02 de
fevereiro de 2013 | 16h 00
Mônica Manir - O
Estado de S. Paulo
Numa
usina elétrica desativada, cenário de máquinas, fiações e
tubos da era do nazismo, uma boate vira a noite sem fechar.
É a Berghain/Panorama Bar - vulgo Paranoia, para os
brasileiros que habitam o circuito techno -, apontada por
alguns como o melhor clube do mundo, ainda que seja para
turista ver. Tales Ab’Sáber foi um que lá baixou, numa
estada em Berlim. E de lá saiu com a certeza de que tinha
material valioso para uma perícia sobre a grande noite da
diversão industrial, traduzido em A Música do Tempo
Infinito, livro lançado em outubro pela Cosac Naify.
Reprodução
Na
Berghain a celebração rola das 23h59 de sábado para além das
21h de domingo: dança sem fim
"É uma
festa intensa, que deseja não terminar jamais", diz o
psicanalista sobre a balada alemã, que pulsa quase
diariamente a partir das 23h59 e que, de sábado para
domingo, entorpece o público com música eletrônica até a
noite seguinte. Nessa perspectiva, o único sentido do dia é
acionar o GPS para a próxima noitada, algo instantâneo de se
fazer em Berlim, considerando a fábrica de entretenimento
que é.
Depois
da tragédia em Santa Maria, as blitze que se espalharam pelo
País atrás de boates-ratoeiras escancarou uma noite
brasileira também alucinada, que por nada festeja tudo.
Antes do incêndio, somente na cidade gaúcha eram pelo menos
cinco baladas por dia, de quinta-feira a sábado. Em São
Paulo capital, 500 casas noturnas foram licenciadas no ano
passado e cerca de 600 esperam na fila por um alvará,
enquanto outros milhares se espalharam feito gripe pelo
País.
"Trata-se
de um dispositivo de época para a gestão do prazer", diz
Tales. "A balada é mais bonita, mais livre e mais erótica
que a vida, e no entanto está totalmente articulada,
econômica e socialmente, à vida como ela é." Algo diferente
dos shows de rock e dos inferninhos dos anos 1970? Em seu
apartamento em Pinheiros, bairro que abriga mais de dez
páginas de boates no Google, Tales tenta traduzir essa
geração que, em suas palavras, vive uma experiência
sensorial sem compartilhamento. Esse gaúcho, radicado desde
o primeiro ano de vida em São Paulo, também faz uma crítica
sobre a morte quase instantânea de mais de 230 guris num
país que vendeu para si a imagem de moderno, mas que de
modernidade só absorveu a excitação, o Facebook e a
pirotecnia.
A
operação pente-fino nas boates do País mostrou que nos
municípios brasileiros as casas noturnas brotaram a rodo.
Que tipo de lazer é esse, que atrai tantos jovens?
Ele
tem raízes na oferta de experiências própria da grande
metrópole moderna, como os cafés concertos da Paris de
Haussmann, os cabarés berlinenses dos anos 1920 e as casas
de dança e jazz da Nova York da mesma época. Muito cedo se
observou nessa invenção para a noite uma espécie de nova
ordem internacional da diversão, ligada à organização da
vida das massas na sociedade liberal. No entanto, a partir
dos anos 1950 e 1960, emergiu a ideia de que a noite dos
jovens estaria ligada também a um vetor político, de crítica
ao sistema, no qual aquilo que era ofertado pelo mercado era
vivido como a negatividade da antiga bohème. Esse movimento
sempre guardou a ambiguidade de ser regulador e ao mesmo
tempo um espaço imaginário de desejos conflitantes com a
vida social. A partir das décadas de 1980 e 1990, há um
retorno à ordem da contracultura ocidental, que teve seu
ápice público e político, em plena luz do dia, em 1968 e
1970. Ele foi retirado do cotidiano, reservado para a
circulação de mercado, para ser guardado, e de certo modo
privatizado, na emergência da boate de massa, o novo espaço
da república pop. Essa passagem histórica foi marcada pela
ultrapassagem do rock - e da canção - pela música
eletrônica. No Brasil, ela se condensou na balada, que não
existia na minha juventude nos anos 1980.
