma mais eficiente de dominação de uma classe social sobre as demais, se desenvolve quando as características da dominação pareçam “naturais”, absolutamente “normais”. Quando no Brasil vigorava a escravidão, essa não só era tida como natural pela maioria da população, como também não faltava quem se ocupava em listar argumentos defendendo as “vantagens” do sistema escravocrata. Segundo alguns desses argumentos, como as pessoas são diferentes, seria “natural” que os mais inteligentes, com maior conhecimento, possuídos de maior moralidade, ou mais fortes fisicamente, escravizassem os inferiores nesses quesitos. Durante todo o longo período de escravidão no Brasil não faltaram “especialistas” que listavam grandes vantagens da existência do sistema. Alguns autores iam mais longe e “provavam” que o fim da escravidão no Brasil encaminharia a economia brasileira para o colapso.

     Segundo a Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, neste ano o Brasil irá gastar quase meio trilhão de reais com a dívida pública, cujos credores são cerca de 20.000 famílias de ultra milionários, sendo que boa parte deles nem mora no país. É um dispêndio em torno de R$ 1,1 bilhão de reais todo santo dia, transferido para cerca de 200.000 pessoas. Isso funciona assim há muitas décadas e pouca gente comenta o assunto. É como se tal transferência de recursos, principal causa do déficit público, fosse um mandamento bíblico, ou estivesse escrito em bronze nas estrelas. Quando o tema aparece nos cadernos de economia da grande imprensa, as abordagens são sempre no sentido de defender os pagamentos da dívida. Qualquer ideia que proponha discutir os fundamentos do problema sofre pesada crítica dos “analistas” desses meios, na prática fiéis porta vozes dos banqueiros.

     Na outra ponta, os jornais da mesma imprensa comercial alardeiam, quase todo santo dia, que o governo gastou tantos bilhões com o Auxílio Emergencial, o que, segundo tal abordagem, pode estrangular a gestão da dívida pública, tornar o Estado insolvente, ou provocar inflação. Ciente do que pode esperar do Estado capitalista, no início da pandemia Paulo Guedes não queria conceder nada a título de Renda Emergencial para a população. Mesmo tendo ciência de que se avizinhava uma crise econômica e sanitária de proporções inéditas no país. A proposta do governo era zero de auxílio, as pessoas que ficassem sem renda que “se virassem”. Depois de um enfrentamento no Congresso, chegou-se ao valor de R$ 600,00, sendo que uma parte do dinheiro, inclusive, nunca chegou no bolso de uma parte dos trabalhadores, por razões variadas.

     Ao mesmo tempo, e sem pestanejar, o governo liberou R$ 1,216 trilhão para os banqueiros, ainda em março, valor que chegou rapidamente ao seu destino. O objetivo do recurso, equivalente à 17% do PIB, era o de “manter a liquidez no sistema”, isto é, a disponibilidade de dinheiro para que os bancos pudessem operar normalmente. Essa diferença radical de tratamento (entre trabalhadores pobres e bancos muito ricos) foi encarada por 99,5% dos brasileiros (os que tomaram conhecimento do fato), como “absolutamente natural”.

      A naturalização da exploração é tão grande, que uma parte dos dirigentes partidários, mesmo nas agremiações de esquerda, está defendendo os R$ 600,00 como uma “renda mínima” de dignidade para o trabalhador desempregado ou subempregado. Mas, será que esse valor pode mesmo dar dignidade para um trabalhador açoitado pelas necessidades humanas? Segundo o DIEESE, em 7 das 17 capitais pesquisadas, a cesta básica está custando mais do que de R$ 500,00. Essa não é uma cesta para uma família e sim para uma pessoa adulta suprir suas necessidades alimentares básicas.

     Há muitos anos o movimento sindical brasileiro tem uma referência de salário mínimo “necessário” para o trabalhador e sua família suprirem suas necessidades básicas, que são previstas pela Constituição Federal desde 1946. Com o referido cálculo, que é bastante simples, o DIEESE procura chegar a um valor do salário mínimo necessário para o trabalhador suprir o que está previsto na Constituição Federal em seu Artigo 7º, inciso VI, que estabelece como um direito dos trabalhadores da cidade e do campo. Atualmente o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE é de R$ 4.892,75, o que corresponde a 4,68 vezes o salário mínimo vigente de R$ 1.045,00. Este é o mínimo necessário para uma família de 4 pessoas (dois adultos e duas crianças) suprirem suas necessidades alimentares mensais.

     O Brasil tem 29,4 milhões de trabalhadores de carteira assinada no setor privado, o menor número já registrado na série histórica, iniciada em 2012. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE. O salário médio desses trabalhadores de carteira assinada, que são uma “elite” no Brasil (dado o processo de destruição do mercado de trabalho), é atualmente de R$ 2.535,00. O fato deste salário, ser equivalente a 56% do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, é encarado como algo absolutamente natural.

     No início deste mês, num intervalo de uma rodada de negociação coletiva, em conversa com um executivo de uma grande empresa brasileira (que paga bem pouco aos seus operários), eu mencionava alguns dados preocupantes sobre o fenômeno da fome no Brasil. Como por exemplo, o absurdo de que no segundo maior produtor de alimentos do mundo, 41% da população sofra, em algum nível, de insegurança alimentar. Na conversa afirmei que o fato, por si só, resume o abissal atraso econômico, político, e social do Brasil. Seria o preço a pagar pelo nosso subdesenvolvimento. O meu interlocutor imediatamente discordou da afirmação e lembrou que há estudos que revelam que a fome existe em todos os países do mundo e, em boa parte, faz parte da natureza das sociedades modernas. Portanto, para ele, seria “natural” que, mesmo em sociedades industrializadas e desenvolvidas, permaneça uma parcela razoável da população que passe fome com regularidade.

