Eugênio José Guilherme de Aragão (*), no blog do Marcelo Auler
O passamento do Ministro Teori Albino Zavascki pôs a nu o estado de indigência moral do Brasil.
O desavergonhado debate açodado sobre quem o sucederá, a cupidez dos
sedizentes candidatos a ministro, que nem esperam o corpo esfriar, para
formarem fila de pretendentes, no melhor estilo de “por que você não
olha para mim”, da canção “Óculos”, dos Paralamas do Sucesso, causam
náuseas e enrubescem qualquer um que tenha compostura.
Dá gastura só de pensar como gente desse jaez se conduzirá, acaso
escolhida para a elevada missão, que, longe de ser um galardão ou uma
cerejinha glacê a enfeitar o currículo de Suas Excelências, deve ser uma
batalha na trincheira de defesa da constituição e da democracia.
No plano do discurso, o cenário não é mais confortador.
Nenhuma das principais tendências políticas do País se sai bem num superficial exame de contrição.
Incompreensão da esquerda
Pela direita, não se disfarçou o alívio pelo evento trágico que
colheu o magistrado como relator do mais ruidoso caso de corrupção
tratado no judiciário pátrio.
A interrupção do intenso trabalho a que vinha se dedicando o
disciplinado Teori dará, nas palavras do chefe da casa civil, um
desafogo ao governo golpista, que terá mais tempo para absorver o
impacto estrondoso das delações premiadas de diretores da Odebrecht, que
fatalmente fará a malta em torno do Sr. Michel Temer perder o norte.
Do mesmo modo, o “mercado”, segundo insuspeitas informações do grupo
Globo, teria reagido “de forma otimista” à morte do ministro, pois o
governo golpista poderia, com a redução do passo das investigações no
Supremo Tribunal Federal, fazer passar no congresso medidas econômicas
impopulares, antes da eclosão daquilo que promete ser a maior crise
política do pós-golpe.
Pela esquerda, infelizmente, o justificável ressentimento pela
interrupção brutal e traiçoeira do processo democrático se traduz em
incompreensão e até em falta de compaixão pelo nefasto que, nesta hora,
atormenta muita gente que conviveu com Teori e está a sofrer o luto da
perda.
O que mais se ouve é que o magistrado, com seu tecnicismo, contribuiu
decisivamente para o golpe, omitindo-se, nos momentos cruciais, de
repeli-lo.
Chamam-no de cúmplice e de figura central num processo que continua a
ter por escopo inviabilizar politicamente o Partido dos Trabalhadores e
destruir suas lideranças.
O mais preparado do STF
Nem o cinismo da direita golpista e nem o “j’accuse” da esquerda
ressentida fazem justiça a Teori Zavascki, uma pessoa humana
extraordinária, de coração enorme e generoso, que dispensa os confetes
post-mortem tão hipocritamente lançados sobre protagonistas da cena
nacional que, em vida, foram controvertidos.
Julgar o outro é algo a ser evitado para não se padecer do mesmo destino quando chegar a hora.
Ninguém de nós se sentou na cadeira de Teori e nem ficou no meio da tempestade avassaladora que experimentou.
Manter seu barquinho no prumo, num mar de tormentas não é fácil nem
para os mais adestrados capitães timoneiros e, quanto mais, para
aprendizes de mestres-arrais.
Convivi com Teori e tive reiteradamente oportunidade de conversar sobre a crise política que assola o País.
Era, de longe, o mais denso e mais preparado ministro do STF, sem querer diminuir os demais.
Devo dizer que, no atacado, pensávamos igual, divergindo em alguns aspectos menores do varejo.
Quando no governo da Presidenta Dilma Vana Rousseff, sempre me preocupei com a segurança pessoal do amigo que admirava.
Por determinação da Presidenta, foi-lhe colocado à disposição,
permanentemente, o transporte aéreo de autoridades da Força Aérea
Brasileira.
Oferecemos, no ministério, guarda-costas e segurança para si e sua
família, ciente que estávamos das ameaças que vinham lhe sendo lançadas
de todos os lados.
Desconforto com Sérgio Moro
Mas Teori, na sua humildade e simplicidade, era avesso a esse
tratamento diferenciado. Custou muito convencê-lo a usar o transporte. A
segurança, ele dispensou.
Conversei, então, com o Presidente do STF à época, Ministro Ricardo
Lewandowski, e ficou acertado que agentes do tribunal se articulariam
com a polícia federal para prevenir qualquer ataque a Teori ou seus
familiares.
Posso afirmar com certeza que o ministro Teori não compactuava com os abusos no âmbito da Lava-Jato.
Sempre lhe causou muito desconforto o modo de proceder do juiz Sérgio
Moro, com sua promoção pessoal às custas da presunção de inocência de
investigados e no limite do partidarismo.
Tinha repulsa pela falta de autocontenção daquele magistrado de piso.
Não lhe agradava a propaganda corporativa da polícia e do ministério público.
Não via nela nenhuma vantagem para a educação política da sociedade
ou mesmo para a eficiência no desempenho da persecução penal.
