Confira abaixo o texto de Jessé, publicado nesta quinta (19):
Por Jessé Souza
Meu colega Luis Felipe Miguel iniciou um debate interessante sobre a
coluna de 16/01/17 de Celso Rocha de Barros no jornal "Folha de São
Paulo". Celso critica na sua coluna o que ele chama de explicação
dominante da esquerda para o golpe de 2016. Essa explicação se basearia
em três teses, sendo que duas dessas três teses ele retira de meu livro "
A Radiografia do golpe" de agosto de 2016. São elas a denúncia do golpe
como fruto da articulação entre elite do dinheiro, mídia e Judiciário; e
a tese do ressentimento da classe média contra as políticas de ajuda
aos mais pobres que teria permitido usá-la, contra seus melhores
interesses, como massa de manobra nas ruas e como "base popular" do
golpe. Na sua coluna, o autor escolhe criticar apenas a tese do
ressentimento. Celso não nega que o ressentimento social exista, mas ele
acha que essa tese precisaria de "evidências empíricas" para ser
efetivamente válida.
Celso parece esquecer que as pessoas na vida real têm pouco apreço
pela verdade e muito apreço para a legitimação da vida que levam
qualquer que seja ela. Celso parece esquecer, também, que o mundo social
e subjetivo não são transparentes para as pessoas e que seria tão
ridículo perguntar a um coxinha da paulista se ele está ali porque as
distâncias com os miseráveis foram um pouco diminuídas, sendo o combate a
corrupção mero pretexto, quanto perguntar ao homofóbico se ele percebe
que sua violência aos homossexuais só pode ser explicada pela
necessidade psíquica de silenciar seu próprio homossexualismo. A
"verificação de uma tese de comportamento social" se dá sempre pela
análise do comportamento objetivo e não pela legitimação consciente.
Senão vejamos. Por que foram um milhão de pessoas – 80% da classe média –
à avenida Paulista contra a corrupção supostamente só do PT e
literalmente ninguém saiu ás ruas quando os principais políticos do PSDB
foram todos eles, sem exceção, envolvidos em delações de desvios
milionários? Por que os dois pesos e as duas medidas?
Mas o mais interessante ainda está por vir. Celso se pergunta a certa
altura: e se o ressentimento tiver existido, por que ele não levou a
classe média descontente às ruas no momento do auge da mobilidade social
das camadas populares? A análise de Celso é toda construída sob o
pressuposto não apenas de que as pessoas agem com total consciência de
seus motivos reais, como também, de que suas ações e opiniões não são
mediadas por ninguém. Sua pergunta parece revelar uma dúvida autêntica:
ora, se a classe média se ressentiu, por que não teria mostrado, então,
este ressentimento antes? Bingo! O coxinha leitor de Celso de Barros
deve ter se sentido aliviado e pensado:
"Esses esquerdopatas e suas invencionices chavistas e bolivarianas, ressentido é ele que perdeu a mamata do petrolão".
O grande e ensurdecedor silêncio na análise de Celso é a percepção da
mídia como mediador neutro e imparcial. Existiria, assim, um tipo muito
especial de empresa no capitalismo: aquela que não joga tudo que tem
para maximizar seus lucros, mas sim para esclarecer de modo anódino,
correto e sóbrio seu consumidor telespectador/leitor.
Celso fala do ressentimento e de sua transformação em ação coletiva
como se este se desse espontaneamente, por um acordo secreto entre as
pessoas que foram à avenida Paulista protestar. Tudo se dá como se num
belo dia, todos os coxinhas resolvessem ligar um para o outro e combinar
um passeio de protesto na avenida Paulista. Eles não foram motivados
nem manipulados por ninguém. Perceba leitor, que Celso é sociólogo e
doutor, formado em uma das melhores universidades inglesas. Se
especialistas cometem essa ingenuidade, o que dizer dos leigos? Os
leitores dos jornais e das televisões podem ser ótimos médicos,
enfermeiros, advogados ou mecânicos, mas eles não compreendem a
complexidade da realidade social assim como não percebem – do mesmo modo
que o Doutor em Sociologia Celso Barros – as formas de violência
simbólica e de distorção sistemática da realidade às quais estão
expostos.
