sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Porque apoiar o movimento dos trabalhadores da Comcap

 

                                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso

 

     No dia 15 de janeiro o prefeito Gean Loureiro encaminhou à Câmara de Vereadores seis projetos, um verdadeiro pacote que inclui, além da reestruturação e futura privatização da Comcap (Companhia de Melhoramentos da Capital), o corte de direitos de trabalhadoras e trabalhadores do serviço público. Além disso, o pacote traz a venda de terrenos públicos, inclusão de diversas entidades empresariais no Conselho Municipal de Educação, reformulação do plano diretor da cidade, e outros tópicos.

      Desde o dia 18 de janeiro, os trabalhadores da Comcap estão fazendo paralisações exigindo a retirada de projeto de lei do prefeito que pretende desmantelar a empresa e privatizar o serviço, ameaçando os empregos, Na noite de terça-feira, 19, antes mesmo dos trabalhadores terem definido em assembleia que fariam greve por tempo indeterminado, o que ocorreu no dia 20, o Tribunal de Justiça considerou a greve ilegal. A partir do dia 20 os trabalhadores definiram greve por tempo indeterminado, decisão corroborada em 27 de janeiro em Assembleia Geral.

      Abaixo, listo algumas razões pelas quais o movimento dos trabalhadores da Comcap deve ser apoiado por todos os que estão do lado da esmagadora maioria da população de Florianópolis, e não do lado dos especuladores:

1.O projeto aprovado no dia 26.01 na Câmara de Vereadores, relativo à Comcap visa desestruturar a empresa, abrindo o caminho para a sua privatização. Até onde se pode prever, o projeto reduz drasticamente os níveis salariais, que são descritos, de forma mentirosa, como sendo supersalários;

2.Simultaneamente ao envio do pacote para a Câmara foi intensificada uma política antiga de criminalização da luta de trabalhadores/as do município, com ataques ao Sintrasem, procurando intimidar os trabalhadores. Procurando impedir, dessa forma, uma resposta coletiva ao pacote de maldades;

3. O projeto também reduz direitos acertados nas negociações dos acordos coletivos assinados nos últimos anos. O texto, além disso, retira a proibição de que os serviços da autarquia sejam terceirizados, ou seja, abre a possibilidade de privatização dos serviços, como mencionado;

4. Os projetos apresentados mexem direta e profundamente com o interesse público. Portanto, se fossem bem intencionados, a prefeitura teria interesse que fossem dissecados através de um profundo debate com a sociedade. Mas o prefeito aprovou o que pode na Câmara a toque de caixa, praticamente sem nenhum debate. No dia 26 de janeiro, primeira sessão para discutir os projetos, havia parlamentares, principalmente da situação, que ainda não haviam lido os projetos;

5.Todos os setores patronais da cidade apoiam os projetos. Setores como CDL (Câmara de Dirigentes Lojistas) e a ACIF (Associação Comercial e Industrial de Florianópolis), estão dando total apoio ao projeto do prefeito, desde o início. Esse indicador, vamos considerar, é bastante importante na definição de uma avaliação do projeto. Se o conjunto dos patrões estão a favor, e a totalidade dos trabalhadores estão contra, isso diz muito sobre o projeto. Na sessão do dia 26 um vereador de oposição chegou a declarar que acreditava que os projetos não foram elaborados na prefeitura, mas foram enviados prontos pelo empresariado que têm interesse nas medidas;

6.Nada ali precisaria ser discutido com urgência, em sessão extraordinária. Todos os temas poderiam – e deveriam – ser discutidos calmamente durante meses. Até pela repercussão que terão em todas as dimensões da cidade;

7.O projeto da minirreforma procura achatar os benefícios recebidos pelos trabalhadores da Comcap, para nivela-los por baixo, desconsiderando que tais benefícios decorrem de anos de lutas dos trabalhadores;

8. Apesar de não ter dados mais precisos, neste momento, para fazer o cálculo, se tornam evidentes os ganhos de produtividade dos trabalhadores da Comcap nos últimos anos. Entre 2012 até setembro de 2019 cerca de 185 trabalhadores saíram da Comcap. Neste mesmo período, a população de Florianópolis subiu de 433 mil para 500 mil. Além disso, a Comcap possui hoje cerca de 130 pessoas em desvio de função, cedidos a outros órgãos por indicação política. Ou seja, o número de empregados disponíveis na Comcap, vem crescendo em ritmo inferior ao crescimento da população, o que assegura um ganho de produtividade nos últimos anos, em função do aumento do número de unidades a serem atendidas não só com a coleta de lixo, mas toda o leque de serviços que a Comcap presta;

9) A Comcap se destaca também pela qualidade do trabalho que desenvolve. Florianópolis foi a primeira cidade no Brasil a implantar a coleta seletiva pelo sistema de porta em porta. Esse trabalho é feito pela Comcap. Atualmente, a cidade já é a capital que mais recicla no Brasil. E graças ao trabalho zeloso da equipe da Comcap, pode ser a primeira capital Lixo Zero, com reciclagem de 60% do lixo seco e 90% do lixo orgânico. A coleta seletiva em Florianópolis hoje tem um dos melhores desempenhos do país;

10. O executivo argumenta que as vantagens da Autarquia são desproporcionais a outros órgãos municipais. Evidente, querem nivelar direitos por baixo. E querem principalmente nivelar com empresas do setor privado, que simplesmente costumam esmagar o trabalhador. Pagando, por exemplo, salário mínimo para gari, com o mínimo de benefícios;   

11.Todos os benefícios trabalhistas que estão ameaçados com o novo projeto de lei (percentual de horas extras nos finais de semana e feriados, gratificação de férias, vale transporte para o trabalhador acidentado, gratificação por assiduidade) foram obtidos em acordos coletivos assinados nos últimos anos. São frutos de décadas de suor e lágrimas dos trabalhadores. E obviamente tem vantagens em relação a empresas análogas do setor privado, que simplesmente exploram ao máximo o trabalhador;

12. O Sindicato jamais deve admitir que igualem os salários e benefícios aos verificados nas empresas privadas de coleta de lixo. Estas tratam seus trabalhadores como verdadeiros escravos. Sindicato que se preza não aceita um negócio destes sem luta. Se é para receber salário mínimo, não precisa sindicato, a CLT garante;

13. A privatização dos serviços da coleta, e todos os demais, não é apenas um problema de limpeza da cidade. O projeto ataca, ao mesmo tempo, milhares de famílias que moram no município, que irão perder qualidade no serviço e pagar mais caro, assim como um número expressivo de trabalhadores que retiram seus sustentos da Comcap, e que se identificam com o perfil da empresa;

14. Os projetos estão inteiramente em linha com o que já existe há muitas décadas no Brasil (e no mundo): uma campanha contra o setor público, uma campanha permanente contra as estatais, e especialmente contra o funcionalismo público de uma forma geral;

15.Os setores que defendem esses projetos não suportam ver trabalhadores da limpeza pública com carteira assinada, acordo coletivo de trabalho com certa qualidade, fruto de décadas de lutas e dedicação. Emprego formal e tratamento digno ao trabalhador não faz parte do imaginário destes privatistas;

16.Esse pessoal não tem projeto de pais, portanto o seu objetivo é nivelar por baixo. Querem aumentar muito os níveis de exploração dos trabalhadores da Comcap, enxugando a empresa, e os direitos, para o capital privado assumir;

17. Não tenhamos dúvidas: assim como no caso da Banco do Brasil e demais estatais, o programa de demissão voluntária, a destruição de direitos históricos, as alterações no Estatuto do Servidor, a enganação da redução de custos, tudo isso faz parte do ajuste da empresa para a privatização;

18.Os tubarões que costumam comprar empresas públicas querem uma estrutura enxuta, com poucos empregados, com elevado nível de exploração. A principal lição das privatizações no mundo todo é: as privatizações visam resolver o problema do capital privado e não do setor público;

19. A prefeitura e a grande imprensa intensificaram por estes dias a tarefa de colocar a população contra os trabalhadores da Comcap. Apesar da eficiência e importância da empresa para a cidade, é possível que a população fique achando que a prefeitura, em parte, tenha razão. Afinal estamos num país, no qual os trabalhadores de “aplicativos”, por exemplo, são incentivados a se explorar por dez, doze horas ou mais para ganhar um mínimo suficiente apenas para pagar a comida e as principais contas;

20. É graças principalmente ao Sintrasem, sindicato forte, combativo, e com uma democracia interna muito vigorosa, que a Comcap ainda é uma empresa pública. A privatização da empresa vem sendo tentada há décadas, ela só não se efetivou por causa da organização sindical dos trabalhadores da empresa;

21. Caso o projeto de destruição da Comcap seja vitorioso nos depararemos com o que já se observa no setor privado: fraudes, superfaturamento, desprezo pelo meio ambiente, exploração dos trabalhadores e erros graves de operação. São acusações que nunca se ouviram a respeito da Comcap, mesmo com os privatistas o tempo todo no pé da empresa;

22. Uma das experiências mundiais com a privatização de qualquer serviço público é o aumento do custo dos serviços. Com a terceirização da Comcap não tenham dúvidas: a taxa aumentará e o serviço perderá qualidade. Hoje a comparação do custo da Comcap com os demais municípios da grande Florianópolis, já revela de forma bem clara a diferença. O serviço da Comcap, além de ser mais barato do que todo o entorno, ainda inclui coleta seletiva, coleta de volumosos, remoção de entulho em pontos de descarte irregular, coleta de verdes, sem cobrar na taxa de coleta da Comcap em Florianópolis;

23.Ao contrário do que alguns afirmam, e outros imaginam, os trabalhadores da Comcap recebem salários normais para os padrões brasileiros (baixos, portanto). O que salva é o conjunto da remuneração, fruto de uma luta de mais de três décadas, que compõem um nível razoável (não mais que razoável). As empresas privadas não são parâmetro para nada. Elas arrancam o couro do trabalhador, sem anestesia. Imagina o cidadão ficar recolhendo lixo durante 6 ou 8 horas seguidas para ganhar R$ 1.200,00 ou R$ 1.800,00 (no caso do motorista). Este é o caso da empresa privada que praticamente não paga benefícios, para o exercício de um trabalho extremamente penoso, exaustivo e arriscado.

 

                                                                                                *Economista. 29.01.21

 

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Superexploração, medo e submissão do trabalhador no Brasil

 

 

                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso

     Segundo o cientista social Rui Mauro Marini (um dos formuladores da conhecida Teoria da Dependência) as principais formas a partir das quais a superexploração se manifesta, especialmente nos países subdesenvolvidos, são:

1.prolongamento da jornada de trabalho;

2.intensificação do ritmo do trabalho;

3. violação do valor da força de trabalho.

    No Brasil a classe dominante combina essas três formas de explorar o trabalhador, acima do que poderia ser considerado “normal”. É comum o trabalhador trabalhar muitas horas, num ritmo muito forte, e receber salários muito baixos. A partir destas três formas principais de superexploração, as combinações são as mais variadas. Cada uma dessas formas gerais se concretiza em vários métodos específicos de extrair mais da força de trabalho.

     Esse processo de superexploração, que enfrentam principalmente os trabalhadores dos países subdesenvolvidos – mas não exclusivamente – é extremamente funcional ao sistema capitalista mundial. Ou seja, não se trata de uma “distorção” do mercado de trabalho, verificada nos países subdesenvolvidos. Longe disso. Há uma relação entre as condições de vida que uma parte dos trabalhadores ainda dispõe no centro capitalista (cada vez em menor número) e os superexplorados da periferia.

     Na sociedade capitalista a noção de que o trabalho é explorado pelo capital é quase lugar comum. Mas as formas concretas dessa exploração evoluíram ao longo do tempo. Por exemplo, com a grande crise capitalista de 1974 foi lançada, alguns anos depois, a política neoliberal que, basicamente significou a destruição de forças produtivas, para tentar retomar os níveis de lucratividade do capital anteriores à crise de 1974.  Ao mesmo tempo, a política neoliberal fez de tudo para rebaixar os níveis de vida das populações do mundo todo e destruir direitos sociais e trabalhistas em escala industrial. No centro e na periferia. Esta política já dura mais de 40 anos.

     A crise que o capitalismo está vivendo, como a maioria das crises capitalistas, é de superprodução, ou seja, de excesso de mercadorias em relação à capacidade de consumo da sociedade. O sistema não consegue manter a lucratividade do capital, com a quantidade de forças produtivas existentes. A chegada das políticas neoliberais destruiu forças produtivas, e também as condições de vida das populações. Além disso, ao invés dos gastos do Estado serem destinados a políticas sociais, eles são voltados a atender as necessidades do capital. Pudemos observar o que foi gasto com bancos pelos governos do mundo todo, na crise de 2007/2008. Foram vários trilhões de dólares. Como é utilizado dinheiro público para essas operações, a sociedade como um todo paga o subsídio público ao capital. O Estado capitalista existe para isso, servir a burguesia.

     Desde a grande crise de meados de 1970, a política imperialista para enfrentar a crise mundial de superprodução tem sido uma só: privatizações, destruição de forças produtivas (tanto na periferia, quanto no centro capitalista), destruição de direitos e elevação dos níveis de exploração da força de trabalho. Como o imperialismo não tem outra política que substitua essa, todas as manobras políticas, os golpes de Estado, o apoio a extrema direita (como no Brasil em 2018, na fraude eleitoral que colocou Bolsonaro na presidência), visam criar as condições para aprofundar ainda mais essas políticas neoliberais.

     Num cenário de desindustrialização e superexploração, e de busca do Estado mínimo almejado pelos neoliberais, a exploração do trabalhador aumentou muito. Surgiram várias formas de aumentar as formas de exploração do trabalhador (terceirização, trabalho por aplicativos, etc.), que se somaram às formas mais tradicionais de exploração (trabalho sem registro, informal). Os trabalhadores dos chamados aplicativos, além de serem explorados através de muitas horas diárias de trabalho, e rendimento líquido final irrisório, são ainda vitimados por um nível bastante elevado de alienação do trabalho. Não se consideram trabalhadores, imaginam que são empreendedores, livres para fazer os seus próprios horários de trabalho. Sem organização sindical, e portanto, sem parâmetros sociais e históricos para avaliar sua condição no mercado de trabalho, ficam sozinhos, inclusive, na análise da sua situação. O nível de alienação é tão elevado que realizam um tipo de auto exploração.

     O fenômeno da superexploração em sociedades como a do Brasil gera um ambiente de intensa violência estrutural contra a maioria da população. As várias formas de superexploração do trabalho, agressivas por si só, levam a uma intensa violência contra a população em geral. Não é por acaso que a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. A matança permanente de pobres, especialmente jovens negros, é uma forma de manter o medo e a submissão da classe trabalhadora. É a força de violência e coerção do Estado da burguesia garantindo as condições para os trabalhadores aceitarem um regime de brutal superexploração.

     Essa natureza violenta da sociedade brasileira - que obviamente está ligada também à conformação histórica do Brasil, assunto para o qual não temos espaço aqui -se manifesta pelos indicadores socioeconômicos também. Por exemplo, após o país ter saído do Mapa da Fome da ONU, em 2014, temos no país 43 milhões de pessoas vivendo em insegurança alimentar. Isto é, 20% da população, no país que é o segundo produtor de alimentos do mundo. Esta, que é principalmente uma decisão política da burguesia brasileira, é de uma violência desmedida contra a população

      Além da superexploração estrutural dos trabalhadores brasileiros, a política neoliberal enfraqueceu a organização sindical e política da classe e desmontou o chamado Estado do Bem-Estar Social, existente principalmente na Europa. Essa política, que é extremamente destrutiva, provocou um retrocesso enorme na sociedade, e também nas conquistas da classe operária no mundo todo. O desemprego aumentou, todos os direitos conquistados depois da Segunda Grande Guerra, num contexto da Guerra Fria, foram sendo esfarelados, e espalhou-se o chamado emprego precário no mundo todo.

    Nos oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso, que estão entre os piores da história do Brasil, direitos e a economia nacional foram destruídos em escala industrial. A política de FHC foi explosiva para o país: entrega de estatais a preço de banana (conhecida como privataria), destruição intensiva de direitos sociais e aumento da vulnerabilidade externa. Quando Fernando Henrique Cardoso afirmou que iria sepultar a era Vargas, em 1995, ele se referia não apenas à dramática redução da presença do Estado na economia, mas também estava dando um recado que os direitos trabalhistas iriam ser dizimados. Como realmente o fez, em boa parte.

      Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que é quem dá as cartas realmente no processo do Brasil), quer mais e precisa extrair mais do país. Estão destruindo direitos, enfraquecendo os sindicatos, entregando patrimônio, fatiando a Petrobrás, estão tentando desmontar o setor público e acabando com direitos históricos dos servidores. A destruição de direitos e da pouca democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, estão colocando o Brasil na mesma situação da Europa no fim do século 19. A partir da aprovação da Reforma Trabalhista de 2017, o Brasil assistiu ao maior ataque da história contra a CLT: foram alterados mais de cem pontos nas leis trabalhistas, trazendo, entre outras violências, o trabalho intermitente, o trabalho parcial, as terceirizações para as atividades fim, a exposição de trabalhadoras grávidas a ambientes insalubres de trabalho.

     Bolsonaro vem cumprindo, em dois anos de governo, promessa feita nos Estados Unidos, em jantar com representantes da extrema-direita, de que teria chegado ao poder para levar adiante um projeto de destruição nacional. “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o povo. Nós temos que desconstruir muita coisa”, afirmou em 18/03/2019, na sede da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), em Washington.  Esse cenário abriu as portas para uma generalização de formas de trabalho cada vez mais precárias, apartadas quase por completo de qualquer garantia de direitos. Fatores que agravam imensamente a superexploração do trabalho no Brasil.

     A superexploração da força de trabalho na periferia capitalista, na medida em que transfere maiores quantidade de valor para os países imperialistas, exerce uma importante funcionalidade na engrenagem capitalista internacional. Portanto, o sistema capitalista internacional não suporta melhorias das condições de vida do povo, mesmo que superficiais. Um exemplo recente: a Lei de Partilha definiu em 2010 que uma boa parte da renda petroleira do pré-sal iria para o povo brasileiro, através de investimentos em educação e saúde públicas. Este foi um dos fatores que levou o imperialismo a organizar um golpe de Estado no país, instalar o horror ultraneoliberal e colocar a extrema direita fascista no poder.

                                                                                             *Economista. 26.01.21.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Conjuntura nacional em tempos de fúria

 

                                                                                

                                                                *José Álvaro de Lima Cardoso                                                                                  

     Recentemente a montadora Ford anunciou que encerrará a produção de veículos no Brasil em 2021. Apenas o Centro de Desenvolvimento de Produto, na Bahia, o Campo de Provas e sua sede regional, ambos em São Paulo, permanecerão funcionando. A decisão deve implicar no fechamento de cerca de 5.000 postos de trabalho. Uma segunda notícia importante para a análise da economia brasileira foi a de que o Banco do Brasil irá fechar no país 361 unidades, sendo 112 agências, 7 escritórios e 242 postos de atendimento. Ao mesmo tempo o banco lançou dois planos de “demissão voluntária”, com estimativa de desligamento de 5 mil trabalhadores da ativa. Segundo o BB, o fechamento das unidades vai resultar em uma redução de gastos de R$ 353 milhões neste ano e R$ 2,7 bilhões até 2025.

