segunda-feira, 29 de março de 2021

A grande cilada das privatizações e o desconhecimento da história

 

                                                                                    *José Álvaro de Lima Cardoso

     O processo de privatizações, especialmente realizado num momento como este, de grave crise econômica e crise sanitária é, antes de tudo a possibilidade de as empresas comprarem barato ativos estratégicos, extremamente eficientes e rentáveis como Banco do Brasil, Correios, refinarias de petróleo e outros. Não pode haver ilusões: “fazer dinheiro” é o objetivo central desses processos de privatização, especialmente em países subdesenvolvidos. Por isso, esses processos têm que ser enrustidos, sem transparência. Para justificar a entrega de ativos públicos fundamentais para a população, ao capital, os governantes têm que mentir descaradamente. No caso do Brasil, o problema é agravado porque a grande mídia é oligopolizada e defende as privatizações, dando visibilidade para apenas uma posição em relação ao assunto.

     O maior obstáculo para as privatizações de setores estratégicos da economia são os trabalhadores organizados, porque estes têm informação das empresas. Normalmente, num processo de privatização, a esmagadora maioria da população é enganada, como vimos isso na criminosa privatização do governo Fernando Henrique Cardoso. Se gastou uma fábula de dinheiro público para fazer propaganda contra as estatais e enganar o povo. Dentre as várias mentiras que se conta, uma delas é de que a privatização resolve o problema fiscal do governo. Mas não há saída para o problema fiscal no Brasil, se não se resolve o problema da dívida pública. A meta de arrecadação do governo com a privatização, para o ano passado era de R$ 150 bilhões. O governo conseguiu arrecadar muito menos do que isso. Mas só os gastos com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública chegaram a espantosa cifra de R$ 1.381 trilhão, tendo aumentado R$ 344 bilhões no ano passado, em relação à 2019.

     Um dos objetivos das privatizações é abrir excelentes negócios, para um capitalismo mundialmente em crise. Ou seja, as privatizações são, essencialmente, um mecanismo de solução dos problemas do capital.  Mas a pauta das privatizações, ao contrário da destruição de direitos dos trabalhadores, não unifica o empresariado.

     As estatais são fundamentais para a estabilidade macroeconômica e a garantia dos serviços em setores estratégicos, de qualquer país. A privatização de certas áreas não interessa ao empresariado nacional. Por exemplo, se depender do governo a Eletrobrás será privatizada rapidamente. Sabe-se que se o capital privado assume 100% do fornecimento de energia, a tendência muito forte é aumentar o preço da energia. Isso não interessa à indústria e mesmo ao capital nacional como um todo. Ademais, normalmente quem tem café no bule para comprar as estatais é o capital internacional, ou seja, o grosso dos capitalistas nacionais não irão faturar com as privatizações

      É grande a correlação entre privatização e desnacionalização. Normalmente quem dispõe de recursos para adquirir as empresas públicas, são as grandes empresas imperialistas, com sedes nos governos centrais. Aqui no Brasil quem ainda pode adquirir as estatais são os bancos, que continuam ganhando muito dinheiro. Mas bancos são bancos. A primeira coisa que farão é aumentar as tarifas, independente do setor em que estejam. A desnacionalização da economia apresenta vários riscos: setores estratégicos caem nas mãos de estrangeiros (água e luz, petróleo, por exemplo), aumenta a remessa de lucros (desequilíbrio no balanço de pagamentos), assumem grupos que estão interessados exclusivamente em lucros imediatos, etc.

      Um dos argumentos é que é a privatização é fundamental para aumentar o nível de investimentos no país. Mas esse argumento é cretino, pois o “financiamento” que vem para o país em tempos de privatização é para comprar empresas à preço de bananas.  Investimentos produtivos não se deslocam à países que estão destruindo as leis trabalhistas, destruindo previdência, e liquidando o mercado consumidor interno. Pelo contrário, vejam o que está acontecendo no Brasil. A montadora Ford anunciou que encerrará a produção de veículos no Brasil em 2021. A decisão deve implicar no fechamento de cerca de 5.000 postos de trabalho no país. Privatização só atrai o recurso para comprar o ativo a preços de banana, mais não para investimentos.  