O que,
em geral, caracteriza uma balada?
Certa
vez um jovem paciente me falou: "A balada é um lugar em que
tudo muda. Quando você entra numa balada tudo vira outra
coisa, você, as pessoas, o mundo. Nada do que vale fora de
lá continua valendo, é um mundo à parte e outro do próprio
mundo". A balada é o espaço que sustenta esse desejo. Ela dá
uma amostra, um sampler, do mundo do luxo e da luxúria para
os que não o possuem, ou da experiência estética
antiburguesa para os adaptados. Trata-se de um dispositivo
de época para a gestão do prazer. A balada é mais bonita,
mais livre e mais erótica do que a vida, e no entanto está
totalmente articulada, econômica e socialmente, à vida como
ela é. Ela mantém vivo esse potencial utópico, e ao mesmo
tempo o reduz a um espaço socialmente aceito. É a sua forma
de solução de compromisso, o seu sonho social.
A
balada agrega todas as classes sociais. De que juventude
estamos tratando?
Uma
juventude desencantada, que teve os impulsos críticos de
radicalização humanista, estética e democrática, próprios do
movimento da juventude ocidental do século 20, reduzidos a
práticas de consumo a partir da aceleração da cultura do
dinheiro dos anos 1990 e 2000. Essa juventude tenta manter
valores de vanguarda de eros e civilização, como dizia o
filósofo Herbert Marcuse, comprometidos com seu destino de
venda de um trabalho sem garantias, muitas vezes sem
direitos efetivos, no mundo das corporações. Uma juventude
atomizada, que caminha entre a baixa vida de mercado e o
hedonismo de consumo do teatro excitado de sua noite.
O que
costumam festejar?
É um
paradoxo. Eles festejam suas vidas difíceis de mercado, e
sua inserção por um fio na coisa toda. Mais ou menos do
mesmo modo que a mercadoria, por meio da cultura da
propaganda, festeja a si própria sem parar. A ordem do poder
atual exige celebração contínua, ligada à afirmação do
indivíduo de realização do próprio prazer, desde que ele
seja de mercado, apolítico. E esses jovens, que por vezes
fingem um cuidadoso punkismo construído em lojas caras da
moda, celebram a mesma celebração geral de seu mundo. Ou,
como escrevi em meu livro, eles festejam o fato de não haver
nada a festejar. É a compulsão a ser feliz, que diz muito
respeito à propaganda.
Por
que há tantos megaeventos para uma geração tão voltada para
si mesma?
Exatamente
por isso. Nesse ponto foi o filósofo Theodor Adorno quem nos
deu contribuições importantes. Quanto mais individualizado e
rarefeito na vida social para defender o próprio prazer,
menos exigente culturalmente é esse consumidor, e mais sua
ilusão de individualidade deságua em uma administração
cultural geral. Podemos dizer que o hiperindivíduo, que
busca a singularidade do seu prazer nas ofertas de mercado,
acaba pensando como todos os demais, em uma grande
uniformidade cultural, e ele vai de fato alimentar o
megafestival que legitima o presente. Estamos diante de um
mundo que, na mesma medida em que afirma o indivíduo, o
empobrece e o torna apenas idêntico a todos.
Vivemos
uma segunda ‘idade da festa’, expressão cunhada pelo
jornalista Gay Talese que você recupera no seu livro?
É
realmente muito interessante a formulação de Talese, que
percebeu de modo intuitivo e profundo a transformação
iminente do grande movimento político da contracultura jovem
em uma cultura erótica da festa administrada. Em uma imensa
festa contracultural de Andy Warhol, embalada pelo Velvet
Underground num ginásio de Nova York, no auge dos protestos
públicos contra a Guerra do Vietnã, Talese percebeu o
destino da coisa toda: a política seria em breve substituída
pela imagem. Seu texto é o primeiro a falar da celebração de
tudo e de nada, que passou a ser a cultura jovem no nosso
tempo, em que há muita produção de imagem, excitação e gozo,
mas, para lembramos os termos do escritor, "nada está
acontecendo". Um lance de espírito de gênio. Por que a festa
precisa sugar tudo para ela? Tudo tem que se expressar como
excitação. É a mesma lógica da mercadoria quando ela
aparece: excitar para circular. Todos precisam estar nesse
estado porque, caso contrário, não correspondem ao mundo.
