27/02/2013
Fiquei decepcionado com as declarações de
Spike Lee sobre o último filme do Quentin Tarantino, ‘Django livre’. O
filme é tudo, menos um desrespeito ao sofrimento dos milhões de negros
traficados para os EUA nos séculos 18 e 19.
Data: 25/02/2013
Sou viciado em alguns filmes. Um deles é ‘O plano
perfeito’, dirigido pelo Spike Lee. Perdi a conta de quantas vezes o
assisti, é um fascínio renovado. Tem um ingrediente fundamental para
qualquer bom filme: saber contar uma boa história. Não basta, claro, mas
é indispensável. Posso, até, discordar veementemente de certas obras,
mas admito que, abrindo mão do sectarismo, a fruição estética pode
romper muros ideológicos. É o caso, por exemplo, de Leni Riefenstahl,
espécie de musa cinematográfica do III Reich. O conteúdo de suas peças
de propaganda nazista é desprezível, mas ela revolucionou técnicas de filmagem e, por isso, não pode ser ignorada.
Fiquei decepcionado com as declarações de Spike Lee sobre o último filme do Quentin Tarantino, ‘Django livre’. Lee disse que o filme é um desrespeito a seus ancestrais, que a escravidão nos Estados Unidos não foi um faroeste italiano. Surpreendentemente, tirou essas conclusões sem assistir ao filme. Ou seja: não vi e não gostei. Desonestidade intelectual. O último Tarantino é tudo, menos um desrespeito ao sofrimento dos milhões de negros traficados para os Estados Unidos nos séculos 18 e 19. Trata-se de um grande filme, com sutilezas e ótimas sacadas. Lá está, gritante, a impressão digital tarantiniana. Não é, entretanto, um documentário, nem pretende contar uma história linear da escravidão. Talvez tenha sido esse o grande equívoco de Spike Lee, que chegou a declarar que não há possibilidade de brancos compreenderem em profundidade a história dos negros. Seriam, portanto, incapazes de filmá-la. Pressionou Hollywood para que Norman Jewison, diretor respeitado e com filmes anti-racistas no currículo, não fosse escalado para dirigir Malcolm X, em 1992. Foi bem sucedido. Adivinhem quem ficou com a direção ? O próprio Lee.
Há muitas formas de se escaldar um gato. Grandes tragédias podem ser narradas de formas muito diferentes. Uma obra seminal como ‘Shoah’, do francês Claude Lanzmann, narra o genocídio dos judeus na 2ª Guerra Mundial sem mostrar uma única cena chocante. O assombro vem das palavras, dos gestos, dos silêncios, dos descampados, das narrativas crepusculares. A escravidão nos Estados Unidos foi, como todas as outras formas de exploração de trabalho escravo, uma abominação, usada como forma histórica de acumulação de capital. Em 1790, a economia norte-americana tinha base agrícola, e o algodão era uma das joias da coroa. Naquele ano, produziram-se mil toneladas no sul, maior região produtora. Setenta anos depois, a produção pulou para 1 milhão de toneladas. Sintomaticamente, no mesmo período o número de escravos foi de 500 mil a 4 milhões. Todo um sistema de repressão, física e ideológica, garantiu este sistema de exploração. Castigos desumanos (respaldados por autoridades clericais, que afirmavam que Deus estava de acordo com o que acontecia), intimidação armada e preconceito racial eram os muros reais e virtuais que cercavam o cativeiro. Houve revoltas, a maior em New Orleans, em 1811. Foi sufocada pela ação conjunta do exército e de milícias armadas.
Tarantino certamente conhece essa história e a contou à sua maneira. Falei em sutilezas? Vamos lá. A dupla central de protagonistas é formada por um alemão, caçador de recompensas, e um escravo negro. Sócios improváveis se déssemos um salto de poucas décadas adiante, quando a Alemanha foi varrida por uma tsunami racista. A surpresa, ou sacada se preferirem, avança para uma cena onde um fazendeiro sádico manda cachorros estraçalharem um ‘mandingo’ fugitivo, na frente do alemão e seu sócio negro. A cena horroriza o europeu e o fazendeiro sorri, perguntando ao negro se seu sócio não estava passando bem. A resposta é navalha pura: “Não é bem isso. É que ele ainda não conhece os americanos”. Selvageria em pequena escala que, hiperbolicamente, a história norte-americana multiplicaria em guerras imperialistas e grandes banhos de sangue. E era o alemão que não suportava a carne humana cortada pelos dentes caninos... Coisas da Usina de Sonhos. A fazenda da tortura e do desrespeito se chamava Candyland, Terra do Doce. Tarantino, que não é tolo, sabe que ditadores e assassinos gostam de esconder seus crimes sob nomes de fachada. No portão do campo de extermínio de Auschwitz estava escrito Arbeit macht frei (o trabalho liberta). A única liberdade dos que chegavam saía como fumaça nos fornos crematórios.
