–Por que
médicos fazem escolhas diferentes que a maioria de nós no
final da vida?
Por
Melinda Welsh, Sacramento
News & Review
O dr. Ken
Murray escreveu um artigo para a revista online Zócalo Public
Square pensando que, com sorte, atrairia algumas dúzias
de leitores e um comentário ou dois. Em vez disso, o médico
recebeu uma avalanche de respostas. Na verdade, o que ele
escreveu o colocou no meio de um debate sobre a vida, a morte
e médicos.
O que ele
revelou de tão avassalador?
Revelou
que a imensa maioria dos médicos faz escolhas para o fim da
vida dramaticamente diferentes do resto de nós. Dito de uma
forma simples, a maioria dos médicos escolhe conforto e calma
em vez de intervenções ou tratamentos agressivos Visto de
outra maneira, médicos rotineiramente ordenam procedimentos
aos pacientes no fim da vida que eles não escolheriam para si
mesmos.
O que os
médicos fazem e o resto de nós não?
De acordo
com Murray, os médicos veem as limitações da medicina moderna
de perto e sabem que as tentativas de prolongar uma vida podem
frequentemente levar a uma morte prolongada, sofrida.
O livro
de 2011 de Murray, How Doctors Die (Como Médicos
Morrem), foi traduzido em vários idiomas e recebeu resenhas
do The New York Times, The Wall Street Journal e The
Washington Post. Milhares de pessoas comentaram nas
páginas de leitores dos jornais e blogs que as reproduziram.
Leitores falaram sobre “familiares à beira da morte sendo
atacados por drogas tóxicas”, disse Murray, ofertas de
“procedimentos dolorosos por nenhuma razão”. Entre as
respostas estavam centenas de histórias de médicos e
cuidadores profissionais que confirmavam a tese de Murray.
“Muitas
das histórias eram desoladoras”, disse.
Dados que
provam isso não são difíceis de encontrar. Murray cita o Johns
Hopkins Precursors Study, uma das maiores pesquisas sobre
envelhecer no mundo, que contém estatísticas de saúde em um
grupo de aproximadamente 750 médicos que eram membros da Johns
Hopkins University School of Medicine em Baltimore entre 1948
e 1964. Através dos anos, o estudo ajudou a pesquisa médica a
relacionar, por exemplo, colesterol alto com ataques
cardíacos. Mas 15 anos atrás –com seus participantes em seus
60, 70 e 80 anos– os pesquisadores começaram a perguntar sobre
escolhas terminais.
Dr.
Joseph Gallo, diretor do Precursors Study, estava feliz de
explicar como os dados mostram continuamente que médicos –por
uma ampla maioria– fazem diferentes escolhas quando
confrontados com diagnósticos desesperadores. Médicos que
escolhem menos procedimentos também tendem a facilitar as
chamadas “diretivas antecipadas de vontade”, uma importante
parte da papelada que permite aos pacientes escolher um
procurador e determinar antecipadamente que intervenções
querem ou não em caso de acontecer um declínio em sua saúde.
No Brasil isso ainda não é regulamentado (leia sobre o
movimento pela regulamentação da Ordem de Não Reanimar aqui.)
Em um
cenário onde o grupo de estudo foi questionado sobre o que
desejaria no caso de uma doença cerebral irreversível que os
deixasse incapazes de reconhecer pessoas ou falar, “a maioria
das pessoas quer tudo”, disse Gallo, enquanto 90% dos médicos
disseram não à ventilação mecânica (aparelhos de respiração
artificial) e à hemodiálise. Cerca de 80% dos médicos disseram
também não a uma cirurgia de grande porte ou a um tubo de
alimentação, disse.
“Isto
sugere que quanto mais familiar você é com intervenções, menos
você quer”, Gallo disse, direto ao ponto.
Murray
crê que a culpa pela ruptura se deve a três fatores: má
comunicação do médico com o paciente, expectativas irreais dos
pacientes e suas famílias e um sistema de saúde que encoraja
tratamento excessivo. (Nota: um quarto de todos os gastos com
saúde ocorre no último ano de vida das pessoas.)
‘Não
me entube’
Quando se
considera o grande número de mortes que o Dr. James Gregor
testemunhou em décadas como especialista em cuidados
paliativos e em casas de repouso de Sacramento, é comovente
vê-lo tomado pela emoção ao contar a história de Ella.
Idosa
diagnosticada com uma doença terminal, Ella (não é seu
verdadeiro nome) tinha fortes convicções sobre não ter nenhuma
intervenção médica quando estivesse próxima da morte. Ela
preencheu a papelada com este efeito e oficializou tudo, com
seu marido servindo como procurador no caso de se tornar
incapaz de tomar suas próprias decisões. Logo veio o
inevitável ponto em que Ella, presa numa cama de hospital e
perto de morrer, começou a ter dificuldades de respirar. Um
dos muitos médicos dela disse para seu marido: “Ela está se
debatendo muito. O senhor não quer que a coloque num
respirador?” Pensando que o médico sabia melhor, o marido
consentiu e ela foi colocada no respirador artificial.
Aquele
momento de escolha virou sete longos dias de arrependimento.
Apesar de
seus desejos, Ella permaneceu semi-viva na unidade de terapia
intensiva com “tubos em toda parte” e uma máquina respirando
por ela durante uma semana. De acordo com McGregor, o marido
então teve que tomar a responsabilidade por retirar a ajuda.
“Ele estava devastado”, disse McGregor. “Ele sentiu que tinha
traído sua mulher durante a última semana de vida dela… Você
podia ver aquela dor.”
McGregor,
um especialista em hospices (que permitem a doentes terminais
conforto em vez de tratamentos agressivos) e medicina
paliativa (com foco em aliviar e prevenir sofrimento), disse
que a experiência de Ella é mais comum do que se pensa.
“Vi
pacientes morrerem na UTI aos poucos e a família não podia nem
chegar perto.”
Além
disso, apesar de a maioria das pessoas desejarem morrer em
casa perto dos seres amados, 70% morrem no hospital ou na
clínica após um longo embate contra um câncer avançado,
falência cardíaca, doença incurável ou incapacidades múltiplas
da velhice.
Quando
perguntados sobre a diferença e por que médicos não tendem a
colocar a si mesmos em respiradores em UTIs no fim de suas
vidas como aconteceu com Ella, McGregor foi sombrio.
“Frequentemente
a questão não é bem colocada”, disse McGregor, como: “Nós
temos duas opções aqui: nós podemos tentar de tudo ou nós
podemos administrar agressivamente seus sintomas e mantê-lo
confortável. O que seria qualidade de vida para você?”
Médicos,
ele disse, tendem a escolher a opção 2, porque viram o que
viram, e “sabem que uma intervenção pode gerar um efeito
cascata.”
Dr. Kevin
Ryan, médico aposentado e escritor, coloca de uma forma
diferente: “Médicos viram (morte e morrer) de todas as
perspectivas, exceto acontecendo com eles.”
“Quando
você está perto do fogo, sabe como pode se queimar.”
Medicina
e hospitais existem para combater doença e morte, é assim que
se pensa, então se o paciente morre, o médico falhou.
McGregor
lembra das aulas de habilidades clínicas que assistiu na
faculdade de medicina com uma lista de passos que um médico
deveria seguir, concluindo com as palavras: “Se o paciente
morre, eu falhei”.
“Espera-se
de nós que façamos coisas, que consertemos coisas”, disse
McGregor. “Médicos se sentem impotentes se não podem oferecer
alguma coisa e é difícil para eles falar sobre opções que não
sejam as agressivas ‘trazer sua saúde de volta’… Um médico
pode sentir que falhou diante de um paciente ao dizer ‘Bem,
você vai para um centro de cuidados paliativos’. ”
Um
informe publicado no ano passado no New England Journal of
Medicine diz que 69% dos pacientes com câncer de pulmão
e 81% dos pacientes com câncer colo-retal disseram não ter
entendido de seus médicos que a quimioterapia não iria curar
de todo seu câncer.
Isto
acontece por duas razões, diz McGregor.
O
paciente ou a família podem frequentemente vir com enormes
expectativas não-realistas, algumas vezes reforçadas por
crenças populares. Muitas veem a respiração artificial, por
exemplo, como algo que salva vidas, mas na verdade ela
raramente é eficaz. “Existe uma percepção equivocada que a
medicina pode consertar tudo”, ele diz. “E há também um
sentimento de ter direito a isso algumas vezes –’você deveria
me dar tudo’.”
Infelizmente,
uma outra razão pelas quais médicos algumas vezes “fazem tudo”
com pacientes terrivelmente enfermos é o medo de sofrer
processos por má prática de medicina.
“Acho que
este é um fator”, disse McGregor. Os outros médicos
entrevistados concordam. “Algumas vezes os médicos dizem ‘ok,
nós lhe daremos tudo’, mesmo que saibamos que não irá ajudar,
como um modo de não nos enredarmos numa ação legal de alguém
da família que achou que deveria haver mais procedimentos”,
disse.
Para seu
próprio desejo de fim da vida, se ele se encontra com uma
doença terminal, seu desejo é morrer em casa sem intervenções
e com a assistência de centros de cuidados paliativos.
“Brinco
que tenho ‘NMR’, ‘NTMR’ e ‘PMN’ tatuado no meu peito”, disse
McGregor (não me ressuscite, não tente me ressuscitar e
permita morte natural).
“Simplesmente
não me entube”, especifica.
‘De
jeito nenhum farão isso comigo’
Dr.
Michael GuntherMaher, diretor médico do Sacramento and
Roseville Kaiser conta a história de Sophie.
Mulher
negra de 88 anos, Sophie (não é seu nome real) deu entrada no
Kaiser poucos meses atrás com um histórico de rápida perda de
peso e uma infecção chamada sepse, disse GuntherMaher.
“Fizemos alguns testes e vimos que ela estava anêmica.
Escaneamos seu abdômen… e achamos uma massa. Estava claro que
tinha câncer”, disse.
Já no
começo Sophie falou que queria que os médicos fizessem todo o
possível para salvar sua vida, disse GuntherMaher. Com a
família insistindo fortemente, o hospital imediatamente
começou com intervenções e remédios. “E esta mulher morreu
lentamente na UTI com um tubo na garganta”, disse. “Finalmente
a família disse: ‘tire-a da máquina’. Foi um difícil e
prolongado final de vida quando não havia não havia nenhuma
chance razoável de que isso fosse funcionar.”
GuntherMaher,
que tinha sido consultado sobre o caso de Sophie como um
especialista em cuidados paliativos, refletiu que a mulher
perdeu a chance de retornar a Oakland para morrer suavemente,
em seu ambiente, “ao redor de amigos e família que queriam
visitá-la e dizer adeus… Aquela oportunidade foi completamente
perdida”.
“Tenho um
monte de histórias como essa. O hospital está cheio delas.”
GuntherMaher
vê o caso de Sophie como um exemplo do que ele chama de caos
que acompanha muitos cenários de final da vida.
“Um monte
de mudanças na vida acontecem nos últimos anos, e as famílias
não estão preparadas para a doença”, ele diz. “A doença
existe. As pessoas entram e saem de hospitais ou casas de
repouso. Eles estão nestes lugares mesmo apesar de estarem
acostumados a pensar ‘eu nunca quero estar assim’. Mas eles
estão. E isto é caótico.”
Foi um
desejo de colocar ordem nesta turbulência do final da vida que
colocou GuntherMaher na rota do seu posto atual no Kaiser.
“Acho que
a maioria das pessoas… o que têm é medo”, ele disse. “Estão
com medo. Estão confrontados. Há coisas a terminar. Eles não
podem aceitar que irão chegar ao fim deste jeito porque estão
pouco preparados.”
Esse
estado mental, diz, frequentemente pavimenta o caminho para
que suas famílias aceitem todos os procedimentos oferecidos,
não importa que sejam agressivos.
GuntherMaher
acredita que os pacientes deveriam estar aptos a escolher por
eles mesmos se vão ou não ser submetidos a tratamentos perto
do fim da vida. “Sou a favor que as pessoas escolham”, ele
diz, “desde que isto seja informado.”
Questionado
por que médicos morrem de maneira diferente, como na tese de
Murray, GuntherMaher respondeu: “Médicos são diferentes”.
“Como
grupo, tendemos a estar no final do espectro onde se acham as
pessoas inteligentes, capazes. Então, se você pega gente assim
e as expõe a estas complexidades e dificuldades uma e outra
vez, elas irão levar em conta e processar isto.
Outro
aspecto que nós (médicos) somos capazes de fazer é conciliar
aspectos psicológicos, a falência biológica, com os mais
difíceis temas humanos. O que é a vida? O que é a morte? Do
que se trata? Nos confrontamos com isso quase todo dia, como
ninguém mais em nossa sociedade, exceto talvez pastores.”
GuntherMaher
disse que os médicos com quem se relaciona estão no hospital
diariamente e “a maioria deles, quando externa sua opinião
sobre (intervenções no final da vida), diz basicamente: ‘de
jeito nenhum que farão isso comigo’.”
Não foi
surpresa descobrir que as escolhas de GuntherMaher sobre seu
próprio final de vida ecoam as dos outros doutores no estudo
da Johns Hopkins. Em realidade, meses atrás, ele reuniu os
três filhos de 20 e poucos anos para falar sobre seus desejos.
“Colocamos minha filha e meu genro no FaceTime do Ipad”,
disse. GuntherMaher deu suas instruções e mostrou aos filhos
um formulário POLST (ordens médicas para tratamento de vida
assistida, na sigla em inglês), declaração sobre que tipo de
tratamento médico doentes seriamente enfermos querem para si
mesmos.
“Acho que
isso nos deu uma boa oportunidade para ser uma família e falar
sobre coisas significativas juntos, praticar o saber ouvir e
falar profundamente uns com os outros”, disse. “Fazer
considerações, por um momento, sobre este período da vida é
precioso.”
Entre
outras coisas, GuntherMaher lhes falou: “Não quero ser
ressuscitado se meu coração parar. Não quero ser colocado em
ventilação mecânica. E quando meu momento chegar, quero morrer
em minha casa.”
‘Medicina
não pode consertar tudo’
Dr.
Jeffrey Yee está de frente a seus alunos –camisa cinza de
botões, jaqueta e um pager de bolso– com todo o carisma
amigável de um professor de ciências sociais. Mas ele é um
médico que deixa por um tempo suas consultas particulares como
clínico-geral para ensinar idosos e pacientes cronicamente
doentes sobre as instruções e formulários POLST. O público de
Yee no início de setembro consistia em 14 pacientes idosos
–muitos deles pareciam lutar com doenças crônicas ou câncer.
Yee, que
testemunhou em 1997 a favor do POLST antes da aprovação no
Estado, faz uma apresentação em PowerPoint para seus
estudantes sobre as instruções e a importância de nomear um
procurador para cuidados com a saúde. Ele e uma enfermeira
inclusive encenam um pequeno esquete onde fazem o papel de
dois irmãos com diferentes interpretações sobre o que o médico
recomendou que deveria ser feito com uma mãe no caso de
assistência à vida.
“Tentamos
fazer com que as pessoas considerem essa problemática, tenham
conversas sobre isso”, Yee disse antes da aula. “Tentamos que
as pessoas experimentem as tensões e os desafios que terão que
enfrentar no futuro.”
Yee não
usa “final da vida” ou a palavra “morte” em seus seminários.
Nem discute procedimentos específicos ou possíveis
consequências. “Quando você reduz isto a uma conversa sobre
‘este procedimento dura tanto tempo’, isto realmente não
proporciona um bom quadro”, ele diz. “Que número poderia
representar ‘pequena chance de sucesso’?” Se você tem 95, você
responderia esta questão de forma diferente do que se tem 30 e
três filhos.
Curiosamente,
Yee –o mais novo dos médicos entrevistados– foi o único médico
que não disse imediatamente que iria declinar de intervenções
se ele mesmo se deparasse com uma doença terminal. “Depende da
situação”, ele diz. “Não sei se eu poderia estabelecer isto
tão especificamente agora”.
Um outro
programa que poderia resultar para reduzir o fosso entre
médicos e o resto de nós nas escolhas de final da vida é
chamado ROYL, sigla para “resto da sua vida” (em inglês).
Dr.
Philip Lisagor, cirurgião cardio-torácico aposentado e chefe
médico do ROYL em Reno, Nevada, teve um estalo no final de sua
carreira: “Me dei conta que ninguém estava falando com
pacientes com doenças sérias sobre o que estava acontecendo”,
disse.
“Um jogo
está sendo jogado aí”.
Lisagor
observa que o fator lucro não pode ser desprezado quando se
discute por que este fosso existe, e por que tantos médicos
frequentemente encorajam intervenções que eles mesmos não
escolheriam. “A indústria da assistência médica faz muito
dinheiro com os cuidados no fim da vida”, diz. De fato, cerca
de 27% do orçamento anual de 327 bilhões de dólares do
Medicare (seguro de saúde governamental nos EUA) são
destinados a pacientes em seu último ano de vida.
“Todo
mundo no sistema lucra com mais procedimentos”, disse Lisagor,
“incluindo médicos, hospitais, companhias farmacêuticas,
centros de diagnósticos etc. É um problema enorme.”
“Há uma
mudança cultural acontecendo no país”, disse Murray, o médico
do ensaio polêmico. “O tabu está acabando, as pessoas querem
falar sobre isso… Demorará, mas acredito que está
acontecendo.”
Os
médicos entrevistados para esta reportagem também concordaram
que as coisas estão melhorando. “Sim”, disse McGregor. “As
pessoas precisam entender que existe a possibilidade de ter
uma morte confortável, de morrer cercado por seres queridos.
As pessoas precisam entender que é uma opção real e viável.”
“E
necessitam entender que a medicina não pode consertar tudo.”
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