domingo, 27 de outubro de 2013
A
definição do Brasil como alvo de espionagem dos EUA não é de hoje, diz o
historiador e cientista político Moniz Bandeira, em entrevista à "Carta
Maior".
Por Marco Aurélio Weissheimer
Em 2005, o cientista político e historiador Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira apontou em seu livro “Formação do Império Americano”
as práticas de espionagem exercidas pelas agências de inteligência dos
Estados Unidos. Uma prática que, segundo ele, já tem aproximadamente
meio século de existência. Desde os fins dos anos 60, diz Moniz
Bandeira, a coleta de inteligência econômica e informações sobre o
desenvolvimento científico e tecnológico de outros países, adversos e
aliados, tornou-se prioridade do trabalho dessas agências.
Em seu novo livro, “A
Segunda Guerra Fria - Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados
Unidos – Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e Oriente Médio”
(Civilização Brasileira), Moniz Bandeira defende a tese de que os
Estados Unidos continuam a implementar a estratégia da "full spectrum
dominance" (dominação de espectro total) contra a presença da Rússia e
da China naquelas regiões. “As revoltas da Primavera Árabe”, afirma o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que assina o prefácio do livro, “não
foram nem espontâneas e ainda muito menos democráticas, mas que nelas
tiveram papel fundamental os Estados Unidos, na promoção da agitação e
da subversão, por meio do envio de armas e de pessoal, direta ou
indiretamente, através do Qatar e da Arábia Saudita”,
Nessa nova obra, Moniz Bandeira aprofunda e atualiza as questões apresentadas em “Formação do Império Americano”. “Em
face das revoltas ocorridas na África do Norte e no Oriente Médio a
partir de 2010, julguei necessário expandir e atualizar o estudo. Tratei
de fazê-lo, entre e março e novembro de 2012”, afirma o autor. É
nesse contexto que o cientista político analisa as recentes denúncias de
espionagem praticadas pelos EUA em vários países, inclusive o Brasil.
A
definição do Brasil como alvo de espionagem também não é de hoje. Em
entrevista à "Carta Maior", Moniz Bandeira assinala que a "Agência
Nacional de Segurança" (NSA) interveio na concorrência para a montagem
do "Sistema de Vigilância da Amazônia" (SIVAM), pelo Brasil, e assegurou
a vitória da Raytheon, a companhia encarregada da manutenção e serviços
de engenharia da estação de interceptação de satélites do sistema
"Echelon".
Na
entrevista, o cientista político conta um pouco da história desse
esquema de espionagem que, para ele, está a serviço de um projeto de
poder imperial de proporções planetárias.
Moniz Bandeira defende que o Brasil, especialmente a partir da descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, deve se preparar para defender seus interesses contra esse projeto imperial. “As ameaças existem, conquanto possam parecer remotas. Mas o Direito Internacional só é respeitado quando uma nação tem capacidade de retaliar”, afirma.
Carta Maior: O seu livro "Formação do Império Americano" já tratava, em
2005, do tema da espionagem praticada por agências de inteligência dos
Estados Unidos. Qual o paralelo que pode ser traçado entre a situação
daquele período e as revelações que vêm sendo feitas hoje?
Moniz Bandeira: Sim, em “Formação do Império Americano”,
cuja primeira edição foi lançada em 2005, mostrei, com fundamento em
diversas fontes e nas revelações feitas pelo professor visitante da
Universidade de Berkeley (Califórnia), James Bamford, que o sistema de
espionagem, estabelecido pela "National Security Agency" (NSA), começou a
funcionar há mais de meio século. O objetivo inicial era captar
mensagens e comunicações diplomáticas entre os governos estrangeiros,
informações que pudessem afetar a segurança nacional dos Estados Unidos e
dar assistência às atividades da CIA.
Com o desenvolvimento da tecnologia eletrônica, passou a ser usado para
interceptar comunicações internacionais via satélite, tais como
telefonemas, faxes, mensagens através da Internet. Os equipamentos estão
instalados em Elmendorf (Alaska), Yakima (Estado de Washington), Sugar
Grove (Virginia ocidental), Porto Rico e Guam (Oceano Pacífico), bem
como nas embaixadas, bases aéreas militares e navios dos Estados Unidos.