       Privatização significa desemprego, como revelam a experiência mundial e brasileira. As demissões começam antes de entregar o ativo. Vejam o caso do Banco do Brasil, que irá fechar no país 361 unidades, sendo 112 agências, 7 escritórios e 242 postos de atendimento. Ao mesmo tempo o banco lançou dois planos de “demissão voluntária”, com estimativa de desligamento de 5 mil trabalhadores da ativa. Estão preparando o Banco para privatizar, estão fazendo o serviço sujo. Ao mesmo tempo abrem mercados para os bancos estrangeiros e enxugam o banco para o processo de privatização. Detalhe: o lucro líquido do banco no ano passado, com pandemia e tudo, foi de R$ 13,88 bilhões.

      As privatizações são sempre realizadas abaixo do que seria o valor real da empresa, essa é a regra. Por exemplo, a BR Distribuidora, cujo controle acionário foi vendido pela Petrobrás, é a maior distribuidora de derivados de petróleo do país, com cerca de 30% do mercado de combustíveis e lubrificantes. Possui quase oito mil postos de venda e atua em 99 aeroportos. Com o negócio o governo entregou o controle do terceiro maior mercado de combustíveis do planeta, o Brasil, que perde apenas para EUA e China. Isso por cerca de R$ 9,6 bilhões, em torno de US$ 1,6 bilhão (ao câmbio atual). Esse valor, para uma empresa como essa, é dinheiro trocado. O valor de venda da BR Distribuidora (R$ 9,6 bilhões), já foi devolvido em boa parte com o lucro líquido de 2020, de R$ 3,9 bilhões (ano de pandemia). Ou seja, só no primeiro ano de funcionamento com controle privado, o lucro líquido da empresa já cobriu 41% do preço de compra. É um verdadeiro negócio da China para quem comprou o ativo (que não aparece, é uma incógnita, mas tudo indica que foi a Exxon).

      Empresas públicas têm uma função social. Por exemplo, a Caixa Econômica Federal e a Dataprev foram fundamentais na distribuição da Renda Emergencial no período recente. Só foi possível o benefício chegar para uma parte dos beneficiários por causa das estruturas de atendimento público.  Existe o Cadastro Único, o Sistema Único de Saúde e a Caixa Econômica, estruturas que ainda não deu tempo de privatizar. E estas estruturas são sempre fundamentais, especialmente na hora do aperto. O exemplo mais extremo também é o SUS. Governo Bolsonaro está fazendo de tudo para desmontar o SUS, e colocar as empresas dos amigos do governo para atender o setor. Imaginem, neste momento, no qual o Brasil é o centro da pandemia no mundo, em que está havendo um genocídio, caminhando para os 4.000 mortos diários, dependemormosdo setor privado.  

      Uma das falácias dos privatistas é associar privatização com eficiência. Essa é uma das pegadinhas da privatização. Como tem mesmo ineficiências nas empresas públicas (assim como tem na empresa privada) e a vida do povo é muito ruim, muito difícil, eles associam estatais e ineficiência. Mas o fato é: qual a economia mais eficiente do mundo, há décadas? Eficiência traduzida aqui por crescimento da produtividade e do PIB. É a China, disparado!. Pois bem, a China tem 150.000 estatais (55.000 diretamente subordinadas ao governo central. Então, a relação entre estatais e ineficiência é completamente mentirosa, como revelam inúmeros exemplos também aqui no Brasil.

     Enquanto o governo Bolsonaro (o mais ineficiente e lambe botas da história) “quer privatizar tudo”, no mundo está havendo um movimento contrário, de reestatização de serviços de setores importantes, como energia, água e transporte. Desde 2000 quase 900 reestatizações foram feitas em países centrais do capitalismo, como EUA e Alemanha. Ademais, a experiência do Brasil com as privatizações no governo Fernando Henrique Cardoso, seria fundamental recordar porque há um culto ao esquecimento no Brasil.