O silêncio de Celso é sintomático e expressa a mentira e a fraude
mais importante para que o golpe tenha acontecido e esteja hoje
realizando a maior regressão histórica em todas as dimensões da vida que
este pais jamais viu: a negação do papel da mídia como partido político
das elites internas e externas que se uniram para rapina da riqueza de
todos em favor de meia dúzia. O papel manipulador da mídia depende
precisamente de que ela não seja percebida como um "ator social com
interesses próprios". Quando ele se pergunta, candidamente, talvez
motivado por uma dúvida autêntica, por que o ressentimento da fração,
mais conservadora da classe média contra a pequena ascensão social dos
mais pobres não teria se mostrado antes, a ausência de qualquer
referência ao papel da mídia é o dado principal e sem dúvida mais
curioso.
Ora, foi a mídia que dignificou e sacralizou o incômodo mesquinho e
venal da fração conservadora da classe média primeiro com a necessidade
de partilhar espaços sociais antes restritos a ela, como aeroportos e
"shopping centers" e, depois, o "medo irracional" da competição por seus
salários e prestígio social com a política de cotas sociais e bolsas
nas universidades. O que aconteceu foi uma "sacralização moral" do ódio
de classe – contra uma classe de "escravos modernos" desprezada,
abandonada e percebida como mão de obra farta e barata para seu uso e
abuso – que foi transformado em "indignação moral" contra a corrupção.
Antes da criminosa manipulação midiática - que hoje atolou o pais em
ódio e obscurantismo – esse ódio de classe não era de expressão
"legítima". Em uma sociedade ainda que superficialmente cristã como a
nossa, quem odeia os mais frágeis e os mais fracos é um simples canalha.
Foi o trabalho da mídia que transformou o canalha em "herói nacional",
ao conferir o pretexto, o discurso e o herói de carne e osso (o juiz
Sérgio Moro) da grande farsa que possibilitou transmutar o ódio ao PT e a
sua obra de combate à pobreza em cruzada moral contra a corrupção.
E não é necessária nenhuma "survey" para comprovar isso caro colega
Celso de Barros. Basta usar a velha e boa capacidade humana de reflexão
autônoma e confrontar a reação da mídia e de seu público cativo contra o
PT com a reação de ambos às inúmeras delações envolvendo todos os
principais políticos do PSDB. Cadê os panelaços, onde estão os milhões
de tolos que saíram a rua pelos mesmos motivos contra Lula e o PT?
Afinal, se era para combater a corrupção, por que parou? Parou por que? E
onde estão os editoriais inflamados e cheios de indignação que enchiam
os jornais e as televisões do pais. A classe média foi feita de tola e
trocou a sacralização de seu ódio covarde e canalha contra os mais
frágeis que ela explora por uma exploração agora sem precedentes de toda
a população inclusive dela própria classe média. Agora ela vai ter que
pagar caro pela universidade, pelo plano de saúde e agora também pela
própria aposentadoria privada. E outras contas pesadas virão. Além
disso, é ela que vai andar com medo nas ruas e que vai empobrecer de
modo crescente. Essa é a conta da dignificação e sacralização do ódio
que a mídia lhe proporcionou.
Mas vamos insistir e usar aquele órgão que a mídia quer tornar
obsoleto no Brasil: nosso cérebro e sua capacidade de reflexão. Será que
os dois pesos e as duas medidas são por que o PSDB é o partido da
rentismo e do capital financeiro e a imprensa é a defensora bem paga de
ambos? É por isso que o país empobreceu e milhões perderam empregos e as
causas são sempre postas na herança maldita? Quanto tempo irá decorrer
até que a classe média compreenda que o trabalho que o PT fez foi
superficial e apenas garantiu um grau de civilidade mínimo ao país? E
que as calamidades que estão vindo e ainda virão como insegurança
pública crônica, massacres e epidemias vão cair como as pragas do Egito
sobre a própria classe média?
O silêncio sobre o papel da imprensa é o fundamento da continuidade
da nova ordem. Uma imprensa que deu os motivos – todos falsos como vemos
hoje – construiu a narrativa, criminalizou a política, justificou o
ódio e até transformou sua marionete jurídica em herói nacional. Não
existiriam Bolsonaros como ameaças reais sem esse trabalho prévio da
imprensa. No entanto, como mostra meu colega Celso de Barros tão bem,
ela fez toda o trabalho sujo e ninguém ainda a responsabiliza por isso.
Até quando?
Nenhum comentário:
Postar um comentário