A diferença com a situação atual consiste na sua comprovação, com os
documentos revelados por Edward Snowden, através do notável jornalista
Gleen Greenwald, que a espionagem é feita em larga escala, com a maior
amplitude.
Desde os
fins dos anos 60, porém, a coleta de inteligência econômica e
informações sobre o desenvolvimento científico e tecnológico de outros
países, adversos e aliados, tornou-se mais e mais um dos principais
objetivos da COMINT (communications inteligence), operado pela NSA, dos Estados Unidos, e pelo Government Communications Headquarters (GCHQ), da Grã-Bretanha, que em 1948 haviam firmado um pacto secreto, conhecido como UKUSA (UK-USA) - Signals Intelligence (SIGINT). Esses dois países formaram um pool - conhecido como UKUSA
- para interceptação de mensagens da União Soviética e demais países do
Bloco Socialista, a primeira grande aliança de serviços de inteligência
e à qual aderiram, posteriormente, agências de outros países, tais como
Communications Security Establishment (CSE), do Canadá, Defense Security Directorate (DSD), da Austrália e do General Communications Security Bureau (GCSB), da Nova Zelândia. Essa rede de espionagem, de Five Eyes e conhecida também como ECHELON, só se tornou publicamente conhecida em março de 1999. O governo da Austrália nela integrou o Defence Signals Directorate (DSD), sua organização de SIGINT.
Carta Maior: Qual sua avaliação a respeito da reação (ou da falta de) da União Europeia diante das denúncias de espionagem?
Moniz Bandeira: Os
serviços de inteligência da União Europeia sempre colaboraram,
intimamente, com a CIA e demais órgãos dos Estados Unidos. Os governos
da Alemanha, França, Espanha, Itália e outros evidentemente sabiam da
existência do ECHELON e deviam intuir que o ECHELON - os Five Eyes -
trabalhasse também para as corporações industriais. As informações do
ECHELON, sobretudo a partir do governo do presidente Bill Clinton, eram
canalizadas para o "Trade Promotion Co-ordinating Committee" (TPCC), uma agência intergovernamental criada em 1992 pelo Export Enhancement Act e
dirigida pelo Departamento de Comércio, com o objetivo de unificar e
coordenar as atividades de exportação e financiamento dos Estados
Unidos. Corporações, como Lockheed, Boeing, Loral, TRW, e Raytheon,
empenhadas no desenvolvimento de tecnologia, receberam comumente
importantes informações comerciais, obtidas da Alemanha, França e outros
países através do ECHELON.
O presidente Clinton recorreu amplamente aos serviços da NSA para
espionar os concorrentes e promover os interesses das corporações
americanas. Em 1993, pediu à CIA que espionasse os fabricantes
japoneses, que projetavam a fabricação de automóveis com zero-emissão de
gás, e transmitiu a informação para a Ford, General Motors e Chrysler.
Também ordenou que a NSA e o FBI, em 1993, espionassem a conferência
da "Asia-Pacific Economic Cooperation" (APEC), Seattle, onde aparelhos
foram instalados secretamente em todos os quartos do hotel, visando a
obter informação relacionada com negócios para a construção, no Vietnã,
da hidroelétrica Yaly. As informações foram passadas para os
contribuintes de alto nível do Partido Democrata. E, em 1994, a NSA não
só interceptou faxes e chamadas telefônicas entre o consórcio europeus
Airbus e o governo da Arábia Saudita, permitindo ao governo americano
intervir em favor da Boeing Co, como interveio na concorrência para a
montagem do SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), pelo Brasil, e
assegurou a vitória da Raytheon, a companhia encarregada da manutenção e
serviços de engenharia da estação de interceptação de satélites do
sistema ECHELON, em Sugar Grove.
Carta Maior: Um
dos temas centrais de seus últimos trabalhos é a configuração do Império
Americano. Qual é a particularidade desse Império Americano hoje?
Trata-se de um Império no sentido tradicional do termo ou de um novo
tipo?