       As novas gerações são sempre induzidas a desconhecer a história. Em termos gerais o governo FHC destruiu a economia nacional, tornando-a muito mais dependente do exterior e aumentando muito o desemprego e a precarização. Especificamente no que se refere às privatizações, o livro “O Brasil Privatizado”, de Aloysio Biondi (I e II), traz uma listagem completa dos crimes cometidos contra o país naquele governo. Crimes que tendem a serem repetidos agora, em escala mais ampla.

                                                                                                 *Economista.29.03.21

segunda-feira, 22 de março de 2021

O furioso ataque à “nação amiga”

 

                                                                                                   *José Álvaro de Lima Cardoso

     Estamos no sétimo ano seguido de estagnação ou recessão na economia e, a partir de 2016, explodiu a pobreza no país. Isso é fruto direto do golpe, portanto dos efeitos da operação Lava Jato. A Lava Jato foi uma engrenagem fundamental tanto para o impeachment em 2016, quanto para a fraude eleitoral de 2018, dois momentos chaves do golpe. A Lava Jato era propagandeada como a maior operação anticorrupção do mundo, mas ela mesma se revelou um crime de grandes proporções. O caso Watergate (1973), que derrubou o presidente Richard Nixon nos EUA, pode ser considerado discreto, quando comparado com a Lava Jato. Principalmente em termos de impacto na sociedade e na economia. Os envolvidos na Lava Jato praticamente destruíram um país para retirar uma força política do poder, a serviço da maior e mais beligerante potência estrangeira.

     Num dos vazamentos das conversas entre os integrantes da operação, ocorridos mais recentemente, o chefe da operação, Deltan Dallagnol, pronuncia uma frase muito emblemática, praticamente uma síntese da Lava Jato. Em abril de 2018, quando os procuradores souberam do mandato de prisão do ex presidente Lula, Dallagnol comemorou, dizendo: "é um presente da CIA”.  

     A partir da Vaza Jato, em 2019, ficou evidente, fácil de entender, porque não queriam tornar públicos os arquivos da Operação: são confissões de autênticos criminosos. Quando surgiram as denúncias da Vaza Jato, em 2019, num determinado momento, enquanto o país aguardava mais um capítulo da série “The Intercept Brasil – As Mensagens Secretas da Lava Jato”, Sérgio Moro viajou para os Estados Unidos, como Ministro da Justiça e Segurança Pública, sem previsão na agenda, para “fazer visitas técnicas a instituições”. Claro, pego completamente com a boca na botija, foi ouvir orientações dos seus mentores e chefes nos EUA.

     Os prejuízos da Lava Jato no campo da democracia e do Estado Democrático de Direito são incalculáveis. É ilusão achar que a gente ainda vive a democracia “meia boca”, que vigorava antes do golpe. Nem isso existe mais. Lógico, se colocam o presidente mais importante da história do país, na cadeia, sem nenhuma prova, imaginem o que podem fazer com qualquer um de nós?

     Mas não foi só a frágil democracia que foi esfacelada. Conforme estudo recente do DIEESE (IMPLICAÇÕES ECONÔMICAS INTERSETORIAIS DA OPERAÇÃO LAVA JATO) a Operação estadunidense quebrou também a economia brasileira. O estudo mostra que por conta da farsa montada com a Lava Jato, R$ 172,2 bilhões deixaram de ser investidos no País, soma equivalente a 40 vezes os R$ 4,3 bilhões que a Lava Jato informa afirma ter recuperado para os cofres públicos. A Lava Jato, que visava atingir a maior empresa do Brasil e da América Latina, levou a uma crise inusitada no setor de petróleo e gás, e a uma queda drástica da taxa de investimentos. Os estadunidenses quando perceberam que podiam quebrar, além da Petrobrás, o entorno da empresa, não tiveram dúvidas. Petróleo e gás, e construção civil concorrem diretamente com as empresas norte-americanas. Mais tarde fizeram a operação “carne fraca” para pegar a indústria da alimentação.

