Há quase três décadas a China executa políticas nacionais de
industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia
"global". As lideranças chinesas perceberam que a constituição da "nova"
economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional
em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de
rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia
nacional de industrialização acelerada às novas realidades da
concorrência global.
A experiência chinesa combina o máximo de competição - a utilização do
mercado como instrumento de desenvolvimento - e o máximo de controle.
Entenderam perfeitamente que as políticas liberais recomendadas pelo
Consenso de Washington não deveriam ser "copiadas" pelos países
emergentes. Também compreenderam que a "proposta" americana para a
economia global incluía oportunidades
para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Assim controlaram as
instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de
crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração
da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e
facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura.
A rápida industrialização da China e dos países do Sudeste Asiático
deslocou uma fração importante da demanda global para os produtores de
matéria primas e alimentos. Como é de conhecimento geral, a China ainda
sustenta um saldo positivo muito elevado com os Estados Unidos. Mas seu
déficit é crescente com o resto da Ásia e com os demais parceiros
comerciais. O bloco industrializado da Ásia, articulado em torno da
China, funcionou e ainda funciona como uma engrenagem de transmissão
entre a demanda gerada nos países centrais e a oferta das economias
"exportadoras de recursos naturais".
Os países que perderam posição na disputa competitiva da manufatura acenam com mais inovações
O leitor bem informado sabe que o chamado "modelo asiático" tem uma
relação simbiótica com as transformações financeiras e organizacionais
que deram origem às novas formas de concorrência entre as empresas
dominantes da tríade desenvolvida, Estados Unidos, Europa e Japão.
As andanças da nova concorrência responderam, sim, às politicas
liberalizantes dos anos 80. E, em sua resposta, o movimento da grande
empresa realizou o projeto de reconfiguração do ambiente internacional. A
metástase do sistema
empresarial da tríade desenvolvida - particularmente dos Estados Unidos
e do Japão - determinaram uma impressionante mutação nos fluxos de
comércio. Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do
comércio intra-firmas, mas de destacar o papel decisivo do "global
sourcing", fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de
deslocalização e de investimento que, desde a década dos 90,
beneficiaram as economias asiáticas, a China em particular.
A nova concorrência engendrou simultaneamente: 1) a centralização do
controle, mediante as ondas de fusões e aquisições observadas desde os
anos 80; e 2) a nova distribuição espacial da produção, ou seja, a
internacionalização das cadeias de geração de valor. Centralização do
controle e descentralização da produção: esse movimento de dupla face
afetou a natureza e a direção do investimento direto em nova capacidade,
reconfigurou a divisão do trabalho entre produtores de peças e
componentes e os "montadores" de bens finais e, como já foi dito,
alterou as participações dos países nos fluxos de comércio. O propósito
da competição entre os grandes blocos de capital é o de assegurar
simultaneamente a diversificação espacial adequada da base produtiva da
grande empresa e o "livre" acesso a mercados.
Mas as vantagens da China e de seus parceiros asiáticos não estão
asseguradas. Não há repouso no capitalismo. Depois da crise de 2008 e de
suas consequências, os países que perderam posição na disputa
competitiva da manufatura - sobretudo os Estados Unidos - acenam com uma
nova rodada de inovações, aquelas que seriam classificadas de
"poupadoras de mão de obra" pelos sábios que ainda utilizam funções de
produção.
O economista chefe da General Eletric, Marco Annunziata e Kenneth Rogoff
preconizam a iminência de um intenso movimento de automação baseado na
utilização de redes de "máquinas inteligentes". Nanotecnologia,
neurociência, biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais
formam o bloco de inovações com enorme potencial de revolucionar outra
vez as bases técnicas do capitalismo. Todos os métodos que nascem dessa
base técnica não podem senão confirmar sua razão interna: são métodos de
produção destinados a aumentar a produtividade social do trabalho em
escala crescente. Sua aplicação continuada torna o trabalho imediato
cada vez mais redundante. A autonomização da estrutura técnica significa
que a aplicação da ciência torna-se o critério dominante no
desenvolvimento da produção.
O jogo da grande empresa é jogado no tabuleiro em que a mobilidade do
capital impõe conjuntamente a liberalização do comércio, o controle da
difusão do progresso técnico (leis de patentes etc..) e o
enfraquecimento da capacidade de negociação dos trabalhadores. Assim, as
"novas" formas de concorrência escondem, sob o diáfano véu da
liberdade, o aumento brutal da centralização do capital, a concentração
do poder sobre os mercados, a enorme capacidade de ocupar e abandonar
territórios e de alterar as condições de vida das populações.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da
Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído
entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting Economists."
Nenhum comentário:
Postar um comentário