Moniz Bandeira: Todos
os impérios têm particularidades, que são determinadas pelo
desenvolvimento das forças produtivas. Assim, não obstante a
estabilidade das palavras, o conceito deve evoluir conforme a realidade
que ele trata de representar. O império, na atualidade, tem outras
características, as características do ultraimperialismo, o cartel das
potências industriais, sob a hegemonia dos Estados Unidos, que
configuram a única potência capaz de executar uma política de poder, com
o objetivo estratégico de assegurar fontes de energia e de matérias
primas, bem como os investimentos e mercados de suas grandes
corporações, mediante a manutenção de bases militares, nas mais diversas
regiões do mundo, nas quais avança seus interesses, através da mídia,
ações encobertas dos serviços de inteligência, lobbies, corrupção,
pressões econômicas diretas ou indiretas, por meio de organizações
internacionais, como Banco Mundial, FMI, onde detém posição majoritária.
As guerras, para o consumo dos armamentos e aquecimento da economia,
foram transferidas para a periferia do sistema capitalista.
É óbvio, portanto, que o Império Americano é diferente do Império
Romano e do Império Britânico. Ainda que informal, isto é, não
declarado, os Estados Unidos constituem um império. São a única
potência, com bases militares em todas as regiões do mundo e cujas
Forças Armadas não têm como finalidade a defesa das fronteiras
nacionais, mas a intervenção em outros países. Desde sua fundação, em
1776, os Estados Unidos estiveram "at war" em 214 em seus 236 anos do
calendário de sua existência, até dezembro de 2012. Somente por 21 anos
não promoveram qualquer guerra. E, atualmente, o governo do presidente
Barack Obama promove guerras secretas em mais de 129 países. O Império
Americano (e, em larga medida, as potências industriais da Europa)
necessita de guerras para manter sua economia em funcionamento, evitar o
colapso da indústria bélica e de sua cadeia produtiva, bem como evitar o
aumento do número de desempregados e a bancarrota de muitos Estados
americanos, como a Califórnia, cuja receita depende da produção de
armamentos.
Ademais
do incomparável poderio militar, os Estados Unidos também detém o
monopólio da moeda de reserva internacional, o dólar, que somente
Washington pode determinar a emissão e, com a emissão de papéis podres e
postos em circulação sem lastro, financiar seus déficits orçámentários e
a dívida pública. Trata-se de um "previligégio exorbitante", conforme o
general Charles de Gaulle definiu esse unipolar "global currency
system", que permite aos Estados Unidos a supremacia sobre o sistema
financeiro internacional.
Carta Maior: Qual a perspectiva de longo prazo desse império?
Moniz Bandeira: Os
Estados Unidos, como demonstrei nesse meu novo “A Segunda Guerra Fria”,
lançado pela editora Civilização Brasileira, estão empenhados em
consolidar uma ordem global, um império planetário, sob sua hegemonia e
da Grã-Bretanha, conforme preconizara o geopolítico Nicholas J. Spykman,
tendo os países da União Européia e outros como vassalos. O próprio
presidente Obama reafirmou, perante o Parlamento britânico, em Westminster (maio de 2011) que a “special relationship” dos dois países
(Estados Unidos e Grã-Bretanha), sua ação e liderança eram indispensáveis à
causa da dignidade humana, e os ideais e o caráter de seus povos tornavam “the
United States and the United Kingdom indispensable to this moment in history”.
Entremente, o processo de globalização econômica e política, fomentado pelo
sistema financeiro internacional e pelas grandes corporações multinacionais,
estava a debilitar cada vez mais o poder dos Estados nacionais, levando-os a
perder a soberania sobre suas próprias questões econômicas e sociais, bem como
de ordem jurídica.
O "Project for the New American Century" , dos neoconservadores e executado pelo ex-presidente George W. Bush, inseriu os Estados Unidos em um estado de guerra permanente, uma guerra infinita e indefinida, contra um inimigo assimétrico, sem esquadras e sem força aérea, com o objetivo de implantar a "full spectrum dominance", isto é, o domínio completo da terra, mar, ar e ciberespaço pelos Estados Unidos, que se arrogaram à condição de única potência verdadeiramente soberana sobre a Terra, de "indispensable nation" e “exceptional”.