Era um crítico comedido, como lhe era próprio, da forma como a
Procuradoria Geral da República lidava com a publicidade das ações da
operação Lava-Jato.
Tinha ojeriza aos vazamentos de delações e esperava de todos os atores do processo mais serenidade.
O Ministro Teori Zavascki foi acusado, em blogs e matérias
jornalísticas publicadas depois de sua morte, de ter falhado, ao afastar
tardiamente Eduardo Cunha da presidência e de seu mandato.
É verdade que se este afastamento tivesse se dado com maior
brevidade, talvez o destino do governo democraticamente eleito de Dilma
Rousseff tivesse sido outro.
Mas era da personalidade prudente de Teori não tomar decisões de
afogadilho, que pudessem ser revertidas e, assim, causassem mais
estragos ao ambiente politicamente conflagrado do que se gestadas com
cautela.
Temos que lembrar que o Procurador-Geral da República só fez o pedido
de afastamento às vésperas do recesso natalino do STF, como se querendo
forçar o relator a resolver monocraticamente sobre a medida requerida.
Agastou nosso amigo Teori o fato induvidoso de que esse pedido
poderia ter sido feito muito antes, pois os elementos que o embasavam já
eram conhecidos em fase anterior das investigações.
Enxergou esse atraso como certa deslealdade da acusação, deixando-o exposto desnecessariamente.
E tinha razão.
É evidente que uma medida dessa natureza não poderia ser tomada
solteira, sem consulta aos pares, pois, uma vez submetida ao plenário,
não se poderia correr o risco de desmoralização do relator com o
desfazimento de um eventual deferimento monocrático do pedido do
procurador-geral.
Essa desmoralização levaria fatalmente ao fortalecimento da posição de Eduardo Cunha no processo, o que seria muito pior.
Preferiu, pois, Teori, esperar o fim do recesso para poder costurar
com seus colegas, um a um, a decisão conjunta sobre o afastamento.
Não é fácil ser determinado numa corte com tantas personalidades
diferentes e de concepções tão contraditórias sobre a urgência da medida
por tomar.
Mas, sou testemunha de que Teori não descansou.
Insistiu com os colegas semanas a fio na necessidade de se afastar Eduardo Cunha.
Só logrou, porém, sucesso depois de consumado o afastamento
processual de Dilma Rousseff no procedimento de impeachment que corria
no congresso.
Sentiu-se mal por isso, mas não era dono das circunstâncias políticas que dominavam aquele momento.
Teori Zavascki era um juiz independente, no significado pleno da palavra. Sempre se pautou por seus estritos padrões éticos.
Não tolerava conversa mole e “jeitinhos” no julgamento de causas de que participava.
Estudava detidamente a pauta de cada sessão e tinha noção clara de cada voto que seria proferido.
Era implacável quando assertivas lhe causassem estranheza e questionava seus pares sem se intimidar.
Era respeitado por isso. Ninguém o engambelava.
Tinha lá suas posições doutrinárias que alguns podem chamar de conservadoras.
Votou contra a proibição de doações eleitorais por pessoas jurídicas
porque estava convencido de que não era esta a causa do descalabro ético
na política.
Votou a favor da execução provisória da pena após confirmação da condenação em segundo grau.
Tinha para si que o excesso de recursos era manejado frequentemente de má fé pela defesa de acusados endinheirados.
São posições de que podemos legitimamente divergir, mas jamais impor a
Teori a pecha de “atrasado”, “fascista” ou “ferrabrás”. Não foi nada
disso.
Era pessoa de convicções claras, bem embasadas e sem o “parti pris”
hoje, em tempos de polarização partidária, tão comum entre expressiva
gama de magistrados politiqueiros.
Quando escolhido pela Presidenta Dilma Vana Rousseff para o cargo de
ministro, dela ouviu só um pedido: que continuasse a ser esse magistrado
sério, ético, independente que se revelara durante toda sua carreira.
Nada mais. E era o suficiente.
Sabe-se que a escolha é correta, quando recomendações e conselhos são
dispensáveis, porque a pessoa a ser investida no cargo não sairá do
caminho da retidão. E Teori não decepcionou.
O carinho que a Presidenta legítima cultivou por ele até o final é prova cabal disso.
Ele era sincero e direto. Não iludia ninguém.
Dizia claramente o que pensava e nunca tergiversava.
Faço questão dessa defesa de Teori Zavascki. Ele não a precisa. Não precisa de necrológios encomiásticos.
Mas, em nome da admiração e do respeito que por ele sempre nutri, não
me sinto bem com os julgamentos apressados e levianos que se tornaram
frequentes depois que o amigo foi chamado por Deus.
Que lhe demos as homenagens que merece, pois foi, com certeza, um grande brasileiro e um juiz que faz jus a esse nome.
(*) Eugênio José Guilherme de Aragão é subprocurador-geral da
República, professor de Direito na UnB e ex-ministro da Justiça do
governo Dilma Rousseff
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