sábado, 7 de dezembro de 2013

Obama cai na real


Paul Krugman - 06/12/2013

Boa parte dos comentários da mídia quanto ao grande discurso do presidente Obama sobre a desigualdade foram cínicos. Vocês sabem como funciona: trata-se de um novo "recomeço" que irá a lugar algum; nada do que ele disse terá efeito prático sobre as políticas públicas; e assim por diante. Mas antes que falemos do impacto político do discurso, ou falta dele, não deveríamos considerar a substância do que foi dito? O que presidente disse era verdade? Era algo de novo? Se a resposta a essas perguntas for afirmativa - e é -, então aquilo que ele disse merece ser ouvido com seriedade.
E assim que você percebe isso, também percebe que o discurso talvez importe muito mais do que os cínicos imaginam.
Primeiro, sobre as verdades: Obama expôs uma visão perturbadora - e infelizmente muito acurada - de um país que está perdendo contato com seus ideais, uma terra de oportunidades que está se tornando uma sociedade com profundas divisões de classe. Não só temos crescente disparidade entre uma minoria rica e o restante do país como também, nas palavras do presidente, temos um declínio na mobilidade social, porque é cada vez mais difícil para os pobres, e até para a classe média, subir na pirâmide econômica. E ele estabeleceu uma conexão entre a crescente desigualdade e a queda da mobilidade, afirmando que as histórias de pessoas que enriquecem apesar de começarem a vida humildemente estão se tornando mais raras exatamente porque a distância entre os ricos e os demais se tornou tão grande.
Não é um território completamente novo para Obama. O que me impressionou sobre o discurso, no entanto, foi o que ele teve a dizer sobre as fontes da crescente desigualdade. Boa parte de nossa classe política e dos sabichões do país continuam apegados ao conceito de que a desigualdade crescente, se é que é problema, é um problema relacionado apenas à falta de capacitação e educação para os trabalhadores. Mas o presidente agora parece aceitar os argumentos dos progressistas no sentido de que a educação é no máximo uma das muitas preocupações que o país enfrenta, e que a crescente desigualdade de classe nos Estados Unidos reflete em larga medida escolhas políticas, tais como a recusa de elevar o salário mínimo em escala comparável à produtividade e inflação.
E porque o presidente estava disposto a atribuir boa parte da culpa pela desigualdade crescente a más políticas, ele também se dispôs a falar com mais franqueza do que no passado sobre formas de mudar a trajetória do país, entre as quais um aumento do salário mínimo, a restauração do poder de negociação da classe trabalhadora, e reforçar, em lugar de enfraquecer, a rede de segurança social.
E ele também declarou: "Quando o assunto é o orçamento, não devemos ficar aprisionados em um debate rançoso, que se arrasta há dois ou três anos. O deficit de oportunidade que cresce incansavelmente é uma ameaça maior ao nosso futuro do que o nosso deficit orçamentário, que está encolhendo com igual rapidez". Enfim! Nossa classe política passou anos obcecada por um problema falso - preocupada com a dívida e deficit que jamais representaram qualquer ameaça ao futuro da nação - enquanto não demonstravam interesse algum pelo desemprego e pela estagnação de salários. Obama, lamento dizer, embarcou nessa manobra. Mas agora ele decidiu deixá-la para trás.
Ainda assim, será que isso tem alguma importância? A sabedoria convencional dos supostos especialistas, no momento, é a de que presidência de Obama está encalhada, e até a de que o presidente se tornou irrelevante. Mas isso é tolice. Na verdade, é tolice de pelo menos três maneiras.
Primeiro, boa parte da sabedoria convencional, no momento, envolve extrapolações baseadas no início desastroso da reforma da saúde (Obamacare), e a suposição de que as coisas continuarão assim pelos próximos três anos. Mas isso não acontecerá. O site HealthCare.gov já está trabalhando muito melhor, o número de optantes não pára de crescer, e todas as confusões do lançamento estão sendo deixadas no passado.
Segundo, Obama não disputará a reeleição. A esta altura, ele precisa ser avaliado não por seus resultados nas pesquisas de opinião pública mas por suas realizações, e sua reforma da saúde, que representa um reforço considerável da rede de segurança social norte-americana, é uma grande realização. Ele será considerado um de nossos mais importantes presidentes, desde que possa defender essa realização e derrotar as tentativas de destruir outras porções da rede de segurança, como o programa de assistência alimentar. E ao apresentar argumentos fortes e ponderados sobre a necessidade de uma rede de segurança social mais forte, em uma era de crescente desigualdade, ele está se posicionando exatamente para fazer essa defesa.
E, por fim, as ideias importam, mesmo que não seja possível transformá-las em leis do dia para a noite. O caminho equivocado que tomamos em nossa política econômica - nossa obsessão com a dívida e com os "benefícios", quando o foco deveria estar em empregos e oportunidades - foi, é claro, em parte definido pelo poder dos interesses especiais e do dinheiro. Mas ele não se deve apenas ao exercício de um poder bruto. Os resmungões quanto à situação fiscal também se beneficiaram de uma espécie de monopólio ideológico: por muitos anos, ninguém era considerado sério em Washington a menos que orasse aos pés de Simpson e Bowles.
Agora, no entanto, o presidente dos Estados Unidos deixou para trás esse consenso e por fim adotou o tom progressista que muitos de seus eleitores acreditavam que o definiria ao escolhê-lo em 2008. Isso vai mudar o discurso - e, no futuro, acredito, a política do país.
Por isso, não acredite nos cínicos. O discurso de Obama foi muito importante, e o presidente que o fez ainda pode fazer grande diferença.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.

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