Esse momento está ligado ao desligamento do vetor político
da contracultura. Ele passa a ser encenado, não é mais o
embate político real.
Onde
estaria esse vetor político hoje?
É uma
grande angústia ver esse hipermundo pacificado porque as
pessoas foram convencidas de que a política se resolve nos
partidos. Se a gente não acredita nas respostas que estão
sendo dadas, a gente não acredita nessa política e ela não
cumpre seu mandato, embora diga que cumpra. Adorno dizia
isso: a ideologia não é mentirosa no seu conteúdo. O
conteúdo da política é uma verdade racional humana. A
ideologia é mentirosa porque ela disse que já deu o que
prometeu, cortando o processo de demanda social. A política
está congelada nessa estrutura do capital. Manter isso, que
é extremamente instável e estável, implica uma energia
incrível, inclusive de repressão. Em 2008, vimos como é
difícil manter o equilíbrio de um negócio que tem que gerar
cada vez mais lucro. A política está naquilo que essa
própria estrutura aparentemente fechada não consegue
sustentar mais. Essas são as crises reais, que a ideologia
não consegue barrar. No plano simbólico da expressão
cultural, é tudo política de imagem, de alimentar o todo.
Nesse
texto, Talese também dizia que, para existir, a pessoa
precisava ser vista. Hoje, para existir, ela necessita ser
fotografada e postar-se no Facebook.
Era o
tempo dos famosos 15 minutos de fama de Andy Warhol, o
vínculo subjetivo com a sociedade do espetáculo do escritor
francês Guy Debord. Nos anos 1960, começa a surgir essa
percepção de que as pessoas estão encenando alguma coisa.
Tão importante quanto ser alguém é produzir sua imagem. Essa
foi a grande mensagem social da televisão. A internet é uma
grande universalização dessa tendência, acompanhada de
fragmentação e algum grau virtual de participação. Eles
estão o tempo todo se comunicando, em grande parte querendo
saber onde está a melhor festa. Essa prática cria, a cada
noite, um mapa da vida e da cidade, um GPS das baladas. E
esse mapa é mundial.
Isso
também vigora com força no Oriente?
Repare:
todo filme que trata de contradições políticas no Oriente
traz uma baladinha. É uma espécie de enclave da cultura
ocidental, que significa a inversão de todos os valores ao
redor. Essa balada está sintonizada com a balada ocidental,
a mesma música, a mesma moda, o folgazão do consumo de
diversão internacional.
Ironicamente,
todas as câmaras do circuito interno da boate Kiss
desapareceram. Ninguém quer ficar com a imagem de
responsável pela tragédia…
Esse
episódio catastrófico revela uma situação de descompasso do
Brasil. O País produziu para si mesmo o discurso edificante
de que se modernizou rapidamente, o que não é verdade em
muitos aspectos da vida. A Kiss é uma pequena boate, mas com
características dessa cultura global da casa noturna cuja
relação entre empresário, prefeitura e agentes públicos de
segurança é toda degradada. Ninguém é culpado, e todo mundo
é. São os déficits de técnica brasileiros, técnica pública,
inclusive.
Durante
manifestações pedindo justiça, familiares mostraram cartazes
revelando sua indignação com ‘a ganância de gente corrupta’.
Que elementos dessa tragédia mostram essa ganância? Os
seguranças impedindo a saída dos jovens porque eles não
haviam pago a consumação, por exemplo?
Esse
incêndio é uma espécie de fato infinito. Ele congrega uma
série de fatos do mundo - legais, políticos, simbólicos.
Vamos pensar nos seguranças, por exemplo. Eles têm a
mentalidade da polícia, se é que não são policiais. É a
mentalidade autoritária em que a relação com o outro é
sempre de predomínio pela força, de inabilidade para lidar
com o público, com alguém que não seja "ordem e progresso".
