Cuernavaca, México – A narração pontual do horror pode não bastar. O desfile interminável de mortos na rua, de imagens de gente pendurada nas pontes, de decapitados, fuzilados, a contagem regular de novas vítimas que se somam as 50 mil da véspera são só isso: imagens e estatísticas. A sociedade prossegue mergulhada em um estranho silêncio. Mas um estouro entre tantos torna-se uma revelação incrível.
O poeta mexicano Javier Sicilia encarna na pele e nos ossos essa transformação da sociedade mexicana. Com ele se passou do silêncio à rua, da mansidão à rebeldia, da solidão e do anonimato ao movimento, da mais profunda injustiça ao sonho de que exista uma justiça. Um drama precipitou esse despertar coletivo. No final de março de 2011, Juan Francisco Sicilia, seu filho de 24 anos, foi assassinado pelo crime organizado junto com outros seis jovens no Estado de Morelos.
Dessa morte íntima, Javier Sicilia fará uma causa, não sua, mas sim de todas as outras vítimas. Javier Sicilia saiu à rua para reclamar justiça, por seu filho e pelas dezenas de milhares de mortos que o narcotráfico deixou no país. Marchas, caravanas ao longo do país, pouco a pouco o México foi abrindo os olhos ante o horror com que convivia. Dessas marchas surgiu um grupo, o Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade.
Sicilia obrigou o presidente que havia lançado uma guerra contra o narcotráfico, Felipe Calderón, a dialogar, aceitar as responsabilidades do Estado, a pactuar uma lei geral de vítimas mediante a qual fossem garantidos os seus direitos. Sem disparar um só tiro. Só com as marchas, as caravanas, a poesia como aposta e alguns cadernos que foram sendo preenchidos com os nomes de tantos mortos anônimos.
O Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade é uma das iniciativas mais originais e únicas do último quarto de século. Deu nome e sobrenome aos mortos. Não tem similar no mundo: não só enfrentou o Estado, como também os criminosos, a impunidade e o pior inimigo da justiça: o silêncio.
“Já não há mais o que dizer. O mundo já não é digno da Palavra”, escreveu Javier Sicilia no último poema de seu último livro. O poeta decidiu calar-se para sempre, mas não o homem de ação que, em seus protestos por justiça coletiva, descobriu o México extenso da dor e do horror.
Em seu mundo natural de Cuernavaca, Javier Sicilia fala com essa marca que fica nos olhos quando a vida fere sem avisar. Não há ódio nem rancor em suas palavras, mas sim o peso de uma consciência viva e a bondade que, para além do mal, persiste no coração humano. Às vezes, a poesia pode convocar a consciência moral de uma nação no momento de máximo horror, de máximo adormecimento dessa consciência. Javier Sicilia e seu movimento tornaram realidade esse “milagre cívico”.
Seu movimento tem uma essência muito pessoal. Frente à violência extrema que assola o México, você saiu à rua para pedir justiça tendo a poesia como mediadora.
Os dois grandes movimentos dos últimos 20 anos que tem uma posição moral indiscutível foram gerados com uma linguagem poética. O zapatismo e o nosso.
Toda linguagem poética rompe a unicidade o unívoco das linguagens políticas e permite voltar a ver a realidade em sua profundidade, em seu horror e em sua humanidade. Ambos os movimentos, com diferentes linguagens poéticas, mas sempre utilizando os recursos da poesia, as imagens, os símbolos, as metáforas, funcionaram e desvelaram um horror que estava oculto sob as linguagens unívocas do político, sob a abstração da estatística. Também revelaram a responsabilidade do Estado frente a essa humanidade negada. No caso do Subcomandante Marcos foi com as comunidades indígenas, no caso do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade foram as vítimas desta guerra contra o narcotráfico lançada pelo ex-presidente Felipe Calderón.
Por que a poesia pode mais que a própria verdade do horror e do incontável número de assassinatos? Qual é sua capacidade de interação, de revelação ou de consolo?
A poesia nasce do mais profundo do humano, nasce do coração, e só desde o coração se pode assumir tanta dor e dar tanto amor. Isso é o que permitiu a ambos movimentos fazer o que fizeram pelas vítimas, ir contra o crime organizado, contra o Estado e plasmar o registo de sua respectiva desumanidade, de seu terrível desprezo, e das dívidas que o Estado tem com as vítimas.
Você conseguiu o que quase ninguém havia conseguido até então: interpelar o Estado, colocá-lo diante de sua responsabilidade.
A base de um Estado consiste em garantir a paz, a segurança e a justiça de uma sociedade. Quando isso não se cumpre há algo que está falhando profundamente.
E isso é o que ocorre no México, onde há 98% de impunidade. Se está se matando, sequestrando e destruindo a vida humana, como faz o crime organizado, há algo que não está funcionando bem no Estado. E alguém tem que interpelar o Estado. Em um dos diálogos com o ex-presidente Felipe Calderón, ele se atreveu a me dizer por que eu não reclamava para os narcos. Eu lhe respondi: diga-me que não há Estado e então nós nos acertaremos com os criminosos. Mas, até onde sei, o Estado tem que responder por isso.
O Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade nasceu em 2011, depois do assassinato de seu filho e amigos. O México já conhecia um grau de horror inqualificável, no entanto, essas mortes despertaram o país, o fizeram olhar de frente para o que estava ocorrendo.
As linguagens que descrevem fenômenos sociais não são suficientes para explicar isso. Por que, a partir de mim e de meu filho, foi possível conseguir uma coisa desta natureza? A explicação histórica, antropológica, não basta para entendê-lo.
Creio que pertence a uma ordem que nos rebaixa, a uma espécie de milagre cívico nascido do horror, da tragédia. Creio que não há resposta. Eu nunca pensei em passar à ação coletiva, não pensava que ia fazer um movimento. Eu só fui protestar, reclamar, expor minha palavra. E algo ocorreu a partir dessa palavra e tudo começou a se articular, algo estava aí à espera de uma palavra-chave, de uma palavra mágica que convocasse uma mobilização, uma dignificação, uma lógica humana de vida, de força moral.
Creio que a partir da morte de meu filho João Francisco e de seus amigos e das palavras proferidas se despertou a reserva moral do país, que estava adormecida, mergulhada. Mas estava viva. O terror adormece, o terror busca escapar por saídas psíquicas que nos levam à aparência de certa indiferença. Mas as reservas estão aí. Enquanto não se matar completamente a alma de um povo, a reserva moral está esperando algo que a detone. Aqui foi uma tragédia e uma palavra dura, indignada, ou seja, dizer: “Basta. Estamos fartos disso”. As forças vivas despertaram a partir da morte. O horror que era negado neste país tornou-se visível.
A partir desse despertar, foram realizadas caravanas em todo o país pela paz. O que descobriu neste périplo?
Vi um México que intuía que existia, do horror e do mal, um México que nunca havia sentido antes com todo o peso de minha carne, um México que toquei com todos os meus sentidos. Vi esse México massacrado, destroçado, sofrendo. Um dia, em uma das caravanas que fizemos em uma das zonas mais duras do país, Durango, se aproximou de mim um menino de cinco anos com o retrato de seu pai. Ele me disse: “esse é meu pai, mataram ele, ontem me entregaram ele envolto em um cobertor”. Esse menino órfão era a imagem do país. Nestes tempos, o horror é a incapacidade de vê-lo. Por isso o horror se torna mais brutal.
Devo dizer também que um Estado corrupto como este também gera uma tremenda corrupção moral. Há uma parte deste país que, junto com o Estado, está profundamente corrompida, degradada. Não se explica que tenhamos chegado onde chegamos. Este é um poder que se baseia na máfia e na delinquência. Por isso temos o que temos. Refazer isso será muito custoso. É muito fácil destruir, corromper. Construir é muito difícil.
O movimento se confrontou com dois poderes: o do Estado e o dos criminosos.
Todo poder é covarde porque utiliza uma força que transcende toda proporção humana. Os criminosos exercem um poder cínico, covarde. E tivemos que confrontar essa imensa covardia, esse imenso cinismo, tanto do Estado quanto dos criminosos. Os desafiamos desde nossa pequenez e com as armas que são o amor e a dignidade. Com isso atravessamos este país, atravessamos os Estados Unidos. Já não podem ocultar o horror, a dor e a impunidade. Terão que encontrar um caminho de justiça e de paz. A força coletiva é muito importante frente ao poder, o poder precisa ver uma nação de pé, expressando-se. A democracia não se resume às urnas. A democracia é o poder do povo. Quando um povo se une e desafia um Estado que não está cumprindo a vontade desse povo, aí começamos a viver a democracia.
Isso é o que ocorreu com as mobilizações. Neste momento, o Estado teve medo e começamos a viver a democracia. Foi a presidência, o poder político, que veio até nós e disse: “dialoguemos”. De acordo, dissemos, mas segundo nossas condições.
Não dialogamos na obscuridade, não dialogamos atrás de portas fechadas, dialogamos frente à nação porque este é um tema da nação e diz respeito a todos nós. Assim foram os diálogos. Chamamos o poder de tu e o confrontamos como o que ele é: servidor desta nação, da cidadania. Mas nós sozinhos não valíamos nada. O poder não zombou de nós porque chegamos unidos.
Vocês conseguiram também algo muito profundo: dar nome e sobrenome aos mortos, dotá-los da identidade que o Estado e os criminosos negavam. Retiraram o manto de silêncio.
O país acumulava cinco anos de profunda dor, de muitas vítimas. Neste momento, tínhamos mais de 40 mil mortos, 10 mil desaparecidos. E apesar disso, nada ocorria. O poder político falava de “baixas colaterais” enquanto que o presidente dizia: “estão se matando entre eles”. O poder negou às vítimas seus direitos civis, seus direitos humanos. Eu disse: através da morte de meu filho assumo a morte de todos. A partir deste momento, todos os jovens assassinados neste país, que são a maioria, são meus filhos. Assim começaram a chegar as vítimas, assim começaram a falar, assim começou a falar a alma de um povo. As vítimas vinham e narravam seu horror, sua dor, com suas próprias palavras.
Fomos do norte ao sul do país para que as vítimas falassem, para que contassem sua história. Uma palavra se tornou a palavra de todos, com seus respectivos nomes, sobrenomes e histórias. Formou-se uma grande coalizão, reunindo setores da esquerda e da direita, o que foi fundamental para este movimento. O nome de João Francisco Sicilia nomeou a todos. O que fizemos foi abrir os espaços públicos aos negados para que nomeassem seus mortos, suas dores, sua condição de vítimas. Eu não fui mais que a voz de uma tribo de pessoas que sofriam, por minha voz falaram as vítimas e através do nome de meu filho estão falando muitas outras vítimas.
Como se salva um ser humano que, em seu nome pessoal e no de sua sociedade, enfrentou o horror? Com esquecimento, perdão?
O perdão é complexo. É preciso entender o perdão. Há quem ache que o perdão é esquecimento, mas não é. O perdão é um dom, é um ato de gratuidade como o amor. Quando me perguntam se perdoei os criminosos que mataram meu filho eu respondo: sim, perdoei. Pedi justiça, não pedi sua morte. Mas para que esse dom se cumpra, o perdão não pode prescindir da justiça. Tem que haver arrependimento da outra parte. Caso o contrário o perdão não ocorre.
Você disse depois da morte de seu filho que não escreveria mais.
Minha relação com a escritura mudou substancialmente. Deixei de escrever poesia.
As palavras degradadas de minha época já não me bastam para dizer, veja o paradoxo, o horror indizível que estamos vivendo, nem para empreender a reconstrução do sentido. O idioma não me basta mais. Estamos diante de fenômenos onde a linguagem entra em crise. Fenômenos de horror, da morte, de ausência de sentido que colocam em crise a língua e, sobretudo, a mais alta expressão da língua que é a expressão literária. Um escritor vive da língua de sua época, quando essa língua se degrada pela barbárie que estamos vivendo no México, pelo uso mentiroso da linguagem, essa língua já não é suficiente para poder refundar os sentidos. Isso ocorreu em meu país.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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