Paul Krugman - 06/12/2013
Boa parte dos comentários da mídia quanto ao grande discurso do
presidente Obama sobre a desigualdade foram cínicos. Vocês sabem
como funciona: trata-se de um novo "recomeço" que irá a lugar
algum; nada do que ele disse terá efeito prático sobre as
políticas públicas; e assim por diante. Mas antes que falemos do
impacto político do discurso, ou falta dele, não deveríamos
considerar a substância do que foi dito? O que presidente disse
era verdade? Era algo de novo? Se a resposta a essas perguntas
for afirmativa - e é -, então aquilo que ele disse merece ser
ouvido com seriedade.
E assim que você percebe isso, também percebe que o discurso
talvez importe muito mais do que os cínicos imaginam.
Primeiro, sobre as verdades: Obama expôs uma visão perturbadora
- e infelizmente muito acurada - de um país que está perdendo
contato com seus ideais, uma terra de oportunidades que está se
tornando uma sociedade com profundas divisões de classe. Não só
temos crescente disparidade entre uma minoria rica e o restante
do país como também, nas palavras do presidente, temos um
declínio na mobilidade social, porque é cada vez mais difícil
para os pobres, e até para a classe média, subir na pirâmide
econômica. E ele estabeleceu uma conexão entre a crescente
desigualdade e a queda da mobilidade, afirmando que as histórias
de pessoas que enriquecem apesar de começarem a vida
humildemente estão se tornando mais raras exatamente porque a
distância entre os ricos e os demais se tornou tão grande.
Não é um território completamente novo para Obama. O que me
impressionou sobre o discurso, no entanto, foi o que ele teve a
dizer sobre as fontes da crescente desigualdade. Boa parte de
nossa classe política e dos sabichões do país continuam apegados
ao conceito de que a desigualdade crescente, se é que é
problema, é um problema relacionado apenas à falta de
capacitação e educação para os trabalhadores. Mas o presidente
agora parece aceitar os argumentos dos progressistas no sentido
de que a educação é no máximo uma das muitas preocupações que o
país enfrenta, e que a crescente desigualdade de classe nos
Estados Unidos reflete em larga medida escolhas políticas, tais
como a recusa de elevar o salário mínimo em escala comparável à
produtividade e inflação.
E porque o presidente estava disposto a atribuir boa parte da
culpa pela desigualdade crescente a más políticas, ele também se
dispôs a falar com mais franqueza do que no passado sobre formas
de mudar a trajetória do país, entre as quais um aumento do
salário mínimo, a restauração do poder de negociação da classe
trabalhadora, e reforçar, em lugar de enfraquecer, a rede de
segurança social.
E ele também declarou: "Quando o assunto é o orçamento, não
devemos ficar aprisionados em um debate rançoso, que se arrasta
há dois ou três anos. O deficit de oportunidade que cresce
incansavelmente é uma ameaça maior ao nosso futuro do que o
nosso deficit orçamentário, que está encolhendo com igual
rapidez". Enfim! Nossa classe política passou anos obcecada por
um problema falso - preocupada com a dívida e deficit que jamais
representaram qualquer ameaça ao futuro da nação - enquanto não
demonstravam interesse algum pelo desemprego e pela estagnação
de salários. Obama, lamento dizer, embarcou nessa manobra. Mas
agora ele decidiu deixá-la para trás.
Ainda assim, será que isso tem alguma importância? A sabedoria
convencional dos supostos especialistas, no momento, é a de que
presidência de Obama está encalhada, e até a de que o presidente
se tornou irrelevante. Mas isso é tolice. Na verdade, é tolice
de pelo menos três maneiras.
Primeiro, boa parte da sabedoria convencional, no momento,
envolve extrapolações baseadas no início desastroso da reforma
da saúde (Obamacare), e a suposição de que as coisas continuarão
assim pelos próximos três anos. Mas isso não acontecerá. O site
HealthCare.gov já está trabalhando muito melhor, o número de
optantes não pára de crescer, e todas as confusões do lançamento
estão sendo deixadas no passado.
Segundo, Obama não disputará a reeleição. A esta altura, ele
precisa ser avaliado não por seus resultados nas pesquisas de
opinião pública mas por suas realizações, e sua reforma da
saúde, que representa um reforço considerável da rede de
segurança social norte-americana, é uma grande realização. Ele
será considerado um de nossos mais importantes presidentes,
desde que possa defender essa realização e derrotar as
tentativas de destruir outras porções da rede de segurança, como
o programa de assistência alimentar. E ao apresentar argumentos
fortes e ponderados sobre a necessidade de uma rede de segurança
social mais forte, em uma era de crescente desigualdade, ele
está se posicionando exatamente para fazer essa defesa.
E, por fim, as ideias importam, mesmo que não seja possível
transformá-las em leis do dia para a noite. O caminho equivocado
que tomamos em nossa política econômica - nossa obsessão com a
dívida e com os "benefícios", quando o foco deveria estar em
empregos e oportunidades - foi, é claro, em parte definido pelo
poder dos interesses especiais e do dinheiro. Mas ele não se
deve apenas ao exercício de um poder bruto. Os resmungões quanto
à situação fiscal também se beneficiaram de uma espécie de
monopólio ideológico: por muitos anos, ninguém era considerado
sério em Washington a menos que orasse aos pés de Simpson e
Bowles.
Agora, no entanto, o presidente dos Estados Unidos deixou para
trás esse consenso e por fim adotou o tom progressista que
muitos de seus eleitores acreditavam que o definiria ao
escolhê-lo em 2008. Isso vai mudar o discurso - e, no futuro,
acredito, a política do país.
Por isso, não acredite nos cínicos. O discurso de Obama foi
muito importante, e o presidente que o fez ainda pode fazer
grande diferença.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
Paul Krugman é prêmio Nobel de
Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e
professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais
renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20
livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.
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