     A expressão “natural”, nesses casos, vem também com o sentido de “imutável”, sempre foi assim e sempre será. Como era no tempo da escravidão: os defensores do sistema afirmavam que era um sistema natural, portanto a ação humana não poderia alterar. Dessa conversa com o diretor da empresa ficou o aprendizado prático: por piores que sejam as condições de exploração de uma classe social sobre a outra, por mais sórdidas que sejam as formas de dominação, sempre haverá setores de classe média, que se beneficiam em parte do funcionamento do sistema social, que o defenderão com ainda mais veemência do que os próprios detentores do Capital.                                                                                                   

                                                                                                *Economista 21.10.20.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Política Neoliberal e os direitos do Trabalho no Brasil

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

    Desde a grande crise econômica mundial, em meados da década de 1970, os direitos vêm sendo atacados no mundo todo, praticamente sem trégua. Este é um processo mundial, que assume feições específicas em cada país. No Brasil os ataques começaram já na ditadura militar e se arrastaram por quase todos os governos posteriores. Mas o processo se intensificou muito a partir do golpe de 2016, com a destruição em escala industrial dos direitos sociais e trabalhistas, uma das marcas registradas do processo.

     Em 1974 o capitalismo mundial entrou em profunda crise, encerrando o chamado “período de ouro” do capitalismo, de quase 30 anos, que significou crescimento com melhoria de vida nos países do capitalismo central. Foi um período caracterizado também pela Guerra Fria, ou seja, a União Soviética servia, para os trabalhadores do mundo, como exemplo de país que tinha realizado uma revolução popular. Isso obrigou o sistema capitalista mundial, naquele período, a fazer concessões aos trabalhadores, no campo dos direitos e salários. Nesse período as políticas macroeconômicas na maioria dos países, se desenvolveram com base no chamado Keynesianismo, o que significava dentre outros aspectos, o funcionamento da economia capitalista com forte intervenção do Estado.

     Essa crise econômica, e a incapacidade de reação imediata do bloco capitalista mundial no enfrentamento da crise, levou a uma série de revoluções em todo o mundo, como Polônia (1980), Nicarágua (1979), Irã (1979), e outras. Para conter esse processo de reação dos trabalhadores no mundo, e para tentar retomar a economia, a burguesia lançou a Política Neoliberal, mais ou menos em 1985. O Neoliberalismo defende políticas de liberalização econômica profundas, receita que os países imperialistas prescrevem para os subdesenvolvidos, mas que eles mesmos não praticam: privatizaçõesausteridade fiscaldesregulamentaçãolivre comércio, e o corte de despesas governamentais. A política neoliberal, ao destruir estatais e mercados internos, significou também a destruição de boa parte das forças produtivas da sociedade, especialmente na periferia capitalista.

       A política neoliberal veio também com o objetivo de enfraquecer a organização sindical e política dos trabalhadores e desmontar o chamado Estado do Bem-Estar Social, existente principalmente na Europa. Essa política que é extremamente destrutiva, provocou um retrocesso enorme na sociedade, e também nas conquistas da classe operária no mundo todo. O desemprego aumentou, todas os direitos conquistados depois da Segunda Grande Guerra, num contexto da Guerra Fria, foram sendo esfarelados, e espalhou-se o chamado emprego precário no mundo todo.

     Em simultâneo à crise capitalista a China inicia um processo de abertura para os países ocidentais (em 1976, ano também da morte do grande líder da revolução chinesa, Mao Tsé Tung). Nos anos seguintes, a União Soviética e o Leste Europeu entram em crise, e iniciam um processo de abertura para os países do Ocidente. Se estima que, a partir dessas crises na China e no Leste Europeu, mais de 1 bilhão de trabalhadores ingressaram no mercado de trabalho mundial. É possível que este número esteja superestimado, visto que a força de trabalho mundial em 1985 estava em torno dos 3 bilhões. De qualquer maneira um número enorme de pessoas ingressou no mercado de trabalho global, o que exerceu uma pressão incalculável sobre a luta e a organização dos trabalhadores em todo o mundo.

      Com a crise, o desemprego no Leste Europeu, por exemplo, foi dramático, com centenas de empresas quebrando em todos os países. Isso colocou no mercado uma quantidade imensa de trabalhadores, em busca de emprego. Esse grande excedente de trabalhadores, provocou uma defensiva muito grande da classe trabalhadora mundial. O processo significou um atraso muito grande no movimento dos trabalhadores. Com a formação desse imenso exército de reserva mundial, o movimento sindical não teve como sustentar o padrão de direitos que os trabalhadores tinham obtido ao longo dos anos no centro do capitalismo (principalmente na Europa), e um pouco em países da periferia do capitalismo, como no Brasil.

      Os brasileiros com um pouco mais de idade sabemos bem o que representou a política neoliberal, com os oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, que estão entre os piores da história do Brasil, no qual direitos e a economia nacional foram destruídos em escala industrial. A política de FHC foi explosiva para o país: entrega de estatais a preço de banana (processo conhecido como Privataria), destruição intensiva de direitos sociais e aumento da vulnerabilidade externa. Quando Fernando Henrique Cardoso afirmou que iria sepultar a era Vargas, em 1995, ele se referia não apenas à dramática redução da presença do Estado na economia, mas também estava dando um recado que os direitos trabalhistas iriam ser dizimados. Como realmente o fez, em boa parte.