     A partir do segundo semestre de 2014, há quase seis anos, quando começou a pancadaria para cima da Petrobrás, o Escritório Regional do DIEESE em Santa Catarina, realizou uns 12 ou mais seminários nas mesorregiões catarinenses (são seis), para discutir Petrobrás, Lava Jato e o golpe. Se chamavam:  “Conjuntura econômica nacional: Petrobrás no olho do furacão”.  Era uma batalha de David contra Golias: fazíamos um seminário de tarde toda, com 50 ou 60 pessoas; no mesmo dia à noite a Rede Globo destruía a Petrobrás em 20 minutos de matéria, para cerca de 100 milhões de pessoas. Usando os recursos mais sofisticados de comunicação.

     Nos seminários (realizados principalmente no primeiro semestre de 2015) os dados que divulgávamos, da empresa, eram do seguinte tipo:

● A Petrobrás ultrapassou, em 2014, a norte-americana, EXXON MOBBIL, como a maior produtora de petróleo do mundo, entre as companhias petrolíferas de capital aberto

●O EBITDA (potencial de geração de caixa de uma empresa) do 1S-2015 foi de R$ 41,2 bilhões, 35% superior em relação ao 1S-2014

● Empresa Investe mais de 100 bilhões de reais por ano

● Paga mais de R$ 72 bilhões em impostos para o Brasil

●Opera uma frota de 326 navios, tem 35.000 quilômetros de dutos, mais de 17 bilhões de barris em reservas, 15 refinarias e 134 plataformas de produção de gás e de petróleo

● Aumento de 80% na produção do pré-sal no último ano

● Responde por mais de 10% de todo o investimento brasileiro em 2014

● Tem o maior plano de investimentos em curso no século XXI, feito por uma única corporação: cerca de U$ 200 bilhões de dólares seriam aplicados em exploração e produção entre 2015 e 2019 (um trilhão de reais ao câmbio atual).

● Opera o maior número de plataformas flutuantes de produção do mundo: 110 unidades de produção na costa marítima brasileira (offshore), 45 flutuantes; quatro plataformas do tipo FSO, que apenas armazenam e transferem petróleo

● A participação do setor de Óleo e Gás no PIB do País, que era de apenas 2% em 2000, em 2015 é de 13%

     Com esses seminários, nossa tentava era a de explicar que a operação Lava Jato tinha sido desencadeada por causa destes números e não porque a Petrobrás estivesse quebrada. Mas estava (está) em curso uma guerra híbrida, de força avassaladora, de mentiras e contrainformações, visando tornar a empresa insignificante no jogo internacional do petróleo. E que conta com muitos aliados dentro do Brasil.

     A avaliação que estava por detrás da realização daqueles seminários era a que de a Petrobrás seria o nosso passaporte para o desenvolvimento. Com a descoberta do pré-sal, e com a Lei de Partilha, votada em 2010, a empresa se tornou uma zeladora constitucional e natural, da maior riqueza natural que o povo brasileiro dispõe neste momento, que é o petróleo e o gás, para se construir um projeto de desenvolvimento nacional. 

     Infelizmente, 100% das nossas conclusões nesses seminários estavam corretas. Alguns diziam que a gente estava se dobrando à “teoria da conspiração”. Como se não existisse conspiração no mundo, ou como se os EUA nunca tivessem dado golpes em nenhum país, e fizessem tudo às claras e com as melhores intenções.  Tem um aspecto que é central em toda a operação Lava Jato: a estratégia dos EUA para a América Latina é impedir o surgimento de potências regionais, especialmente em áreas com abundância de recursos naturais, como é o caso do Brasil. O modelo dos norte-americanos, proposto para a região é o de países com Forças Armadas limitadas, incapazes de defender suas riquezas naturais, especialmente o petróleo.

     A partir do anúncio do pré-sal pelo Brasil, em 2006, os EUA reativaram a 4ª Frota Naval, dedicada a policiar o Atlântico Sul e rejeitaram a resolução da ONU que garantia o direito brasileiro às 200 milhas continentais. A proposta dos americanos, e dos entreguistas, sempre foi tirar a Petrobrás do caminho e possibilitar às multinacionais do petróleo a apropriação dos bilionários recursos existentes no pré-sal que, no limite, podem chegar a quantidades próximas à Venezuela e Arábia Saudita. Quando a Petrobrás anunciou o pré-sal, os críticos, bafejados pelas multinacionais do petróleo, diziam que o petróleo naquelas profundidades não teria viabilidade comercial. Chegaria tão caro na superfície, em função do custo de extração, que não teria viabilidade comercial. Hoje os custos de extração do barril do petróleo, do pré-sal, estão a US$ 5, praticamente o custo da Arábia Saudita, que retira petróleo praticamente à flor da terra.

     Muitos observadores não querem dizer o óbvio, por medo (porque se trata dos EUA, o país mais poderoso da Terra), ou senso de autopreservação. Mas o que se sabe é que os Estados Unidos para continuar na condição de potência, depende crescentemente dos recursos naturais da América Latina e, por esta razão, não quer perder o controle político e econômico da Região. Uma das lições do golpe no Brasil é que se a gente quiser ter um país soberano tem que construir as condições geopolíticas e militares para isso. Especialmente quando se trata de um produto para o qual não existe substituto no curto prazo (por mais que isso soe desagradável). 

     A Petrobrás foi o alvo central da operação, porque se trata de petróleo: produto fundamental e maior causador de todos os conflitos bélicos nos últimos 100 ou 150 anos e sem substituto no curto prazo, como fonte de energia e matéria-prima da indústria. Além disso, como já falaram alguns economistas, a Petrobrás não é uma empresa e sim uma nação amiga: é a maior companhia da América Latina, produzia, em 2013, 2,6 milhões de barris de petróleo diários, tinha uma força de trabalho de mais de 100 mil trabalhadores, operava em 25 países, tinha um lucro de R$ 23,6 bilhões e era a 13ª maior companhia de petróleo do mundo no ranking da revista Forbes.

 

                                                                                                     Economista. 22.03.2021.

 

segunda-feira, 15 de março de 2021

O que explica privatizar um porto superavitário, fundamental para o desenvolvimento, e que gera emprego e renda?

  

                                                                                 *José Álvaro de Lima Cardoso

 

No começo de fevereiro último o governo estadual anunciou a extinção da Santa Catarina Parcerias, a SC-Par, empresa estadual que administra os portos de Imbituba e São Francisco do Sul. Ainda que as informações sejam pouco transparentes, segundo o que foi anunciado, a extinção da SC-Par, virá acompanhada da privatização dos dois portos catarinenses que são hoje administrados pelo governo do Estado: São Francisco do Sul e Imbituba.  Ambos os portos são do governo federal, mas administrados por concessão ao governo catarinense.

As medidas do governo catarinense não são fatos isolados. Os portos brasileiros, e toda a complexa estrutura que os coloca em funcionamento, sofrem neste momento, uma intensificação dos ataques. O Projeto de Lei 4.199/2020, novo marco legal da cabotagem, também conhecido como BR do Mar, está para ser votado no Senado Federal. O Projeto tinha sido aprovado em 2020 na Câmara Federal, com muitos protestos de trabalhadores portuários, caminhoneiros e usuários dos portos. A postura do governo federal para a aprovação deste projeto é a mesma que tem em relação às privatizações de outros ativos: aprovar tudo rapidamente, sem debate.

O objetivo do PL “BR do Mar”, argumenta o governo, é aumentar a oferta de serviços de transporte entre os portos brasileiros e a concorrência do setor. Segundo o engenheiro naval e consultor em logística portuária e transporte marítimo Nelson Carlini, o projeto faz abertura da navegação para o capital estrangeiro que significa na prática o abandono da navegação brasileira, e não conduzirá a efeito na indústria e no emprego. Para o engenheiro o chamado BR do Mar, parte de 2 premissas falsas: considera que o principal entrave ao setor é a pequena disponibilidade de navios e pressupõe que o modal está estagnado. Mas, segundo o citado especialista, a cabotagem representa 11% da matriz de transportes brasileira, e tem crescido em média 10% ao ano[1].

O governo Bolsonaro, que tem ministro da Economia de orientação ultra neoliberal, deveria olhar como o sistema funciona no mundo. O modelo de exploração portuária que prevalece no planeta é o Landlord Port (exploração compartilhada público-privado). Esse modelo possui uma Autoridade Portuária (pública, naturalmente), geralmente municipal ou estadual, que tem o papel de fiscalizar e regular a atividade. Este modelo é o que vigora nos portos da Europa (Rotterdam, Bélgica, Hamburgo, etc.), nos EUA (Los Angeles, New York-New Jersey) e Ásia (China, Coréia e Japão). Os portos citados são todos referências mundiais em eficiência, agilidade, sustentabilidade. O Landlord Port é o modelo sob o qual funciona, também, o Porto de São Francisco do Sul.

O marco legal portuário no Brasil estabelece basicamente 3 modelos de exploração do negócio:

1. Exploração de instalações portuárias dentro dos portos organizados, por meio de arrendamentos, precedidos de licitação (Landlord Port). Este é o modelo de todos os portos públicos do Brasil. Especialmente depois da Lei nº 8.630/1933, que possibilitou que os portos públicos fossem transferindo a operação portuária ao setor privado, através de arrendamentos, passando a se ocupar somente da administração do porto e de investimentos em infraestruturas de uso comum no empreendimento;

2. Exploração de Terminais de Uso Privado (TUP), fora dos portos organizados, para movimentação de cargas, mediante autorização do Poder Concedente (Fully Privatized Port). O Porto de Itapoá, que funciona também na Baía da Babitonga, (onde se situa o Porto de São Francisco do Sul), é o terceiro do Brasil em movimentação de cargas, e é um exemplo de TUP bem sucedido;

3. Exploração de instalações portuárias dentro dos portos organizados, mediante autorização a operadores portuários pré-qualificados sem exclusividade sobre o uso das instalações (chamado de Tool Port). Este modelo é o do Porto de Recife, em Pernambuco, por exemplo.

Nos inúmeros aspectos que devem ser levados em conta no debate sobre privatização dos portos catarinenses um deles é a questão do preço. Não há, pelo menos publicamente, uma previsão por qual valor o Porto de São Francisco de Sul seria colocado à venda. Mas é fácil prever de que seria um valor bastante abaixo do seu valor efetivo, como em regra tem sido as privatizações no Brasil. Para efeito de comparação, podemos tomar a BR Distribuidora, cujo controle acionário foi vendido pela Petrobrás, como exemplo recente. É a maior distribuidora de derivados de petróleo do país, com cerca de 30% do mercado de combustíveis e lubrificantes. Possui quase oito mil postos de venda e atua em 99 aeroportos. Com o negócio o governo entregou o controle do terceiro maior mercado de combustíveis do planeta, que perde apenas para EUA e China.

Isso por cerca de R$ 9,6 bilhões, em torno de US$2,5 bilhões (ao câmbio da época, hoje seria menos), uma mixaria considerando o mercado de petróleo e o faturamento da BR Distribuidora. Não se sabe quem qual foi o investidor “estratégico” que comprou a BR Distribuidora. Alguns especialistas neste tipo de mercado acham que foi a SHELL, que teve participação ativa no golpe de 2016 no Brasil. Até 2017 a Petrobrás era a única proprietária da BR, ano em que vendeu 29% das ações. Agora os investidores privados têm a maioria das ações da distribuidora de combustíveis, na prática, a BR foi privatizada.

O valor de venda da BR Distribuidora (R$ 9,6 bilhões), já foi devolvido em boa parte com o lucro líquido de 2020, de R$ 3,9 bilhões. Ou seja, só no primeiro ano de funcionamento com controle privado, o lucro líquido da empresa já cobriu 41% do preço de compra. É um verdadeiro negócio da China. Possivelmente as empresas que adquiriram a BR Distribuidora contaram com crédito público e financiamento facilitado.

Voltando ao Porto de São Francisco do Sul, como foi registrado, não há ainda nenhuma informação pública sobre o seu preço de venda. O mesmo ocorre com o Porto de Imbituba. Mas se para uma BR Distribuidora foram R$ 2,5 bilhões, pode-se imaginar que os valores que serão estabelecidos para os Portos de São Francisco do Sul e Imbituba, serão irrisórios. Mas a questão do preço dos ativos públicos será a menos importante. Existem dezenas de outras razões pelas quais um patrimônio destes não deve ser entregue ao setor privado. O Escritório Regional do DIEESE em Santa Catarina, inclusive, está elaborando, ao longo do março, um estudo, no qual boa parte dessas razões estão sendo elencadas.

                                                                                   

                                                                                              *Economista. 15.03.21


[1] Ver BR do Mar não ajudará indústria nem criará empregos, Jornal Monitor Mercantil, 10/03/2021,

sexta-feira, 5 de março de 2021

A importância de um porto público: o caso de São Francisco do Sul do Sul

 

                                                                                            *José Álvaro de Lima Cardoso

 

     No começo de fevereiro o governo de Santa Catarina anunciou a extinção da Santa Catarina Parcerias, a SC-Par, empresa estadual que administra os portos de Imbituba e São Francisco do Sul do Sul. Ainda que as informações sejam incompletas para o grande público, a medida viria acompanhada da privatização dos dois portos catarinenses que são hoje administrados pelo governo do Estado: São Francisco do Sul do Sul e Imbituba. Ambos os portos são do governo federal, mas se encontram sob concessão do governo catarinense.

     O sistema portuário brasileiro é estratégico sob vários pontos de vistas: econômico, geopolítico, social e militar, com uma costa de 8,5 mil quilômetros navegáveis, - número que sobe para 10.000 km se incluir o Rio Amazonas. Esse sistema gigantesco movimentou em 2020 1,151 bilhão de toneladas (dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - Antaq). Desse total, os Portos Organizados, (assim chamados os portos públicos), movimentaram 391 milhões e os Terminais de Uso Privado (TUPs), 760 milhões de toneladas de produtos. O setor portuário brasileiro responde por mais de 90% das exportações. O modal aquaviário possui um dos menores custos no transporte de cargas no Brasil.

     O Porto de São Francisco do Sul é vital para a economia do município e região. Se estima que sua existência responda por algo em torno de 70% da economia da cidade. O Porto é muito importante também para os demais municípios próximos, que são vários, numa área de elevada densidade demográfica. Apesar das magnificas belezas da Baia da Babitonga e adjacências, o turismo responde por apenas 5% da movimentação econômica do município. Em empregos diretos, são centenas de trabalhadores, operadores portuários, trabalhadores avulsos, caminhoneiros. Além disso, a renda do porto gera milhares de empregos indiretos no comércio e serviços, sejam informais ou formais. Atualmente são algo em torno de 600 os trabalhadores portuários avulsos (TPAs), que abrangem os arrumadores, vigias, conferentes e estivadores que trabalham no porto. Além dos avulsos há trabalhadores de carteira assinada, cerca de 1.000. No total uma média de 3 mil trabalhadores atuando direta e indiretamente na área portuária.

     Em 2020 o porto de São Francisco do Sul do Sul permaneceu na condição de 23º principal porto brasileiro em movimentações e instalações portuárias. Pode não parecer significativo, mas este país-continente chamado Brasil possui um total de 175 instalações portuárias de carga, incluindo portos e terminais marítimos e instalações aquaviárias. O país possui portos ao longo de toda a costa e no interior, possibilitados pelas extensas bacias hidrográficas.

     Além do Porto gerar lucro líquido e receita, tudo indica que há uma relação direta entre a renda gerada pelo Porto e o bem-estar da população, como revelam os dados de São Francisco do Sul do Sul, relativos ao IDH e ao PIB Per Capita, em relação aos demais municípios do entorno, seja em Santa Catarina, seja no Paraná. Se compararmos esses indicadores com os municípios mais próximos à São Francisco do Sul, inclusive os do Paraná, observaremos que São Francisco do Sul do Sul fica em 2º lugar no conjunto, tanto em IDH, quanto em PIB per capita. Não há outra razão para o fenômeno, além do emprego e da renda gerados pelo Porto de São Francisco do Sul. 