O presidente Barack Obama endossou-o, tal como explicitado na "Joint Vision 2010" e ratificado pela "Joint Vision 2020", do Estado Maior-Conjunto, sob a chefia do general de exército Henry Shelton. E o NSA é um dos intrumentos para implantar a "full spectrum dominance", uma vez que monitorar as comunicações de todos os governantes tanto aliados quanto rivis. Informação é poder
Carta Maior: Qual o contraponto possível a esse império no ambiente geopolítico atual?
Moniz Bandeira: Quando em 2006 recebi o Troféu Juca Pato, eleito pela União Brasileira de Escritores "Intelectual do ano 2005", por causa do meu livro “Formação do Império Americano”, pronunciei um discurso, no qual previ que, se o declínio do Império Romano durou muitos séculos, o declínio do Império Americano provavelmente levará algumas décadas. O desenvolvimento das ferramentas eletrônicas, da tecnologia digital, imprimiu velocidade ao tempo, e a sua queda será tão vertiginosa, dramática e violenta quanto sua ascensão. Contudo, não será destruído militarmente por nenhuma outra potência. Essa perspectiva não há. O Império Americano esbarrondará sob o peso de suas próprias contradições econômicas, de suas dívidas, pois não poderá indefinidamente emitir dólares sem lastros para comprar petróleo e todas as mercadorias das quais depende, e depender do financiamento de outros países, que compram os bônus do Tesouro americano, para financiar seu consumo, que excede a produção, financiar suas guerras.
É com isso que a China conta. Ela é o maior credor dos Estados Unidos, com reservas de cerca US$ 3,5 trilhões, das quais apenas US$ 1,145 trilhão estavam investidos em "U.S. Treasuries". E o ex-primeiro-ministro Wen Jiabao previu o “primeiro estágio do socialismo para dentro de 100 anos”, ao afirmar que o Partido Comunista persistiria executando as reformas e inovação a fim de assegurar o vigor e vitalidade e assegurar o socialismo com as características chinesas, pois “sem a sustentação e pleno desenvolvimento das forças produtivas, seria impossível alcançar a equidade e justiça social, requesitos essenciais do socialismo.”
Carta Maior: Na sua opinião, o que um país como o Brasil pode fazer para enfrentar esse cenário?
Moniz Bandeira: O ministro-plenipotenciário do Brasil em Washington, Sérgio Teixeira de Macedo, escreveu, em 1849, que não acreditava que houvesse “um só país civilizado onde a ideia de provocações e de guerras seja tão popular como nos Estados Unidos”. Conforme percebeu, a “democracia”, orgulhosa do seu desenvolvimento, só pensava em conquista, intervenção e guerra estrangeira, e preparava, de um lado, a anexação de toda a América do Norte e, do outro, uma política de influência sobre a América do Sul, que se confundia com suserania.
O embaixador do Brasil em Washington, Domício da Gama, comentou, em 1912, que o povo americano, formado com o concurso de tantos povos, se julgava diferente de todos eles e superior a eles. E acrescentou que “o duro egoísmo individual ampliou-se às proporções do que se poderia chamar de egoísmo nacional”. Assim, os Estados Unidos sempre tenderam e tendem a não aceitar normas ou limitações jurídicas internacionais, o Direito Internacional, não obstante o trabalho de Woodrow Wilson para formar a Liga das Nações e de Franklin D. Roosevelt para constituir a ONU. E o Brasil, desde 1849, esteve a enfrentar a ameaça dos Estados Unidos que pretendiam assenhorear-se da Amazônia.
Agora, a situação é diferente, mas, como adverti diversas vezes, uma potência, tecnologicamente superior, é muito mais perigosa quando está em declínio, a perder sua hegemonia e quer conservá-la, do que quando expandia seu império. Com as descobertas das jazidas pré-sal, o Brasil entrou no mapa geopolítico do petróleo. As ameaças existem, conquanto possam parecer remotas. Mas o Direito Internacional só é respeitado quando uma nação tem capacidade de retaliar. O Brasil, portanto, deve estar preparado para enfrentar, no mar e em terra, e no ciberespaço, os desafios que se configuram, lembrando a máxima “se queres a paz prepara-te para a guerra” (Si vis pacem,para bellum)."
FONTE: reportagem de Marco Aurélio Weissheimer publicada no site "Carta Maior" (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Moniz-Bandeira-O-Brasil-e-as-ameacas-de-projeto-imperial-dos-EUA/6/29340).
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