     Neste momento a crise da política neoliberal é profunda. Os golpes aplicados em toda a América Latina, a partir de Honduras em 2009, são uma tentativa do imperialismo de reverter esse processo de crise em todo o mundo. Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que é quem dá as cartas realmente no processo do Brasil), quer mais e precisa extrair mais do país. Estão destruindo direitos, enfraquecendo os sindicatos, entregando patrimônio, fatiando a Petrobrás, estão tentando desmontar o setor público e acabando com direitos históricos dos servidores. Ao contrário do que alguns imaginam, não se trata de uma força de expressão: a destruição de direitos e da pouca democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, estão colocando o Brasil na mesma situação da Europa no fim do século 19. O pior é que no médio prazo todas as medidas do governo irão empobrecer o povo e concentrar a renda ainda mais.

     Desmontar tudo que é público, já sabíamos no final de 2018, era a missão principal do governo Bolsonaro/Guedes. Bolsonaro vem cumprindo, em quase dois anos de governo, promessa feita nos Estados Unidos, em jantar com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. "O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa", afirmou em 18.03.2019, na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington.

     A lista de ataques aos direitos sociais e trabalhistas, ações contra a cultura, contra o meio ambiente, contra a educação, é quase interminável. No governo Bolsonaro, foram centenas, possivelmente milhares, de ações abolindo ou reduzindo direitos, ferindo a soberania nacional, enfraquecendo instrumentos de intervenção estatal, e assim por diante. A quantidade de direitos sociais e sindicais, liquidados pelo governo de extrema direita nos dois anos são, por si só, a demonstração de que a correlação de forças continua muito desfavorável aos trabalhadores.

                                                                                                               *Economista.19.10.2020.

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Fuga de capitais e outros explosivos

                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso

     Desde 2019 o Brasil enfrenta a chamada "fuga de capitais". Nos primeiros oito meses deste ano US$ 15,2 bilhões deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central começou a realizar essas estatísticas, em 1982. Ao mesmo tempo investidores estrangeiros retiraram R$ 88,2 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 29 de setembro, o dobro do registrado em todo o ano passado. No Brasil não há controle de entrada e saída de capitais externos (quarentena ou um tipo de pedágio para o capital que entra no país). O que é típico de país atrasado. Aqui na América Latina o Chile tem, na Ásia, a Malásia dispõe. Seria fundamental realizar esse tipo de controle, para preservar as economias da voracidade dos capitais especulativos, já que, no fundamental, esse tipo de capital não passa de um mecanismo de dominação e controle dos capitais sobre economias subdesenvolvidas.  

     Se o balanço de pagamentos, que contabiliza todas as transações do país com o exterior, for cronicamente deficitário é possível que o país comece a queimar suas reservas internacionais, que são fundamentais em momentos de grande crise como o atual. São as reservas acumuladas nos governos Lula e Dilma que impediram, até aqui, que as contas externas do país entrassem em colapso. São as reservas, atualmente de US$ 343 bilhões (R$ 1,9 trilhão), em agosto, que dão uma certa tranquilidade para o acesso a moeda estrangeira, que é fundamental nestas horas, já que o Real não é uma moeda de aceitação internacional.

     Os acumulados em 12 meses das contas de capital passaram a registrar resultado negativo, a partir do terceiro trimestre de 2019. As reservas, por sua vez, que fecharam 2018 no nível de US$ 375 bilhões, em fins de agosto somavam US$ 343,5, como vimos. Ou seja, as reservas vêm sendo lentamente desgastadas em face da perda líquida de capitais por parte do Brasil. É claro que as reservas só justificam sua existência se forem usadas numa hora dessas, de aperto financeiro internacional. A questão é que o Brasil está tendo problemas no Balanço de Pagamentos por uma política econômica entreguista e antinacional.

     O Brasil quebrou 3 vezes no período FHC (nas contas externas), na década de 1990. Ou seja, ficou sem solvência para pagar seus compromissos internacionais, também (dentre outras razões) por absoluta falta de reservas em dólar. Um país sem reservas fica muito vulnerável. Como aconteceu com a Argentina recentemente. As reservas são acumuladas em dólar (ou euro) porque essas são as moedas que representam economias Imperiais da Terra. O fato de que o dólar é a principal moeda do mundo é o reflexo de que os EUA são a maior economia e a maior potência militar do mundo. Os EUA não precisam ter reservas internacionais, pois o seu próprio dinheiro é, ao mesmo tempo, a principal moeda de composição de reservas internacionais.

    Como poderia se esperar, o Império Americano tem muita consciência dessa vantagem, sabe que grande parte de sua hegemonia política e econômica se explica por essa grande vantagem monetária. Tanto é verdade que um dos elementos fundamentais na decisão para o golpe de 2016, foi a determinação dos países que compõem o BRICS, de substituir o dólar como moeda de comércio entre os países do bloco, pelas próprias moedas (Real, Renmimbi, Rublo, etc.). Quando o Bloco tomou essa decisão, mais a de fundar um banco para substituir o FMI no financiamento de países em dificuldades (atual banco dos BRICS), o Império não teve dúvidas em dar o golpe. O que destituiu Dilma Roussef e colocou Lula na cadeia foram coisas deste tipo, que ameaçaram diretamente os interesses financeiros estadunidenses mundo afora.