     Uma das falácias utilizadas pelos defensores da privatização das empresas públicas é associar privatização com eficiência. Essa é uma das “pegadinhas” da privatização. Como tem mesmo ineficiências nas empresas em geral (públicas e privadas) e a vida do povo é muito ruim, muito difícil, acaba-se associando ineficiência e serviços estatais, como se aquela fosse uma exclusividade deste. A população, que luta para sobreviver, e não tem informação mais detalhada sobre o assunto, tende a cair nesse tipo de discurso mentiroso. Até porque não dispõe do contraponto para melhorar sua análise, visto que a mídia comercial é a favor das privatizações, por princípio.  

     Mas o fato é que, dos 10 portos considerados os mais importantes do mundo, pelo critério de quantidades transportadas, praticamente todos são públicos. Da lista mais recente apenas três não são chineses: Cingapura (Cingapura); Busa (Coreia do Sul) e Roterdã (Holanda). Os 7 portos chineses da lista são propriedade do governo, conforme quase tudo na China. O Porto de Cingapura possui um modelo de administração totalmente público. No porto de Busan, na Coréia do Sul, prevalece o modelo chamado de Landlord Port, no qual cabe à iniciativa privada parte dos serviços como a operação portuária, mas a infraestrutura é pública. A propriedade da terra e a administração do porto são de responsabilidade do poder público. No caso de Roterdã o porto é 100% público e a gestão é feita por uma comissão de executivos.  

     Ou seja, entre os 10 mais importantes portos do mundo, nenhum deles utiliza o sistema inglês, no qual todos os serviços, desde a operação portuária, até a propriedade da terra, são privados. Este último é chamado Private Service Port. Isso significa que, nesse grupo de portos, considerados os mais importantes do mundo por seu alto nível de eficiência, não há nenhum porto privado. No máximo, há soluções híbridas, com a divisão de papeis entre setor público e o privado.

     Entre os portos que são considerados referências de produtividade e governança no mundo todo, nenhum é privado. Os portos que são considerados modelos internacionais são quase todos públicos. O segredo dos seus êxitos, está no hábito do planejamento estratégico, no alto nível de organização e na integração porto/cidade. Normalmente o porto é algo tão significativo para uma cidade ou região, do ponto de vista econômico, cultural, arquitetônico e político, que a integração entre o porto e a cidade tem que ser minuciosamente pensada.  

     Como ocorre em todo processo de privatização de ativos públicos importantes, a prefeitura de São Francisco do Sul do Sul, os representantes sindicais dos trabalhadores, e a população em geral, tem recebido o mínimo de informações. Não é fácil, mesmo, explicar como um porto superavitário, que recebeu investimentos públicos pesados recentemente, que vem melhorando seu desempenho, é fundamental para o orçamento municipal e para o emprego, e que gera lucro, pode ser entregue de mão beijada para o capital privado.

     Não é por acaso que, em São Francisco do Sul do Sul, sindicatos e os setores mais mobilizados da sociedade se movimentam contra a privatização. Quem se mobiliza pressente que a venda do ativo não melhorará as coisas. Como já testemunharam o processo de privatização no Brasil e no mundo, sabem que ela vem apenas para resolver o problema do Capital e não da população como um todo.

     Para um banco que venha comprar o Porto de São Francisco do Sul, o fundamental será o lucro líquido que ele gera, para distribuição aos seus sócios. O porto público tem uma perspectiva muito mais abrangente. Interessa os empregos que gera, a renda que ele aporta na região em que está instalado, a contribuição para a competividade das exportações, sua capacidade de contribuir para o desenvolvimento regional e nacional. Para a população tudo isso é fundamental. Para os tubarões que querem fazer dinheiro rápido, nada disso interessa.

                                                                                                       

                                                                                                        *Economista 05.03.21.