     São notícias que traduzem o clima do Brasil nesses tempos de fúria e que dão o tom de uma análise de cenários para 2021. As duas informações sintetizam elementos muito atuais como: desmonte do Estado, desemprego e precarização, desemprego industrial, desindustrialização, aumento da exploração dos trabalhadores, desmonte das estatais, privatização, reprimarização da pauta exportadora. Bolsonaro e Paulo Guedes praticamente aplaudiram o anúncio da Ford. Além de não atribuírem nenhuma importância à indústria, o emprego numa montadora é a antítese do que os dois membros do governo imaginam em termos de mercado de trabalho. No seu imaginário o emprego deve ter salário miserável, informal, de baixa qualidade.

     Emprego industrial depende de projeto estratégico de futuro. Produção e competividade industrial pressupõem um mínimo de soberania e não uma perspectiva subalterna no cenário internacional, que é o que o governo busca, na prática. Não tenhamos dúvidas: o fechamento de unidades do BB e o desligamento de funcionários, faz parte do ajuste do banco para a privatização. Se o governo irá conseguir privatizar no curto prazo, é outra história. Mas é evidente que as ações anunciadas no dia 11 visam preparar a empresa para entregar de bandeja ao setor privado. Os grandes grupos que detém condições para adquirir empresas públicas querem uma estrutura enxuta, com menos empregados, e elevado nível de exploração dos trabalhadores.

     Os dados do Ministério da Economia mostram que, em dois anos de governo, Bolsonaro vendeu nove estatais enquanto que, entre 2017 e 2018, Temer (outro funcionário do imperialismo) conseguiu passar adiante 19. Para 2021, estão previstas nove privatizações, com destaque para Correios e Eletrobras. Para alívio dos brasileiros, por várias razões, nos dois primeiros anos o governo não conseguiu avançar significativamente na agenda das privatizações.  As dificuldades do governo ficaram bem evidentes no processo do BB. A proposta do Banco do Brasil de fechar 112 agências e desligar 5 mil funcionários abriu uma crise no governo e levou Bolsonaro a demitir o presidente do banco, pelo desgaste provocado com o anúncio, num momento delicado, em que cresce rapidamente a repugnância ao presidente ilegítimo.  

     A taxa de desocupação do país no 3° trimestre de 2020 foi de 14,6%, a mais alta da série histórica iniciada em 2012. O contingente de ocupados reduziu para 82,5 milhões de pessoas, e o nível de ocupação foi de 47,1%. O número de pessoas com carteira assinada caiu 2,6% no terceiro trimestre frente ao anterior, com perda de 790 mil postos. A taxa de informalidade, de 38,4%, representa 31,6 milhões de pessoas. Para reduzir pelo menos um pouco a taxa de desemprego e absorver a juventude que ingressa no mercado o país precisaria gerar muito milhões de empregos neste ano.

     Em novembro de 2020, segundo o IBGE, a produção industrial aumentou 1,2%, e frente ao mesmo período do ano anterior, novembro expandiu 2,8%. Porém, no acumulado jan/nov a perda da produção industrial é de -5,5%.  A categoria Bens Intermediários, que forma o núcleo do sistema industrial, está a dois meses praticamente estagnada. Bens intermediários são bens manufaturados ou matérias-primas empregados na produção de outros bens intermediários ou de produtos finais. Por exemplo, bobina de aço, que é produzida pelas siderúrgicas, que é considerada um bem intermediário na fabricação de um automóvel. Já há notícias de falta de muitos insumos que este macrossetor produz. Conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI), os níveis de estoque estão reduzidos em 93% na maioria dos ramos industriais, o que traz riscos de ruptura nas cadeias de fornecimento, podendo levar a pressões de custos. 

     Com o fim da Renda Emergencial, com a evolução do desemprego e o conjunto de trapalhadas na vacinação da população contra a Covid-19, a situação da indústria pode se agravar de forma inusitada. O que pode garantir a industrialização de um país é a solidez do mercado de massas, ou seja, da capacidade da população consumir, articuladas com políticas tecnológicas e de inovação. A partir do golpe, o mercado interno vem sendo sistematicamente destruído pelo desemprego, empobrecimento da população, precarização do trabalho, aprofundamento da desindustrialização, etc. Todo esse processo, que foi amplamente aprofundado com Bolsonaro, afeta diretamente a produção industrial interna.

     Não existe investimentos em inovação sem firme e proativa coordenação estatal. Desde 2016, a partir do golpe que alçou Temer à presidência, o orçamento de Ciência e Tecnologia, tão fundamental para a indústria e para o país, foi simplesmente liquidado. É uma firme determinação dos golpistas impedir que o Brasil invista em ciência e tecnologia. Afinal, neocolônia não precisa nem de ciência e nem de indústria. Segundo o Boletim da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), no ranking de complexidade econômica nas exportações, depois do Brasil ter ocupado a 25ª posição em 1995, os dados mais recentes, de 2018, mostram que o país está na 49º posição.

     As previsões para o PIB em 2021 estão estimadas em torno dos 3%, percentual que está muito assentado num resultado em boa parte estatístico, ou seja, no fato de que, em 2020, a economia afundou. O número definitivo ainda não está calculado, mas sabe-se que a retração do PIB no ano passado foi de, pelo menos, 4,5%.

     O desmonte da economia brasileira, causado pelo golpe, levou a que em apenas 3 anos, a porcentagem da população afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda tenha aumentado em 13%. Segundo o IBGE, em 2016, o número de pessoas que ingeriam menos calorias do que o necessário para uma vida saudável era de 37,5 milhões no Brasil, e saltou para 43,1 milhões em 2019. Ou seja, o Brasil tem mais de 20% de sua população em insegurança alimentar (mesmo sendo o país o segundo maior produtor agrícola do mundo). A insegurança alimentar grave, em que as pessoas relataram chegar a passar fome, atingiu 4,6% dos domicílios brasileiros, o equivalente a 3,1 milhões de lares, em 2017-2018. Esse percentual significa que 10,3 milhões de pessoas residem em domicílios nessa situação. É um número impressionante, equivalente à 3 vezes a população do vizinho Uruguai.

      O detalhe é que essas informações de aumento da insegurança alimentar são relativas a um período anterior a 2020, ou seja, de antes da pandemia. Estamos em janeiro de 2021, no qual o Auxílio Emergencial acabou e, portanto, mais de 60 milhões de brasileiros estão sem aquela renda. Ou seja, nenhum auxílio, num contexto no qual a taxa de desemprego explodiu. 

      O número de famílias em extrema pobreza cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único para programas sociais do governo federal) superou a casa de 14 milhões e alcançou o maior número desde o final de 2014. Segundo dados do Ministério da Cidadania, esse total de famílias equivale a cerca de 39,9 milhões de pessoas na miséria no Brasil. São consideradas famílias de baixa renda aquelas que têm renda de até R$ 89 por pessoa (renda per capita). Aqui não estamos tratando de pobres, mas de miseráveis.  

     Nessa bomba-relógio, atuam simultaneamente: a) políticas do golpe; b) crise econômica mundial; c) efeitos da pandemia, na vigência do pior governo da história. Uma retomada da miséria nessa velocidade é efeito direto do golpe de 2016, combinado com a crise econômica estrutural. De parte do governo não se vê um plano, uma estratégia, para enfrentar crise dessa magnitude. Pode ser que tirem um coelho da cartola. Mas até o momento não se vê nada sendo providenciado. Me refiro aqui à estratégia de política econômica, não da estratégia de repressão, para eventuais revoltas da população. Esta, certamente as forças armadas e auxiliares já têm montada.

 

                                                                                   *Economista 18.01.21.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Verdades simples sobre políticas neoliberais

 

                                                                        *José Álvaro de Lima Cardoso

                                                                                  

     Nenhum dos problemas econômicos e sociais importantes do Brasil atual poderá ser resolvido pelas políticas defendidas por Bolsonaro e Paulo Guedes. Pelo contrário, as políticas ditas ultra neoliberais estão agravando todos os problemas do Brasil. Vamos lembrar o que foi a primeira grande onda neoliberal do Brasil, nos tempos de Fernando Henrique Cardoso. Com este cidadão na presidência o Brasil teve que recorrer três vezes ao FMI, completamente sem recursos para pagar os compromissos relativos à dívida pública. A política de FHC terminou de desmantelar o país em várias áreas: a taxa de desemprego disparou, direitos trabalhistas foram liquidados e venderam, a preço de banana, estatais fundamentais para o país.

    Já naquele período ficou evidente que os pressupostos da política neoliberal estavam errados. Por exemplo a ideia de que tudo que é público é pior do que o existente no setor privado. E, sendo assim, tem que privatizar o que for possível, empresas, estruturas públicas, organizações. Ou o pressuposto de que tem que acabar com o que for possível de direitos trabalhistas e sociais, pois assim as empresas irão voltar a investir e a economia irá retomar. A turma que raciocina com base em dogmas insiste em querer contrariar os fatos: quando o emprego e a formalização do trabalho expandiam no Brasil (entre 2004 e 2014), o Brasil estava entre os primeiros países do mundo (juntamente com EUA e China) na recepção de Investimentos Externos Diretos.

      Um dos problemas dramáticos dos governos alçados ao poder através de golpes de Estado, portanto, totalmente ilegítimos, é a incapacidade de retomar o caminho do crescimento. Aqui no Brasil no período anterior ao golpe de 2016, dizia-se que era só tirar a presidente Dilma que os investimentos e o crescimento voltariam como num passe de mágica. Há uma monumental crise caracterizada por baixo crescimento praticamente no mundo todo. Nos países onde houve golpes recentes, no entanto, a retomada do crescimento tem uma dificuldade adicional que é a total ausência de credibilidade dos governos. Bolsonaro é fruto de golpe combinado com a fraude eleitoral de 2018.

     No caso do Brasil a situação é agravada pela total incompetência do núcleo duro de poder, para qualquer ação política eficaz. Os quadros do governo são um verdadeiro show de horrores. Um dos motivos é o de que Bolsonaro é uma improvisação. Ele não era o candidato dos golpistas. Mas como ficaram sem candidato viável em 2018, tiveram que apoiar Bolsonaro, um político de extrema direita, com apagada atuação parlamentar, apesar de quase 30 anos exercendo a função de deputado.

     As políticas desenvolvidas por este governo são completamente anti crescimento. Desde o golpe eles veem destruindo o mercado consumidor interno com uma série de medidas, aumentando o desemprego e a precarização e levando os indicadores de pobreza a explodirem. A chegada da Covid-19, claro, potencializou enormemente essas tendências. É claro que o PIB não irá crescer, com o aumento do número de pessoas que passam fome, e com a entrega das riquezas nacionais, o mais rápido que podem, para os capitais estrangeiros.

      O ataque aos direitos trabalhistas nos países subdesenvolvidos, assim como a entrega das riquezas, procura aumentar a transferência de riqueza da periferia para o centro capitalista, para ajudar a suavizar, para os países ricos, a maior crise da história do sistema. Esse tipo de formulação pode soar um pouco abstrata. Por isso, para ficar mais claro, é bom nos fixarmos, por exemplo, no caso concreto da Eletrobrás, no qual o governo de aloprados quer entregar de mão beijada um patrimônio estratégico, que gera bilhões de lucro líquido para o governo, todo ano.

     As privatizações, assim como o conjunto do programa de guerra contra o povo não são defendidos somente por Bolsonaro. Este programa é ainda mais da direita tradicional formada pelos golpistas de 2016, que são os mesmos fraudadores de 2018. Não nos deixemos enganar, Bolsonaro está no poder porque a direita tradicional o colocou lá, mas o programa econômico é o mesmo.

     Com o conjunto de políticas previstas no programa de guerra, que representa um verdadeiro lança-chamas contra a população trabalhadora, o país só conseguiria crescer se houvesse uma conjuntura internacional muito específica, na qual o mundo crescesse a taxas vigorosas e estivesse ingressando na economia brasileira generosas somas de capital internacional para investimentos. Mas o cenário é o oposto, as empresas estão saindo de países onde a rentabilidade cai, mesmo com subsídios públicos, como no caso da Ford. Além disso, o mundo vive hoje o risco de mais uma grande recessão global.

     A fórmula aplicada por Paulo Guedes (chamada de ultraneoliberalismo) não funcionou em nenhum lugar do mundo. Claro, me refiro ao ponto de vista dos interesses do país. Evidentemente que funciona para os grandes capitalistas. Onde foi aplicada o crescimento estancou, o desemprego aumentou e o patrimônio público foi dilapidado.  Para os que prescrevem a fórmula para os países atrasados (e que eles mesmos não seguem), funciona perfeitamente. Um exemplo: o Brasil perde sistematicamente posições no ranking de complexidade econômica nas exportações (depois de ter ocupado a 25ª posição, pelos dados mais recentes, de 2018, mostram que o país está na 49º posição), interessa diretamente à países como China, EUA, Alemanha, França, etc. Estes são países que dominam a indústria e, portanto, querem menos concorrência possível. 

     Os governos do golpe (Temer e Bolsonaro), que são os mais entreguistas da história do Brasil, não tem interesse e nem proposta para resolver nenhum grande problema nacional. Bolsonaro e Guedes, e toda a turma, são funcionários do imperialismo. Foram colocados ali para vender patrimônio nacional a preço de banana, destruir as estruturas de atendimento ao povo pobre. Estão ali para devastar o país a serviço dos países imperialistas, que promoveram o golpe no Brasil.

     Na fase atual do capitalismo, a financeira, as chamadas operações fictícias, especulativas, se tornam mais importantes que a própria produção real de riqueza. Há um descolamento total entre a esfera real de produção de riqueza, e a esfera financeira, do dinheiro. Isto significa que o volume de dinheiro e de papeis circulando na economia mundial é muito maior do que a riqueza real existente.

     Como um dos frutos do golpe, o Brasil talvez seja o país subdesenvolvido mais exposto às atuais turbulências mundiais. A dureza com que a crise financeira tem se manifestado no país revela o quanto está vulnerável às crises mundiais. É muito possível que a trajetória da dívida pública tenha acelerado essa vulnerabilidade da economia brasileira. Até outubro última, a despesa do governo com juros da dívida pública tinha somado R$ 350 bilhões em 12 meses, equivalente a 4,96% do PIB. Como o sistema da dívida é também político e cultural, ninguém questiona os 5% do PIB gasto com 20.000 famílias.

     Esta é diferença entre os gastos com a dívida pública e os gastos com o enfrentamento da pandemia. A renda emergencial e outros gastos com a pandemia (que chegou a R$ 509 bilhões) ajudou a tirar da fome mais de 60 milhões de brasileiros. Os quase R$ 350, bilhões de reais pagos aos credores da dívida (em 12 meses até outubro) engordam cerca de 20.000 rentistas, sendo que boa parte nem ao menos mora no Brasil. 

     No Brasil, ao mesmo tempo em que os governantes são bastante avessos em socorrer o pobre, até nas situações mais extremas, para a burguesia nunca falta dinheiro do Estado. Segundo Maria Lúcia Fattorelli, da Auditoria Cidadão da Dívida, os rentistas contam atualmente com um “colchão de liquidez”, para ficarem mais tranquilos. São mais de R$ 4 trilhões em caixa à disposição dos grandes capitalistas.  

      Tudo indica que a crise que temos assistido ao nível mundial seja apenas o começo de um processo que tende a ser cada vez mais dramático nos próximos anos. Não se sabe exatamente quais países sobreviverão e como funcionará uma possível nova ordem econômica internacional. Uma conjuntura difícil como essa, somada à um governo de aloprados torna todo esse processo ainda mais difícil.

 

                                                                                                 *Economista. 15.01.21

sábado, 9 de janeiro de 2021

A bomba-relógio na economia brasileira

 

                                                                             *José Álvaro de Lima Cardoso

 

     Corriqueiramente matérias jornalísticas relatam a queda dos valores das ações como se fosse o fim do mundo. Mas as coisas não acontecem dessa forma. Não é a situação das bolsas de valores, que regra geral concentram as grandes empresas, dos investimentos financeiros, que melhor ilustram a situação da economia política. Especialmente considerando que apenas pouco mais de 3 milhões de brasileiros são investidores da bolsa (não representa 2% da população). É a garantia de uma vida razoável para a maioria da população do pais o grande parâmetro de eficiência da política econômica. 

     Um exemplo disso é que, mesmo com muitos altos e baixos, a Bolsa brasileira fechou o ano de pandemia, no azul. Em 2020, houve alta de 2,9%. Isso mostra que no Brasil a bolsa de valores, que a mídia dá tanta importância, fechou no azul naquele que foi, seguramente, um dos piores anos da história da economia brasileira. E um dos anos mais terríveis para a população brasileira. Os maiores ganhos na bolsa foram registrados nos Estados Unidos, com a Bolsa de tecnologia Nasdaq em uma impressionante alta de 42%, e o índice S&P 500, que reúne as 500 maiores empresas de capital aberto negociadas no mercado americano, com valorização de 15% no ano.

     Mas o fato é que se houvesse uma conexão da bolsa de valores com a economia real, as ações deveriam ter despencado em milhares por cento, resultado direto do golpe de 2016. Afinal o Brasil está ingressando no sétimo ano seguido de recessão ou estagnação, e a economia terminou de afundar em 2020, com queda do PIB de, no mínimo, 4%.  

     O desmonte da economia brasileira decorrente desse processo levou a que, em apenas 3 anos, a porcentagem da população brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda tenha aumentado em 13%. Segundo o IBGE, em 2016, o número de pessoas que ingeriam menos calorias do que o necessário para uma vida saudável era de 37,5 milhões no Brasil, número que subiu para 43,1 milhões em 2019. Ou seja, o Brasil tem mais de 20% de sua população em insegurança alimentar (sendo o segundo maior produtor agrícola do mundo). Segundo a mesma pesquisa, a insegurança alimentar grave, em que as pessoas relatam que estão passando fome, atingiu 4,6% dos domicílios brasileiros, o equivalente a 3,1 milhões de lares, em 2017-2018. Esse percentual significa que 10,3 milhões de pessoas residem em casas que estão nessa situação.

     O detalhe tenebroso é que essas informações registram um período anterior à pandemia. A partir deste mês de janeiro já não tem mais Auxílio Emergencial e, portanto, cerca de 60 milhões de brasileiros ficarão sem nenhuma renda. Nem 600 nem 300, nada de auxílio num contexto no qual a taxa de desemprego explodiu.  

