postado em: 29/10/2013
Descalço.
Darcy Ribeiro, até nisso, foi embora como viveu. Chegava em casa e tirava os sapatos. Dizia que era por causa de seu sangue índio. Eu sempre achei que não: que era para sentir o chão nos pés.
Muito diferente que sentir os pés no chão: sentir o chão nos pés, porque era aquele chão, o da realidade, que ele quis mudar, transformar, como quis transformar o Brasil e a América Latina. O mundo.
No dia em que foi eleito Senador da República, vestiu um terno branco, de linho formidável, e ficou andando pela sala do apartamento de Copacabana, sorrindo agitado e vendo o mar, andando e andando - descalço.
Na noite do dia 31 de dezembro de 1995, Darcy estava na varanda desse mesmo apartamento, olhando a multidão espalhada pela praia e pelo asfalto e pelas calçadas da avenida Atlântica.
Das alturas daquele quinto andar ele contemplava tudo, os olhos de aviador percorrendo as pessoas, as ondas, as embarcações iluminadas.
Quando faltava pouco para a virada do ano duas amigas chegaram na varanda, aproximaram-se da cadeira em que ele estava sentado e colocaram no chão um grande balde prateado, desses que são usados para manter garrafas de vinho geladas.
No balde havia água do mar Atlântico e alguns punhados de areia. Quando ouviu o foguetório da meia-noite ele mergulhou os pés no balde.
Darcy queria virar o ano com os pés no mar. Ele não podia mais ir ao mar. Deu um jeito fazer o mar ir até ele. Até seus pés descalços.
Também assim quero me lembrar de Darcy Ribeiro para sempre. Também assim: Darcy acreditando profundamente na capacidade transformadora do bicho humano, rejeitando limites, desafiando barreiras, convocando desafios. Não era homem de sonhar com pouco. Sonhava grande, e se lançava aos sonhos para transformá-los em realidade e assim, mudar essa realidade que estava ali, cercando, imposta.
E lembrar também o que ele disse certo dia de santa ira e lúcida rebelião: “Na América Latina só temos duas saídas: ser resignados, ou ser indignados; e eu não vou me resignar nunca”.
Não fez outra coisa na vida além de traduzir essa frase-guia em cada ato, cada ousadia, cada sonho.
Convivi com ele durante vinte e dois anos. Um convívio denso, rico, intenso. Aquele furacão de vida, sonhos e ideias, varreu da minha frente, durante esse tempo todo, os fantasmas das derrotas e das desesperanças.
Fazia parte de meu cotidiano a inquietante sensação de conviver, lado a lado, com alguém que nasceu no mesmo ano de meu pai e conseguiu ser mais jovem que meu filho. Esse vazio, ninguém nem nada poderá preencher, jamais.
De todas as imagens deixadas por ele, de todas as memórias, acalanto uma, definitiva.
Certo fim de tarde de um sábado, ele saiu do escritório de Oscar Niemeyer, na avenida Atlântica. Vestia um terno branco formidável, de linho, e foi caminhando devagar pela calçada até o automóvel que o esperava.
Do mar, vinha uma brisa certeira. Visto lá do alto, o paletó branco esvoaçando, caminhando devagar, Darcy Ribeiro parecia um veleiro desafiando os ventos, rumo a um futuro que só ele poderia adivinhar.
Guardo essa imagem e guardo a certeza de que o porto, aquele porto, é preciso merecê-lo.
Darcy Ribeiro não perdeu, não foi derrotado. Mudou de rumo.
Onde quer que esteja, continua como sempre: indignado. E descalço.
Darcy Ribeiro, até nisso, foi embora como viveu. Chegava em casa e tirava os sapatos. Dizia que era por causa de seu sangue índio. Eu sempre achei que não: que era para sentir o chão nos pés.
Muito diferente que sentir os pés no chão: sentir o chão nos pés, porque era aquele chão, o da realidade, que ele quis mudar, transformar, como quis transformar o Brasil e a América Latina. O mundo.
No dia em que foi eleito Senador da República, vestiu um terno branco, de linho formidável, e ficou andando pela sala do apartamento de Copacabana, sorrindo agitado e vendo o mar, andando e andando - descalço.
Na noite do dia 31 de dezembro de 1995, Darcy estava na varanda desse mesmo apartamento, olhando a multidão espalhada pela praia e pelo asfalto e pelas calçadas da avenida Atlântica.
Das alturas daquele quinto andar ele contemplava tudo, os olhos de aviador percorrendo as pessoas, as ondas, as embarcações iluminadas.
Quando faltava pouco para a virada do ano duas amigas chegaram na varanda, aproximaram-se da cadeira em que ele estava sentado e colocaram no chão um grande balde prateado, desses que são usados para manter garrafas de vinho geladas.
No balde havia água do mar Atlântico e alguns punhados de areia. Quando ouviu o foguetório da meia-noite ele mergulhou os pés no balde.
Darcy queria virar o ano com os pés no mar. Ele não podia mais ir ao mar. Deu um jeito fazer o mar ir até ele. Até seus pés descalços.
Também assim quero me lembrar de Darcy Ribeiro para sempre. Também assim: Darcy acreditando profundamente na capacidade transformadora do bicho humano, rejeitando limites, desafiando barreiras, convocando desafios. Não era homem de sonhar com pouco. Sonhava grande, e se lançava aos sonhos para transformá-los em realidade e assim, mudar essa realidade que estava ali, cercando, imposta.
E lembrar também o que ele disse certo dia de santa ira e lúcida rebelião: “Na América Latina só temos duas saídas: ser resignados, ou ser indignados; e eu não vou me resignar nunca”.
Não fez outra coisa na vida além de traduzir essa frase-guia em cada ato, cada ousadia, cada sonho.
Convivi com ele durante vinte e dois anos. Um convívio denso, rico, intenso. Aquele furacão de vida, sonhos e ideias, varreu da minha frente, durante esse tempo todo, os fantasmas das derrotas e das desesperanças.
Fazia parte de meu cotidiano a inquietante sensação de conviver, lado a lado, com alguém que nasceu no mesmo ano de meu pai e conseguiu ser mais jovem que meu filho. Esse vazio, ninguém nem nada poderá preencher, jamais.
De todas as imagens deixadas por ele, de todas as memórias, acalanto uma, definitiva.
Certo fim de tarde de um sábado, ele saiu do escritório de Oscar Niemeyer, na avenida Atlântica. Vestia um terno branco formidável, de linho, e foi caminhando devagar pela calçada até o automóvel que o esperava.
Do mar, vinha uma brisa certeira. Visto lá do alto, o paletó branco esvoaçando, caminhando devagar, Darcy Ribeiro parecia um veleiro desafiando os ventos, rumo a um futuro que só ele poderia adivinhar.
Guardo essa imagem e guardo a certeza de que o porto, aquele porto, é preciso merecê-lo.
Darcy Ribeiro não perdeu, não foi derrotado. Mudou de rumo.
Onde quer que esteja, continua como sempre: indignado. E descalço.
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