Outra ousadia é a presença de um negro adesista. O que se compõe com o patrão branco, a quem idolatra. Trai os escravos, ajuda a castigá-los, ganha migalhas. No mundo preto ou branco – sem segundas intenções! -, todo mundo é bom ou mau, esse tipo de personagem não caberia. Riefenstahl não mostraria um nazista ao menos hesitante. Eram todos heróis abençoados pelo Walhalla. Nenhum filme da era do realismo socialista mostraria um pioneiro ou operário em dúvida sobre nada. A vida não é assim. Essas fantasias são perigosas e Tarantino soube driblá-la sem caricaturas.
Alguém disse que ‘Django livre’ e ‘Bastardos inglórios’ são “direitos de resposta” dos massacrados. Com a licença poética permitida pelo cinema e escrachadamente sem compromisso com verdades acadêmicas. Cada um que olhe à sua maneira. Em outro contexto, filmes como ‘A vida é bela’ e ‘O trem da vida’, com foco no Holocausto, receberam críticas injustas de membros mal-humorados de comunidades judaicas. Seu crime? Não apelar para narrativas lineares, repetitivas, chorosas, convencionais, da matança dos judeus durante a era nazista. Tem muita gente que ainda sonha com versões unânimes. Comportamento de manada. A imaginação arromba essa pretensão descabida.
Termino com uma história verídica, espelho do racismo “cordial” do dia-a-dia carioca (brasileiro?). Um motorista de táxi aguarda passageiros. Aproxima-se uma senhora muito bem vestida, com um cachorrinho no colo. Dirige-se ao taxista e abre a porta do carro. Alertada pelo motorista de que era proibido levar animais no carro, ela se revolta e, exaltada, diz: “Pois fique sabendo que meu cachorro é limpinho, aliás muito mais limpo do que você”. O taxista, de bate-pronto: “Desculpe, mas eu não me referi ao cachorro. É que eu não transporto vacas”. Em tempo: o taxista era negro.
Fiquei decepcionado com as declarações de Spike Lee sobre o último filme do Quentin Tarantino, ‘Django livre’. Lee disse que o filme é um desrespeito a seus ancestrais, que a escravidão nos Estados Unidos não foi um faroeste italiano. Surpreendentemente, tirou essas conclusões sem assistir ao filme. Ou seja: não vi e não gostei. Desonestidade intelectual. O último Tarantino é tudo, menos um desrespeito ao sofrimento dos milhões de negros traficados para os Estados Unidos nos séculos 18 e 19. Trata-se de um grande filme, com sutilezas e ótimas sacadas. Lá está, gritante, a impressão digital tarantiniana. Não é, entretanto, um documentário, nem pretende contar uma história linear da escravidão. Talvez tenha sido esse o grande equívoco de Spike Lee, que chegou a declarar que não há possibilidade de brancos compreenderem em profundidade a história dos negros. Seriam, portanto, incapazes de filmá-la. Pressionou Hollywood para que Norman Jewison, diretor respeitado e com filmes anti-racistas no currículo, não fosse escalado para dirigir Malcolm X, em 1992. Foi bem sucedido. Adivinhem quem ficou com a direção ? O próprio Lee.