      O número de famílias em extrema pobreza cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único para programas sociais do governo federal) superou a casa de 14 milhões e alcançou o maior número desde o final de 2014. Segundo dados do Ministério da Cidadania, esse total de famílias equivale a cerca de 39,9 milhões de pessoas na miséria no Brasil. São consideradas famílias de baixa renda aquelas que têm renda de até R$ 89 por pessoa (renda per capita).

     Para essa que é uma verdadeira bomba relógio, atuam simultaneamente: a) políticas do golpe de 2016; b) crise econômica mundial; c) pandemia.  De parte do governo não há um plano, uma estratégia, para enfrentar uma crise dessa magnitude. Pode ser que tirem um coelho da cartola. Mas até o momento não se vê nada sendo providenciado. Me refiro, claro, a uma estratégia de política econômica, para o enfrentamento da fome e do desemprego, e não da estratégia de repressão, caso haja reação (essa certamente já está montada).

     Como se observa nos países onde ocorreu o golpe, sempre com adaptações às condições locais, o imperialismo não tem outra proposta para enfrentar a crise mundial de sobreprodução, fora a receita neoliberal, que vem sendo aplicada deste o início da década de 1980. Privatizações, destruição de forças produtivas e liquidação dos direitos. O ataque aos direitos dos países subdesenvolvidos, assim como as suas riquezas, visa aumentar a transferência de riqueza da periferia para o centro capitalista, para enfrentar a maior crise da história do sistema.

     O tipo de formulação acima pode soar um pouco abstrata. Por isso, é bom se fixar no exemplo concreto da Eletrobrás, empresa que o governo ultra entreguista de Bolsonaro quer despachar:

1.Empresa gerou R$ 30 bilhões de lucro líquido, de 2018 até o 2º trimestre de 2020;

2. As empresas que comprarem a Eletrobrás não construirão nada e nem deverão contratar ninguém. Pelo contrário, pegarão o patrimônio enxuto e com investimentos feitos anteriormente como sempre ocorre nas privatizações;

3.Na conversão de empresa estatal para privada, o aumento automático da tarifa entra limpo no seu caixa, puro lucro;

4. Possui entre suas 47 hidrelétricas as melhores geradoras de energia do país, incluindo as de Tucuruí e as da Bacia do São Francisco. Domina 31% do setor elétrico brasileiro e possui 71.000 Km de linhas de transmissão de energia, o que corresponde à praticamente a metade da extensão dessa rede em nosso país;

5. Atua nos segmentos de geração e transmissão, mas não tem distribuidoras. Tudo o que produz é para ser vendido a quem vai colocar a energia dentro das casas das pessoas e cobrar por esse serviço;

6. O governo pretende realizar a privatização da Eletrobrás após uma série de investimentos públicos no setor. Provavelmente, muitos dos investimentos que foram feitos em estações e linhas vão aparecer pós-privatização como se fosse uma grande obra do setor privado;

     As políticas neoliberais não servem para fazer a economia funcionar, mas o imperialismo não tem outra política que a substitua. Por isso todas as manobras políticas, os golpes de Estado, o apoio a extrema direita (como no Brasil em 2018 na fraude eleitoral que elegeu Bolsonaro), visam aprofundar as políticas neoliberais.

     É claro que o PIB não irá crescer com o aumento do número de pessoas que passam fome, e com a entrega das riquezas nacionais, o mais rápido que podem, para os capitais estrangeiros, a preços de banana. Está na mira das privatizações o Sistema Eletrobrás, Petrobrás, Correios, Banco do Brasil, CEF.  Além das privatizações significarem demissões, muitas vezes em massa, suas estratégias serão colocadas a serviço de interesses dos seus compradores, regra geral, grandes multinacionais.

     Não nos enganemos. É fundamental saber que as privatizações, assim como o conjunto do programa de guerra contra o povo não é só de Bolsonaro. Este programa é ainda mais típico da direita tradicional formado pelos políticos que agora posam de defensores da “democracia” contra o “fascismo”. Estes são os golpistas de 2016, os fraudadores de 2018, e os que querem arrancar o couro da população através de uma política econômica a serviço do sistema financeiro internacional.    

     Com esse conjunto de políticas, que representa um verdadeiro lança- chamas sobre a população trabalhadora, o país só conseguiria crescer se houvesse uma conjuntura internacional muito específica, na qual o mundo crescesse a taxas vigorosas e estivesse ingressando na economia brasileira generosas somas de capital internacional para investimentos. Impressiona o nível de instabilidade nos mercados financeiros, de ações e de câmbio, mundo afora, durante boa parte de todo o ano passado. A tremenda instabilidade nos mercados é a manifestação da doença, uma espécie de febre, que alerta para o estado da infecção. A doença mesmo, o fundamento de toda a turbulência é a própria crise do capitalismo.

     Não são as constantes asneiras ditas por Bolsonaro que fazem os capitais estrangeiros sair em nível recorde do país e sim a instabilidade que uma política de guerra contra a população pode trazer. Tudo indica que a crise que temos assistido ao nível mundial seja apenas o começo de um processo que tende a ser cada vez mais dramático. Há uma propensão da crise se desenvolver em forma de espiral, ou seja, realizar estragos cada vez mais profundos e abrangentes. A crise é estrutural e está relacionada com os fundamentos do sistema capitalista ao nível internacional. É claro que um governo ilegítimo, inepto e entreguista, fruto de um golpe de Estado, torna as coisas ainda mais difíceis.

 

                                                                                             *Economista. 09.01.21

 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O principal êxito do golpe de 2016

 

*José Álvaro de Lima Cardoso

 

     Há análises que avaliam os prejuízos do golpe de Estado no Brasil exclusivamente no campo da democracia formal e dos direitos sociais e trabalhistas. De fato, a destruição de direitos a partir de 2016 foi realizada em escala industrial. Direitos sociais fruto de lutas seculares (como a previdência social) foram moídos em menos de cinco anos pelos governos golpistas. Além disso, os escassos espaços democráticos que existiam, foram liquidados. O Brasil de hoje tem no máximo um arremedo de democracia.

     É inegável, porém, que os golpistas foram extremamente exitosos também num dos seus objetivos centrais, que foi quebrar a espinha dorsal da economia brasileira. Segundo estudo da consultoria britânica CEBR, que analisa as perspectivas da economia global, em 2021 o Brasil deverá ser ultrapassado pela Austrália e, assim, deve terminar o ano de 2021 como a 13ª maior potência econômica mundial.