     A fuga de capitais, neste momento, é fácil de entender. Os capitais internacionais vêm para o Brasil para ganhar dinheiro. O Brasil sempre foi uma “galinha dos ovos de ouro” para os países ricos, de todas as maneiras possíveis: mão de obra barata, matéria prima abundante e barata, taxas de juros nas alturas, benefícios fiscais, empresas públicas vendidas na bacia das almas, etc. Mas as condições mudaram. Há uma crise global inusitada, o Brasil está se desmanchando, com a maior crise da história, o mercado consumidor interno está sendo liquidado, o meio ambiente está sendo destruído. Aumentaram, portanto, os riscos de se investir no país, e os capitais retornam para mercados mais seguros, normalmente os EUA. Um outro aspecto deve ser considerado. O Brasil durante muito tempo foi o maior paraíso da terra para os especuladores, com as maiores taxas de juros do planeta. Isso mudou. As taxas continuam altas, porém o Brasil está na 16ª posição em termos reais, com -0,81% em setembro. Estes são os menores juros básicos da história.

     O problema da fuga de capitais surgiu num momento em que a crise se alastra em várias frentes no Brasil: mais grave recessão da história, aumento das desigualdades sociais, taxa de desocupação de 14,3 %, aumento da pobreza e da fome. Em função do golpe de Estado, a economia brasileira é um organismo doente. Por exemplo, após muito anos, o Brasil caminha para sair do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo. Decorrência direta de um processo mais profundo de desindustrialização. Se verifica também uma redução significativa do mercado consumidor interno, com o achatamento da renda e a manutenção das altíssimas taxas de desemprego. O país tem mais de 14 milhões de pessoas desocupadas e a população subutilizada na força de trabalho (trabalhadores desocupados e subocupados por insuficiência de horas trabalhadas) atingiu o maior número da série histórica da PNAD: 27 milhões.

     Neste quadro de explosão do desemprego e da informalidade, o resultado é uma grande instabilidade na economia e na sociedade, o que certamente contribui para a fuga de capitais, que se deslocam para países onde a estabilidade social e política sejam superiores, normalmente o centro capitalista mundial. O capital não tem alma, ele vai atrás de valorização até no inferno. Esses grandes especuladores (que estão saindo do Brasil) têm grande sede de lucros e pernas longas. Têm também informações privilegiadas, as quais nós, meros vendedores da força de trabalho, não temos acesso.

      A atual fuga de capitais se tornou ainda mais problemática com a crise na Argentina. O país vizinho declarou moratória em 05 de abril deste ano. A Argentina é a terceira maior economia da América Latina, 33% de sua população em situação de pobreza (alguns falam em 50%) e tem uma inflação anual superior a 50%. A dívida pública da Argentina está em 90% do PIB. A dívida pública externa equivale praticamente à produção de bens e serviços de um ano do país, US$ 323 bilhões. US$ 44 bilhões vencem em 2022 e 2023. É uma hipoteca impossível de pagar. 

     Há uma pregação, aberta ou velada, dos grandes meios de comunicação e seus “analistas” de economia, que se o país for muito entreguista, tirar direitos ao máximo do povo, atacar as organizações dos trabalhadores, destruir previdência, entregar as estatais, os investimentos estrangeiros virão para o país. O momento atual, mais uma vez, desmonta essa teoria. A maior fuga de capitais da história do Brasil está ocorrendo durante o governo mais lacaio e entreguista da história. Esta fuga de capitais, em pleno governo Bolsonaro, é a comprovação de que subserviência, entreguismo, desprezo ao povo, desprezo ao país, não atrai capital algum. Destruição de instrumentos públicos de intervenção estratégica do Estado e a desmontagem das estruturas de atendimento à população, ao afetar a estabilidade social do país, impactam também o humor dos especuladores.

     As duas formas de capitais que vêm para o pais - recursos aplicados no mercado financeiro (ações, renda fixa e fundos); e IDP (investimento direto no país, comprando ações ou como empréstimos intercompanhias), vêm em busca de lucros. Se direcionado ao mercado financeiro é especulativo por definição; se vem como investimento direto é também para obter taxa de valorização acima do que conseguem nos seus países de origem. Desde sempre no Brasil, e deve ser assim em todos os países subdesenvolvidos, há uma pregação bíblica de que o país deve fazer de tudo para atrair capitais internacionais. Mas não é assim: os recursos que vêm para o mercado financeiro são para faturar lucro financeiro, não tirar o país do atraso. O investimento direto no país, por sua vez, significa que as multinacionais irão aumentar a sua remessa de lucros no futuro.

     O movimento de fuga de capitais tende a provocar um “efeito manada”, ou seja, a fuga de capitais leva a desvalorizações das moedas dos países atrasados, o que, por sua vez, leva a mais fuga de capitais. Esses países estão colocando suas economias cada vez mais a serviço do imperialismo, o que deixa as economias bastante fragilizadas e a mercê de capitais especulativos.

     O pano de fundo da fuga de capitais é o fato de que a economia brasileira caminha para uma crise ainda maior do que a atual. A dívida pública está se aproximando de 100% do PIB. A dívida de curto prazo aumentou extraordinariamente, com risco de ultrapassar R$ 1 trilhão o que pode colocar o Estado em uma situação falimentar. Nessa conjuntura, será muito difícil manter o teto de gastos, aprovado no governo Temer em 2016 (Emenda Constitucional 95). Toda essa situação financeira explosiva é agravada pela escalada do desemprego e da pobreza, que também contêm grande quantidade de nitroglicerina pura.

                                                                                            *Economista 16.10.2020.

 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Fuga de capitais no contexto de uma crise sem fim

 

                                                                                 *José Álvaro de Lima Cardoso

     Desde 2019 o Brasil enfrenta a chamada "fuga de capitais". Esta ocorre basicamente de duas formas: 1. saída de recursos aplicados no mercado financeiro (ações, renda fixa e fundos); 2.redução do IDP (investimento direto no país): tanto na modalidade "participação no capital" (inversão em ações de empresas no Brasil) quanto na forma de "empréstimos inter companhias”. Nos primeiros oito meses de 2020, US$ 15,2 bilhões deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central começou a realizar essas as estatísticas, em 1982. Ao mesmo tempo investidores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 17 de setembro. O montante retirado da Bolsa é quase o dobro do registrado em todo o ano passado.

     A fuga de dólares no Brasil fez com que a Bolsa do país fosse a que mais caiu em porcentagem no mundo neste ano, até setembro, com queda de 45,2%. Além da queda na Bolsa, o mais importante indicador de desempenho na Bolsa no Brasil, o Ibovespa, apresentou a maior fuga de dólares dentre todos os índices mundiais (-18,7% até agosto). É esse movimento de saída de capitais que ajuda a explicar porque a moeda brasileira é a que registra uma das maiores desvalorizações do mundo nos últimos tempos: até agosto o dólar se valorizou 39,60% em relação ao real.

    As saídas de capitais do país já estavam fortes no ano passado, mas aceleraram o passo agora em 2020. Nas grandes crises globais como a atual, há todo um esforço para transferir o pior da crise para os países subdesenvolvidos. Na fuga de capital os grandes capitais especulativos correm para o centro imperialista, buscando segurança. O Brasil, como se sabe, não é exatamente o país mais seguro do mundo, apesar da posição absolutamente pró-capital do governo. Como o país atravessa uma “tempestade perfeita”, com crise inusitada, os especuladores temem perder dinheiro, por qualquer razão, como uma moratória técnica ou insolvência do Estado. Um país vizinho, com economia bastante próxima a do Brasil, a Argentina, declarou moratória em abril último, o que aumenta o temor dos especuladores.   

     Nos últimos anos, o ingresso de IDP (Investimento Direto no País) vinha acima de US$ 5 bilhões mensais, alcançando valores anuais na casa de US$ 80 bilhões, equivalentes a mais de 4% do PIB e capazes de cobrir os déficits correntes com o exterior. Mas os capitais externos ingressam no país em busca de lucros. Com a crise brasileira, que está no sexto ano seguido de recessão ou estagnação, é esperado que os Investimentos Diretos no País diminuam. Projeções para o ingresso de investimentos externos diretos em 2020 apontam entradas de no máximo US$ 50 bilhões - quase 40% menos do que em 2019. No ano passado, o saldo em transações correntes (que é a conta que controla a relação contábil do Brasil com o exterior) foi negativo em US$ 50,7 bilhões, enquanto para 2020 as projeções estão em torno de US$ 20 bilhões negativos.

     A fuga de capitais deve se acelerar nos próximos meses. Inclusive porque o Brasil corre o risco de ingressar num outro patamar de crise, mais grave, no ano que vem. Há grande margem para esse movimento de saída de capitais, uma vez que, mesmo com as perdas registradas em 2019 e 2020, o estoque de recursos externos aplicados no mercado financeiro brasileiro ainda totaliza US$ 400 bilhões. Uma pergunta que deve ser feita: além de dar polpudos lucros para os capitalistas, para que serve estes mais de US$ dois trilhões de reais de recursos externos? Os bancos não emprestam para o setor produtivo, estão completamente descolados da economia real brasileira. Qual a utilidade destes recursos para o país, além de forçar a economia brasileira a alimentar parasitas?

     No Brasil não há controle de entrada e saída de capitais externos (quarentena ou um tipo de pedágio para o capital que entra no país). O que é típico de país atrasado. Aqui na América Latina o Chile tem, na Ásia, a Malásia dispõe. Seria fundamental realizar controle de capitais, para preservar as economias da voracidade dos capitais especulativos, o chamado capital de motel. Esse tipo de capital, que não passa de um mecanismo de dominação e controle dos capitais sobre economias submissas, obviamente teria que ser muito bem controlado.

     Tem sido as reservas acumuladas nos governos Lula e Dilma, que impediram (até aqui) que as contas externas do país entrassem em colapso. São as reservas internacionais - de US$ 343 bilhões em agosto (R$ 1,9 trilhão) - que dão uma certa tranquilidade para o acesso a moeda estrangeira, o que é fundamental nestas horas, já que o Real não é uma moeda de aceitação internacional. Os acumulados em 12 meses das contas de capital passaram a registrar resultado negativo, a partir do terceiro trimestre de 2019. As reservas, por sua vez, que fecharam 2018 no nível de US$ 375 bilhões, em fins de agosto somavam US$ 343,5. Ou seja, as reservas vêm sendo lentamente desgastadas em face da perda líquida de capitais por parte do Brasil.

     É evidente que todo e qualquer tipo de reserva é justamente para se usar nas horas de aperto. As reservas só têm sentido se forem usadas numa hora dessas, de aperto financeiro internacional. A questão é que o Brasil está tendo problemas no Balanço de Pagamentos por uma política econômica entreguista e antinacional, que levou a economia para uma situação quase sem saída. Paulo Guedes, Bolsonaro e companhia não tem visão nacional, as políticas são sempre no sentido de favorecer o sistema financeiro internacional, a quem eles servem.

     O Brasil pós-golpe é extremamente instável e polarizado. A fuga de capitais se soma a um conjunto de instabilidades. Uma síntese dessa situação é o fato de que a fome epidêmica voltou a assombrar o Brasil, depois do golpe de 2016, com 41% da população brasileira sofrendo algum nível de insegurança alimentar (85 milhões de brasileiros), segundo o IBGE. Com a dívida pública se aproximando de 100% do PIB e a dívida de curto prazo arriscando a alcançar R$ 1 trilhão o Estado brasileiro pode cair em uma situação falimentar. Não há precedente histórico de que destruição em massa de direitos, enfraquecimento dos sindicatos, entrega de patrimônio, aumento do desemprego e da fome, tenha terminado com a polarização política e dado um rumo para o país. Como não será agora que isso acontecerá, há várias possibilidades em aberto.  

                                                                                                                 *Economista 13.10.2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Virão tempos ainda mais tenebrosos

 

                                                                                 *José Álvaro de Lima Cardoso

     Inegavelmente os golpistas de 2016, e os fraudadores das eleições de 2018, conquistaram uma grande vitória. O povo está sendo massacrado, estão desmontando o Estado, a Petrobrás “acabou”, estão liquidando com o que restou de direitos no país. Claramente empurram a sociedade para a direita, como mostram a matança de lideranças populares, a destruição sistemática de direitos sociais e sindicais, o aumento da fome e a proliferação de grupos fascistas cada vez mais agressivos.

     Por uma série de razões, apesar das evidências do fenômeno, é comum escutarmos que temos que esquecer o golpe de Estado de 2016, nos conformar com o governo Bolsonaro, que temos que nos preocupar com as próximas eleições, que através delas iremos recolocar o país nos eixos, recuperar as centenas de direitos perdidos, iremos retomar o desenvolvimento, recuperar a democracia. O problema é que os indicadores não parecem apontar para esse “final feliz”.

     No entanto, é certo que, apesar do evidente avanço dos golpistas, eles não conseguiram viabilizar uma acomodação política no país, o que seria crucial para a estabilização do golpe de 2016. Há um segmento numericamente expressivo de brasileiros que não esqueceram e nem querem “virar a página” do golpe. Como consequência, permanece uma grande polarização política no seio da sociedade. Polarização política nunca é bom para quem está agravando os indicadores e tem as piores intenções possíveis para o país. A polarização leva, muitas vezes, ao aprofundamento dos problemas. O que não é bom para a extrema direita, e outros lacaios.

     Essa instabilidade está relacionada, por sua vez, ao fato de que o governo não conseguiu apresentar uma solução para a crise econômica. Possivelmente uma síntese dessa incapacidade seja a divulgação do IBGE de que a fome voltou a assombrar o Brasil depois do golpe de 2016 e atualmente 41% da população brasileira sofre com insegurança alimentar, ou 85 milhões de brasileiros. Outro sintoma na área externa: nos primeiros oito meses de 2020, US$ 15,2 bilhões deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central começou a compilar as estatísticas, em 1982. Em paralelo, investidores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 17 de setembro. O valor é quase o dobro do registrado em todo o ano passado.

     Se o governo não consegue o mínimo de êxito na economia (um pequeno crescimento, diminuição do desemprego, aumento dos investimentos), também não conseguirá pacificar a sociedade, o que seria fundamental para estabilizar o golpe. Ao invés de indicadores reais de melhoria, o que se observa é que o pano de fundo do problema da fuga de capitais é o de que a economia brasileira caminha para uma crise ainda maior do que a atual. Segundo o FMI, em publicação recente, com a dívida pública se aproximando de 100% do PIB e a dívida de curto prazo arriscando a ultrapassar R$ 1 trilhão o Estado brasileiro pode cair em uma situação falimentar.

     Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que é quem dá as cartas realmente no processo no Brasil e em todo o subcontinente), querem mais e precisam extrair mais do país. A grande mídia, e os setores conservadores em geral, reclamam inclusive, do fato de que as privatizações não estão andando durante a pandemia. Toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o fatiamento da Petrobrás, o aumento da fome, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e coordenam o golpe no Brasil. O golpe no Brasil e todas as suas consequências decorrem da necessidade de o Imperialismo aumentar o nível de transferência de riqueza para o centro imperialista.

     O aumento da fome no Brasil, e todo o conjunto de ataques aos trabalhadores estão relacionados ao agravamento da crise internacional. Entender essa abrangência do fenômeno é fundamental para não se ficar alimentando ilusões que os problemas serão resolvidos através da simples participação nas próximas eleições, ou em 2022. O ataque aos direitos é mundial e com articulação internacional. A conjuntura mundial parece apontar para uma piora significativa, uma inflexão, em termos econômicos e políticos. A tarefa dos sindicatos é preparar os trabalhadores para a resistência e para tempos ainda mais duros, que, ao que tudo indica, virão.

                                                                                                                 *Economista 08.10.2020

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Implicações da alta de preços dos alimentos essenciais

                                                                                      *José Álvaro de Lima Cardoso

    Apesar da inflação no varejo estar em torno dos 3%, o preço dos alimentos tem aumentado em ritmo bem superior à média inflacionária. O cálculo da inflação, como é conhecido, é uma média de muitos preços de bens e serviços. Mas os produtos alimentares têm apresentado aumentos bem acima da média. Segundo a pesquisa de Cesta Básica do DIEESE, relativa a setembro (divulgada hoje), 8 das 17 capitais pesquisadas, apresentaram variações anuais acima de 25%. Em 7 capitais a cesta básica está custando mais do que de R$ 500,00. Essa não é uma cesta para uma família e sim para uma pessoa adulta suprir suas necessidades alimentares básicas.

     A alta dos preços de vários produtos alimentares básicos é causada por uma série de fatores, que confluíram nesta conjuntura, como o aumento das exportações de alimentos e o desmonte dos órgãos e conselhos que cuidam do abastecimento, dos estoques reguladores e das políticas agrícolas. Uma razão importante é a política de especulação com alimentos, por parte dos oligopólios que dominam a comercialização de vários produtos alimentares básicos no Brasil. Obviamente não poderia ser o governo Bolsonaro, um governo lacaio do sistema financeiro, que enfrentaria os oligopólios. Não tem fibra para enfrentar a fome e muito menos disposição para enfrentar o grande capital. Bolsonaro está no poder, aliás, por causa do apoio do grande capital.

     Mas por que a elevação dos preços dos alimentos é um problema grave? Dentre outras razões, porque os salários são muito baixos no Brasil. Quanto mais baixo o salário, maior o peso relativo dos alimentos sobre o orçamento. Uma família que tenha renda domiciliar de R$ 1.500,00, e que conte apenas com um membro trabalhando, provavelmente gasta a totalidade dos recursos com comida, limpeza e higiene. Inflação é um mecanismo adicional de transferência rápida de renda dos mais pobres para os mais ricos, que assim enriquecem ainda mais com a fome e a piora de vida da população mais pobre. Especialmente quando se trata de inflação de alimentos.  

     Para se ter ideia de como a população é esmagada no Brasil: o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, foi de R$ 4.892,75 em agosto, o que corresponde a 4,68 vezes o mínimo vigente de R$ 1.045,00. Este é o mínimo necessário para uma família de 4 pessoas (dois adultos e duas crianças) suprirem suas necessidades alimentares mensais. Apesar de ser um cálculo bastante simples, o salário mínimo necessário nos fornece uma ideia de quanto o trabalhador é explorado. O DIEESE procura apenas calcular, com o mínimo necessário, o que está na Constituição Federal em seu Artigo 7º, inciso VI, que estabelece como um direito dos trabalhadores da cidade e do campo, o:

salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.

     Quando se observa todas essas necessidades descritas pela Constituição Federal, conclui-se que o valor de R$ 4.892,75, é o mínimo mesmo. Uma família que disponha dos recursos definidos no Mínimo Necessário do DIEESE, não pode cometer nenhuma extravagância ao longo do mês, sob pena do salário não ser suficiente para cobrir as despesas do mês.

     O aumento drástico dos preços dos principais produtos alimentícios, agravam uma situação estruturalmente muito ruim. Dados do IBGE mostram que, em 2019, os 10% mais ricos se apropriavam sozinhos de 43% de toda a renda do país, alcançando um dos maiores patamares históricos de concentração desde que a Pnad começou a ser realizada. Há uma informação impressionante: 58% dos rendimentos domiciliares per capita observados em 2019 ainda eram iguais ou inferiores ao valor do salário mínimo vigente nesse mesmo ano. Isso significa que mais da metade das pessoas no Brasil possuíam rendimento domiciliar per capita de até R$ 1.045,00 (um salário mínimo). Ou seja, tinham menos que um salário mínimo para pagar luz, água, transporte, comida, etc.

     O Brasil tem 29,4 milhões de trabalhadores de carteira assinada no setor privado, o menor número já registrado na série histórica, iniciada em 2012. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada no dia 30.09 pelo IBGE. Segundo o IBGE o salário médio desses trabalhadores de carteira assinada, que são uma “elite” no Brasil (dado o processo de destruição do mercado de trabalho), é atualmente de R$ 2.535,00, equivalente a 56% do salário mínimo necessário do DIEESE.

     O aumento dos preços dos alimentos é especialmente grave porque foram muito reduzidos os meios de atendimento aos mais pobres, desde o início do golpe, e também porque vem aumentando rapidamente a pobreza no país.  Segundo o Banco Mundial, no Brasil 9,3 milhões de pessoas ganham menos de US$ 1,90 por dia, ou seja, vivem em extrema pobreza. Segundo o Banco, cerca de 5,4 milhões de pessoas deverão passar para a extrema pobreza neste ano em razão da crise econômica e da pandemia. Se a previsão estiver correta, o total chegaria a quase 14,7 milhões até o fim de 2020, ou 7% da população.

     A elevação abrupta dos preços dos alimentos é muito grave porque se dá em um momento que a crise ocorre em várias frentes: mais grave recessão econômica da história, aumento das desigualdades sociais, taxas de desocupação 14,3 %, aumento da pobreza e da fome, crise no balanço de pagamentos. Quem detém o poder (especialmente quando arrancado através de golpe de Estado), tem um temor especial da inflação. A queda dos salários reais e a transferência da crise para as camadas mais pobres da população, que vem sendo esmagadas, traz um grande potencial explosivo.

                                                                                                          *Economista. 06.10.2020.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Fome e subdesenvolvimento no Brasil

 

                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros que enfrentam insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Em 2018 havia 10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 mil em 2013. Segundo o IBGE, na população de 207,1 milhões de habitantes em 2018, 122,2 milhões eram moradores em domicílios com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões viviam com algum grau de insegurança alimentar. O fato de que 41% da população brasileira sofra, em algum nível, de insegurança alimentar, é uma síntese do nosso abissal atraso econômico, político, e social. É o preço do nosso subdesenvolvimento, e também do golpe de 2016.

     Em qualquer país a fome estrutural é motivo de vergonha, porque em regra ela ocorre por razões políticas e não climáticas ou demográficas. Josué de Castro (médico, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor), autor dos clássicos “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, dizia, que a guerra e a fome são construções humanas. Josué de Castro tem um conceito de subdesenvolvimento que revela nitidamente essa ideia do atraso como uma questão política: “O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta“. (apresentação do livro “Josué de Castro e o Brasil”, de 2008).

     No seu livro “Geografia da fome” o autor confirma sua tese de que a questão da fome é um problema da má distribuição da riqueza e não da escassez de comida. Para Josué os processos de colonização e dependência econômica estão diretamente ligados à geração de pobreza e miséria extrema no mundo. Ou seja, o Brasil claramente é um país subdesenvolvido porque é uma neocolônia, que tem que transferir permanentemente riqueza para o centro, através de inúmeros mecanismos, mais ou menos coercitivos. Quando forças nacionais, levantam a cabeça e tentam lutar pela soberania, o Imperialismo se organiza e interrompe o processo, como fizeram no Brasil em 2016, e nos demais golpes recentes em toda a América Latina.  

    Se a fome pode ser constrangedora para a reputação de qualquer país, no Brasil o constrangimento pela existência da fome tem que ser levado à décima potência porque o país é o segundo maior produtor de alimentos do mundo. Ou seja, como registra Josué de Castro em toda a sua obra: a fome, assim como o seu fim, são decisões políticas. Numa sociedade capitalista, para ter acesso aos alimentos é preciso ter renda. Por isso, no combate à fome é fundamental a geração de empregos (de preferência, formais) e o aumento do salário mínimo, dentre um conjunto de outras ações articuladas.

     A retirada do Brasil do Mapa da Fome em 2014, é resultante de uma operação estratégica, que envolveu: política de emprego e renda, crédito à agricultura familiar (Pronaf), expansão da merenda escolar, política de estoques de alimentos, política de controle da inflação, e assim por diante. Além de competência técnica e determinação, tais políticas devem ser desenvolvidas de forma articulada, pelo Estado. O setor privado não tem interesse e nem condições de assumir tal coordenação. As empresas privadas no máximo farão modestas doações, e em seguida, utilizarão o fato como instrumento de propaganda para os seus negócios.

     O atual aumento dos preços dos alimentos é muito grave porque se dá em um momento que a crise ocorre em várias frentes: mais grave recessão econômica da história, aumento das desigualdades sociais, taxas de desocupação 14,3 %, aumento da pobreza e da fome, crise no balanço de pagamentos. Quem detém o poder (especialmente quando arrancado através de golpe de Estado) tem um receio especial da inflação porque ela significa uma transferência da crise para as camadas mais pobres da população. E, portanto, tem grande potencial explosivo. O aumento de preços de produtos essenciais traz um potencial de mobilização e instabilidade social muito grande. Que pode inclusive ocorrer de forma abrupta, como revela a experiência histórica. Especialmente em um momento histórico em que os trabalhadores estão tendo o seu couro arrancado por centenas de medidas desde 2016.

     Em duas oportunidades, no Rio de Janeiro, em 1913 e 1949, os trabalhadores conduziram campanhas fortíssimas, com intensa mobilização visando a organização dos trabalhadores em sindicatos, e por direitos sociais e sindicais, que se combinaram com as lutas contra a carestia da vida (como era chamado). Da mesma forma, o Movimento do Custo de Vida (MCV), também conhecido como Movimento Contra a Carestia (MCC), realizado nos anos 1970 e 1980, está entre os maiores movimentos populares levados à cabo no Brasil. Este movimento, que surgiu no contexto das lutas populares dos anos mencionados, mobilizou milhares de pessoas em torno da luta contra a ditadura, priorizava uma questão fundamental que era a “carestia”. E a luta contra a carestia tinha uma grande capacidade de envolvimento de setores mais populares.

     Além do desemprego recorde, e do aumento da fome, a carestia dos alimentos essenciais, coincide com a destruição dos poucos colchões que visam evitar uma explosão social. O Bolsa Família foi enfraquecido, com a retirada do cadastro de milhares de pessoas (ainda no governo Temer), e agora com a redução do valor da Renda Emergencial (R$ 600,00 para R$ 300,00).  Nesta conjuntura, de aumento da exploração e do arrocho salarial, é fundamental garantir que o salário sustente ao trabalhador e à sua família. O que é uma garantia, inclusive, para o próprio Capital, de que a exploração do Trabalho se mantenha no futuro.

      Nesse quadro, o salário mínimo, inclusive no período recente, já foi uma importante bandeira da classe trabalhadora brasileira. No período 2003 e 2015 obteve um ganho real de mais de 75%, em função, dentre outras coisas de um acordo entre movimento sindical e o presidente Lula. Tal política estabeleceu uma política de correção automática do salário mínimo, com base na inflação e no aumento do PIB (Produto Interno Bruto). Por isso chama a atenção o abandono da defesa do salário mínimo por parte da imensa maioria da esquerda e da própria estrutura sindical. Tem gente convencida que a proposta e o valor aprovado pelo governo Bolsonaro, do miserável auxílio emergencial de R$ 600, para três meses (e que foi agora reduzido pela metade), resolve o problema.

     Estamos diante de uma verdadeira tragédia nacional, com quase 150 mil mortos pela Covid-19, e mais de 85 milhões de brasileiros vivendo em insegurança alimentar. O Brasil é um país subdesenvolvido, que sofre de um grau de exploração ainda maior do que nos países capitalistas centrais, e no qual a população trava uma verdadeira guerra diária pela sobrevivência. A luta é simultaneamente contra o aumento de preços dos alimentos e por um salário mínimo que não pode ser inferior ao Salário Mínimo Necessário calculado pelo DIEESE.

                                                                                                 *Economista, 03.10.2020