Há muitas formas de se escaldar um gato. Grandes tragédias podem ser narradas de formas muito diferentes. Uma obra seminal como ‘Shoah’, do francês Claude Lanzmann, narra o genocídio dos judeus na 2ª Guerra Mundial sem mostrar uma única cena chocante. O assombro vem das palavras, dos gestos, dos silêncios, dos descampados, das narrativas crepusculares. A escravidão nos Estados Unidos foi, como todas as outras formas de exploração de trabalho escravo, uma abominação, usada como forma histórica de acumulação de capital. Em 1790, a economia norte-americana tinha base agrícola, e o algodão era uma das joias da coroa. Naquele ano, produziram-se mil toneladas no sul, maior região produtora. Setenta anos depois, a produção pulou para 1 milhão de toneladas. Sintomaticamente, no mesmo período o número de escravos foi de 500 mil a 4 milhões. Todo um sistema de repressão, física e ideológica, garantiu este sistema de exploração. Castigos desumanos (respaldados por autoridades clericais, que afirmavam que Deus estava de acordo com o que acontecia), intimidação armada e preconceito racial eram os muros reais e virtuais que cercavam o cativeiro. Houve revoltas, a maior em New Orleans, em 1811. Foi sufocada pela ação conjunta do exército e de milícias armadas.
Tarantino certamente conhece essa história e a contou à sua maneira. Falei em sutilezas? Vamos lá. A dupla central de protagonistas é formada por um alemão, caçador de recompensas, e um escravo negro. Sócios improváveis se déssemos um salto de poucas décadas adiante, quando a Alemanha foi varrida por uma tsunami racista. A surpresa, ou sacada se preferirem, avança para uma cena onde um fazendeiro sádico manda cachorros estraçalharem um ‘mandingo’ fugitivo, na frente do alemão e seu sócio negro. A cena horroriza o europeu e o fazendeiro sorri, perguntando ao negro se seu sócio não estava passando bem. A resposta é navalha pura: “Não é bem isso. É que ele ainda não conhece os americanos”. Selvageria em pequena escala que, hiperbolicamente, a história norte-americana multiplicaria em guerras imperialistas e grandes banhos de sangue. E era o alemão que não suportava a carne humana cortada pelos dentes caninos... Coisas da Usina de Sonhos. A fazenda da tortura e do desrespeito se chamava Candyland, Terra do Doce. Tarantino, que não é tolo, sabe que ditadores e assassinos gostam de esconder seus crimes sob nomes de fachada. No portão do campo de extermínio de Auschwitz estava escrito Arbeit macht frei (o trabalho liberta). A única liberdade dos que chegavam saía como fumaça nos fornos crematórios.
Outra ousadia é a presença de um negro adesista. O que se compõe com o patrão branco, a quem idolatra. Trai os escravos, ajuda a castigá-los, ganha migalhas. No mundo preto ou branco – sem segundas intenções! -, todo mundo é bom ou mau, esse tipo de personagem não caberia. Riefenstahl não mostraria um nazista ao menos hesitante. Eram todos heróis abençoados pelo Walhalla. Nenhum filme da era do realismo socialista mostraria um pioneiro ou operário em dúvida sobre nada. A vida não é assim. Essas fantasias são perigosas e Tarantino soube driblá-la sem caricaturas.
Alguém disse que ‘Django livre’ e ‘Bastardos inglórios’ são “direitos de resposta” dos massacrados. Com a licença poética permitida pelo cinema e escrachadamente sem compromisso com verdades acadêmicas. Cada um que olhe à sua maneira. Em outro contexto, filmes como ‘A vida é bela’ e ‘O trem da vida’, com foco no Holocausto, receberam críticas injustas de membros mal-humorados de comunidades judaicas. Seu crime? Não apelar para narrativas lineares, repetitivas, chorosas, convencionais, da matança dos judeus durante a era nazista. Tem muita gente que ainda sonha com versões unânimes. Comportamento de manada. A imaginação arromba essa pretensão descabida.
Termino com uma história verídica, espelho do racismo “cordial” do dia-a-dia carioca (brasileiro?). Um motorista de táxi aguarda passageiros. Aproxima-se uma senhora muito bem vestida, com um cachorrinho no colo. Dirige-se ao taxista e abre a porta do carro. Alertada pelo motorista de que era proibido levar animais no carro, ela se revolta e, exaltada, diz: “Pois fique sabendo que meu cachorro é limpinho, aliás muito mais limpo do que você”. O taxista, de bate-pronto: “Desculpe, mas eu não me referi ao cachorro. É que eu não transporto vacas”. Em tempo: o taxista era negro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário