Da Revista Época
Um dia você descobre, feliz, que tem simpatia pelos casais gays
IVAN MARTINS
O mundo como era antes está
encolhendo. Onde eu vivo, você levanta de manhã, vai à padaria, e dois
garotos trocam um selinho no balcão à sua frente, às 8 horas da manhã.
Ou você vai à festa de aniversário de uma amiga e ela apresenta a todos a
namorada dela. Não é mais uma tremenda exceção.
Diante dessas novidades, que estão por
toda parte, nós somos convidados a escolher diariamente. Podemos
rejeitar como coisa imoral ou anormal, ou podemos aceitar e abraçar,
como parte de uma existência mais livre para todos.
Não se trata de uma escolha trivial.
Rejeitar casais gays significa recusar
alternativas às formas de relacionamento tradicionais. Isso quer dizer
que a maioria das pessoas poderá viver seus amores e suas paixões à luz
do dia, nas ruas, diante da família e dos amigos, e que um grupo menor –
mas, ainda assim, enorme de pessoas – terá de manter relações
clandestinas, como se fossem criminosas, sujeitas aos riscos e tristezas
de uma existência invisível, à margem da sociedade.
No fundo, temos de decidir,
intimamente, se as pessoas que sentem diferente de nós têm direito a
serem felizes como nós. O mundo ao nosso redor já tomou essa decisão faz
algum tempo, na forma de leis e costumes cada vez mais liberais, que
permitem às pessoas viverem como quiserem. Mas isso não muda o fato de
que cada um de nós tem de decidir, sozinho ou sozinha, como se sente
diante dessa nova realidade.
Ontem, ao pensar sobre isso, me lembrei do Nelson Rodrigues.
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Ele escreveu, provavelmente no final
dos anos 60, uma crônica famosa sobre escolhas morais. Chama-se O
ex-covarde. Nela, denuncia a pressão intelectual dos grupos de esquerda
que, naquela época de resistência ao golpe militar, eram muito
influentes entre os jovens e os intelectuais. Nelson esbraveja pelo seu
direito de ser reacionário e anticomunista, de pensar contra a maré. Diz
que aos 50 e tantos anos, depois de muito sofrer, perdeu o medo dos
jovens e dos comunistas. Por isso pode mandá-los às favas, porque é um
ex-covarde.
Ao reler esse texto famoso, ontem à noite, eu me senti, por analogia, um ex-babaca.
Aos 53 anos, me sinto, finalmente,
parte do movimento que abraça a mudança. Os jovens gays me provocam
simpatia equivalente à antipatia de Nelson pelos jovens comunistas. As
opiniões e o comportamento se movem numa direção que eu, de modo geral,
aprovo. Vão ficando para trás as barreiras emocionais que me impediam de
conviver com naturalidade com casais de mulheres ou de homens. As
escolhas sexuais ou afetivas dos outros não mais me incomodam, ao menos
de uma forma que eu perceba. Por isso é possível respeitá-las. Acho essa
uma grande conquista pessoal, e por isso me sinto um ex-babaca.
Ao contrário de mim, muita gente,
continua carregando sentimentos dúbios sobre as relações homossexuais.
Elas não se sentem à vontade para criticar abertamente, mas, quando têm a
chance, emitem opiniões negativas sobre o assunto.
Outro dia, fiz na ÉPOCA uma reportagem
com Daniela Mercury e a mulher dela, Malu Verçosa, e fiquei espantado
com os comentários que as pessoas deixaram no site. De nove comentários,
apenas um era positivo. Não havia nada grosseiro ou agressivo, mas o
tom geral era de ironia e condescendência. “Cada um no seu quadrado, só
não venham dizer que é normal”, dizia um deles. Se não é normal duas
mulheres se gostarem seria o quê – doença?
Nelson Rodrigues morreu em 1980, aos
68 anos. Se ainda estivesse vivo, talvez produzisse textos virulentos (e
tremendamente bem escritos) contra os casais homossexuais, notórios e
anônimos. Ele era, afinal, um conservador brilhante – que estaria
errado.
Uma coisa é opor-se a ideologias
políticas que têm o poder de interferir com a vida pública, como o
socialismo ou neoliberalismo. Outra coisa é atacar as escolhas privadas
das pessoas. Se elas vão se casar com homens ou com mulheres é problema
delas. Essa é uma medida universal de civilidade. Quem se insurge contra
o “politicamente correto”, achando que tem direito de dizer o que quer
sobre a vida dos outros, em geral exibe seus preconceitos. O mundo com
sete bilhões de seres humanos precisa de ideias melhores. Tolerância.
Compreensão. Empatia. Com elas, é possível dar bom dia aos rapazes que
namoram na padaria sem se sentir agredido. Ou abraçar, contente, a amiga
que comemora seu aniversário com a namorada. O melhor jeito de ser
feliz é permitindo que os outros também sejam.
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