     Pelo que foi divulgado até agora, o estudo tem limitações importantes, principalmente sobre as causas do baixo crescimento da economia brasileira, que ignora, por exemplo, os efeitos do golpe de 2016. Mas, mesmo com limitações, o estudo tem sua importância porque, com a mesma metodologia, apontou em 2011 o Brasil como a sexta maior economia do mundo à frente do Reino Unido – ou seja, o estudo permite comparação com a própria economia brasileira no período recente. À época se dizia, inclusive, que se o Brasil mantivesse o seu ritmo de crescimento, rapidamente iria ultrapassar a economia do Reino Unido, posicionada no quinto lugar naquela ocasião.

     Quanto se discute política econômica o importante é saber se, em qualquer país, ela garante o bem-estar da população. O grande parâmetro para saber se uma política econômica, de um determinado país, é adequada, é saber se resolve os problemas econômicos principais do povo. Para medir a eficácia de uma economia, tem que saber como os trabalhadores (95% ou mais da população) estão vivendo. Não é a situação das bolsas de valores, das grandes empresas, dos investimentos financeiros, etc.: é a garantia de uma vida razoável para a população do pais o grande parâmetro de eficiência da política econômica.  Os EUA, inclusive, são o exemplo da anti economia política. É a maior economia do mundo e a miséria é crescente.   

     Com a habitual e impressionante superficialidade, uma parte da mídia comercial no Brasil atribui a instabilidade da economia brasileira às idiotices que Bolsonaro e sua equipe repetem, quase que diuturnamente. Mesmo reconhecendo o absurdo das mesmas, sabe-se que essa não é a questão essencial no comportamento da economia. O problema localiza-se nos fundamentos da economia brasileira e mundial.

     Por exemplo, a economia mundial está atravessando uma crise estrutural de sobreprodução, ou seja, de excesso de mercadorias em relação à capacidade de consumo da sociedade. O sistema não consegue manter a lucratividade do capital, com a quantidade de forças produtivas existentes. Torna-se necessário destruir capital para recuperar os níveis de produtividade. A crise de sobreprodução decorre de uma contradição central no capitalismo que é, de um lado, um grande desenvolvimento das forças produtivas e, de outros, relações sociais de produção restritivas, que impedem o pleno desenvolvimento das forças produtivas, baseados na propriedade privada dos meios de produção.

      O imperialismo não tem outra proposta para enfrentar a crise mundial de sobreprodução, fora as privatizações, destruição de forças produtivas (tanto na periferia, quanto no centro capitalista), e liquidação dos direitos. Além de atacar, claro, as condições de vida e sobrevivência da população em geral. Como o imperialismo não tem outra política que substitua essa, todas as manobras políticas, os golpes de Estado, o apoio a extrema direita (como no Brasil em 2018 na fraude eleitoral que elegeu Bolsonaro), visam criar as condições para aprofundar as políticas neoliberais praticadas. Vimos o que aconteceu no Brasil em 2016: interromperam uma sucessão de governos nacionalistas, moderados e negociadores, e que estavam controlando a inflação, reduzindo o desemprego e distribuindo a renda discretamente. Como a crise mundial se agravou, tornou-se necessário, para sobrevivência do capital, aumentarem os níveis de exploração da classe trabalhadora no mundo todo.

     O país não cresce e nem irá crescer porque as políticas desenvolvidas por este governo são anti crescimento. Por exemplo, desde o golpe destruíram o mercado consumidor interno com uma série de medidas, principalmente aumentando o desemprego e a precarização e levando os indicadores de pobreza a explodirem. A chegada da Covid-19, claro, potencializou enormemente essa tendência.

     Como o PIB do país (especialmente o per capita) irá crescer, se aumenta o número de pessoas que passam fome, e entregam as riquezas nacionais, o mais rápido que podem, para os capitais estrangeiros, a preços de banana? Como o país irá crescer se congelaram os gastos com a população por 20 anos, através da Emenda Constitucional 95, a chamada Emenda da Morte? Nem países que perderam guerras mundiais aceitaram assinar leis dessa natureza, que impedem o país de fazer políticas públicas. De 2017 para cá, Educação e Saúde perderam bilhões em investimentos (só em 2019 o orçamento da Saúde perdeu R$ 19 bilhões).

     É muito difícil um país crescer, se as leis trabalhistas são destruídas e o mercado de trabalho é desarticulado. Um dos efeitos das políticas do golpe são 28 milhões de trabalhadores subutilizados (desempregados, subocupados, desalentados ou na inatividade por falta condições), o que afeta diretamente o mercado consumidor. Após uns cinquenta anos, o Brasil caminha para sair do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo. Há uma relação direta entre crescimento, soberania nacional e direitos da população. Uma parte das conquistas da sociedade custa dinheiro e tem que ser financiada com recursos públicos que, em parte, são arrecadados com as riquezas que o país possui. Se são vendidos ativos ligados ao setor de petróleo por uma fração do efetivo valor, fica difícil sobrar recursos para financiar a Seguridade Social.

     Com esse conjunto de políticas, que representa um verdadeiro lança chamas contra a população trabalhadora, o país só conseguiria crescer se houvesse uma conjuntura internacional muito específica, na qual o mundo estivesse crescendo a taxas vigorosas e estivesse ingressando na economia generosas somas de capital internacional para investimentos. Mas o cenário é o oposto, o mundo vive hoje o risco de uma grande recessão global. Dentre outras razões porque o mercado imobiliário dos EUA está atravessando uma bolha, como aconteceu em 2007. Há estimativas que os preços das ações de empresas globais tenham tido perdas entre 30% e 40% no ano passado.

    O golpe de 2016 teve vários objetivos, até em função do fato de que os grupos que deles participaram representam diferentes interesses. Mas parece inegável que um dos objetivos do setor mais forte entre os golpistas (ligado ao imperialismo estadunidense), foi tirar o Brasil de uma eventual rota do crescimento. O Brasil vinha crescendo a taxas razoáveis, com importante (apesar de limitado), processo de distribuição de renda. Estava tentando reconstituir sua indústria e havia recentemente anunciado a maior descoberta de petróleo do milênio. Além disso, o Brasil estava se aproximando dos maiores inimigos dos EUA, via BRICS. Esta soma de fatores certamente levou os EUA a organizarem mais um golpe de Estado no Brasil. Contando para isso, com o apoio interno do que há de pior no país, em todos os sentidos, na política e no mundo empresarial.

 

                                                                                                *Economista. 04.01.21.