É esse autoritarismo que o patrão espera dele, aliás. Mas
onde está a brigada de incêndio, que seria a outra
consciência? Não tem! Morreu gente por causa disso, desse
entrave à saída.
Também
havia uma quantidade de pessoas muito além da capacidade do
lugar…
Nos
anos 1980, quando começaram a surgir as boates, elas não
eram assim. O Madame Satã não era assim. E antes, nos anos
1950, 60, muito menos. O público era de adultos, os
inferninhos eram micro, um tipo de boemia completamente
outra, era o mundo do João Antônio, de Copacabana. Mudou a
escala. Isso é próprio da geração, mas tem o elemento
universal da catástrofe. Ela representa a humanidade,
estamos todos diante dela e ela fala a todos. Em parte
porque ocupam todas as revistas, todos os jornais. É a
tautologia da indústria da comunicação. Em parte porque, de
fato, algo diz que poderia ter sido com meu filho ou comigo.
As pessoas se sentem comprometidas. Se elas fossem
comprometidas assim com a política, seria fascinante. Mas
não são.
Você
reserva um longo capítulo para as drogas no seu livro. Que
papel elas têm nessa grande noite da diversão industrial?
As
drogas, no movimento contracultural da juventude ocidental
modernista, eram uma experimentação erótica, faziam parte de
um projeto no qual se poderia estabelecer outra ordem de
existência na vida moderna. Elas também foram capturadas
para dentro das casas noturnas, numa fusão com a música
techno, especialmente com a explosão do ecstasy no final dos
anos 1980 e começo dos 90. A droga é estrutural da própria
experiência, não é mais uma possibilidade. Ela é necessária
para que a coisa exista.
Estamos
falando de drogas e álcool?
Sim,
dos dois. Isso disparou uma realidade de excessos. A partir
do surgimento da música da noite, aparece um novo tipo de
cultura da droga, que é uma drogadição exibida, conspícua. O
lugar por excelência disso é a boate. Mas a partir daí
existe uma universalização das drogas como diversão,
portanto como objeto de consumo de massa.
E a
música? De onde veio a necessidade da pirotecnia para
acompanhá-la?
Quando
os Beatles tocavam nos estádios nos anos 1960, quando
inauguraram essa era de espetáculo de massa e expressão pop,
grandiosa e sedutora, eram quatro músicos em cima de um
palco e só. E havia 60 mil pessoas vendo! Jimi Hendrix,
quando botou fogo na guitarra, foi um xamanismo, uma espécie
de autossacrifício, uma coisa dionisíaca de incendiar uma
parte de si mesmo, ao mesmo tempo amando e atacando o que o
representava. Mas foi um evento individual. Depois começa a
surgir essa espetacularização visual do mundo da canção. Em
1968, 69, Pink Floyd começa a fazer projeções de imagens,
uma produção mais barata. Então, num certo momento dos anos
1980, isso vira um espetáculo pirotécnico gigantesco, com
explosões, bolas de fogo. Agora, as pequenas bandas do
interior do mundo querem soltar seus rojões e fogos de
artifício. Está aumentando a espetacularização, o que
significa que a música perdeu importância.
Você
chama o DJ da música techno de um ‘Sísifo de nosso tempo,
pulsando imensamente ao mesmo tempo que anuncia o vazio’.
Mas músicos de outros ritmos que alimentam as baladas também
não param. É o tal corpo-coração, enquanto a alma alucina?
Sim, é
o corpo-suor, em que tudo tem que ser traduzido em pulsação.
No Brasil, isso nos chegou muito pelo axé, com as cantoras
dançando o tempo todo. As coisas têm que ser levadas no
limite da expressividade, do desgaste físico. A banda de
Santa Maria se chama Gurizada Fandangueira. Fandango é o
velho baile gauchesco de dar o pão, que era feito com
sanfona, uma música popular, de fazenda. E o fandango da
Gurizada virou isso, uma exibição com sinalizadores que
deseja agradar a 1.500 pessoas. Grandes artistas, como
Madonna e Lady Gaga, fazem espetáculos assim também. A arte
vai sendo deslocada para essa coisa mais infantil. Às vezes
a música é playback, mas não é ela que está em jogo. É este
show. Um show de pura excitação.
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