The Observer
Em palestra no Festival
of Dangerous Ideas em Sydney, o escritor e jornalista
norte-americano David Simon disse que o capitalismo perdeu a
visão de seu pacto social
John
Moore / Getty Images / AFP
Moradores
do Brooklyn, em Nova York, recebem alimentos de missão
religiosa em 5 de dezembro. O corte de gastos por parte do
governo federal dificultou o acesso de famílias mais
pobres à alimentação
Por David
Simon
CartaCapital: http://www.cartacapital.com.br/internacional/hoje-existem-dois-eua-meu-pais-e-um-show-de-horrores-5017.html/view
CartaCapital: http://www.cartacapital.com.br/internacional/hoje-existem-dois-eua-meu-pais-e-um-show-de-horrores-5017.html/view
Os Estados Unidos são hoje um país
totalmente dividido no que se refere a sociedade, economia,
política. Existem definitivamente dois EUA. Eu vivo em um,
em uma quadra de Baltimore, no estado de Maryland, que faz
parte da versão viável dos EUA, a parte dos EUA conectada
com a sua própria economia, onde existe um futuro plausível
para as pessoas ali nascidas. A cerca de 20 quarteirões de
distância existe outro país totalmente diferente. É incrível
como temos pouco a ver uns com os outros, e, no entanto,
vivemos em grande proximidade.
Não há arame farpado ao redor de Baltimore
Oeste ou de Baltimore Leste, ao redor de Pimlico, áreas de
minha cidade que foram totalmente divorciadas da experiência
americana que conheço. Mas poderia haver. De certa forma nós
conseguimos caminhar para dois futuros diferentes, e creio
que estamos vendo cada vez mais disso no Ocidente. Não acho
que seja exclusivo dos EUA.
Creio que nos aperfeiçoamos muito na
tragédia e estamos chegando lá mais depressa que muitos
outros lugares talvez ainda um pouco mais racionais. Mas
minha ideia perigosa envolve um homem que foi deixado de
lado no século XX e quase parecia ser o final da piada do
século XX: um homem chamado Karl Marx.
Não sou marxista no sentido de que não
acredito em uma resposta clínica muito específica do
marxismo para nossos problemas econômicos. Marx era muito
melhor ao fazer diagnósticos do que como clínico. Ele era
bom em descobrir os erros ou o que poderia estar errado com
o capitalismo se não cuidassem dele, e muito menos
verossímil no aspecto de como se poderia solucionar isso.
Se você leu O Capital, ou tem as Cliff Notes, sabe que suas
imagens de como o marxismo clássico – de como sua lógica
funcionaria quando aplicada – mais ou menos evoluem para
absurdos tais como o encolhimento do Estado e platitudes
semelhantes. Mas ele foi realmente arguto sobre o que dá
errado quando o capital vence de maneira inequívoca, quando
ele consegue tudo o que quer.
Essa talvez seja a tragédia definitiva do
capitalismo em nossa era, que ele alcançou a predominância
sem consideração pelo pacto social, sem estar conectado a
qualquer outra métrica de progresso humano.
Nós entendemos o lucro. Em meu país,
medimos as coisas pelo lucro. Escutamos os analistas de Wall
Street. Eles nos dizem o que devemos fazer a cada trimestre.
O relatório trimestral é Deus. Vire-se de frente para Deus.
Vire-se de frente para Meca, você sabe. Você atingiu seu
número? Você não atingiu seu número? Você quer seu bônus?
Você não quer seu bônus?
E essa ideia de que o capital é a métrica,
de que o lucro é a métrica pela qual mediremos a saúde de
nossa sociedade, é um dos enganos fundamentais dos últimos
30 anos. Eu a dataria em meu país exatamente em 1980, e ela
venceu.
O capitalismo arrasou com o marxismo no
final do século XX e predominou em todos os sentidos. Mas a
grande ironia disso é que a única coisa que realmente
funciona não é ideológica, é impura, tem elementos dos dois
argumentos e na verdade nunca alcança algum tipo de
perfeição partidária ou filosófica.
É pragmática, inclui os melhores aspectos
do pensamento socialista e do capitalismo de livre mercado.
E funciona porque não deixamos que ela funcione totalmente.
E essa é uma ideia dura de pensar – que não existe uma
mágica que nos tire da confusão na qual nos metemos. Mas que
confusão!
Depois da Segunda Guerra Mundial, o
Ocidente emergiu com a economia norte-americana saindo de
sua extravagância do tempo de guerra, surgindo como o melhor
produto. Era o melhor produto. Funcionava melhor. Estava
demonstrando seu poder não apenas em termos do que fez
durante a guerra, mas em termos de como era fácil criar
riqueza em massa.
Além disso, oferecia muito mais liberdade
e fazia a única coisa que garantia que o século XX seria – e
perdoem o tom chauvinista disto – o século norte-americano.
Ele pegou uma classe trabalhadora que não
tinha uma renda perceptível no início do século, que
trabalhava por salários de subsistência. E a transformou em
uma classe de consumidores que não apenas tinha dinheiro
para comprar todas as coisas de que precisavam para viver,
como o suficiente para comprar um monte de porcarias que
eles queriam mas de que não precisavam. Essa foi a máquina
que nos conduziu.
Não era apenas que podíamos fornecer
coisas, ou que tivéssemos as fábricas, o know-how ou o
capital. Nós criávamos nossa própria demanda, e começamos a
exportar essa demanda por todo o Ocidente. E o padrão de
vida possibilitou fabricar coisas em um ritmo incrível e
vendê-las.
E como fizemos isso? Fizemos não cedendo a
qualquer lado. Esse foi o novo acordo. Essa foi a grande
sociedade. Essa foi toda a discussão sobre negociação
coletiva e dissídios, e foi uma discussão que significava o
seguinte: nenhum lado pode vencer.
Os trabalhadores não conseguem vencer
todos os seus argumentos, nem o capital. Mas é na tensão, é
na verdadeira luta entre os dois, que o capitalismo
realmente se torna funcional, que ele se torna algo em que
toda camada da sociedade tem um interesse, que todas
compartilham.
Os sindicatos foram realmente importantes.
Os sindicatos faziam parte da equação. Não importava se eles
vencessem o tempo todo, não importava se eles perdessem o
tempo todo, apenas importava que eles tinham de vencer
algumas vezes. Mais: eles tinham de armar uma briga e tinham
de discutir pela demanda e a equação e pela ideia de que os
trabalhadores não valiam menos, eles valiam mais.
Afinal, abandonamos isso e acreditamos na
ideia da transmissão gradual da riqueza e na ideia da
economia de mercado. Em suma, o mercado sabe melhor, a um
ponto em que hoje o liberalismo em meu país está realmente
sendo levado a sério como uma forma inteligente de
pensamento político. Isso me surpreende. Mas é assim. As
pessoas estão dizendo que não preciso de nada além de minha
capacidade de lucrar. Não estou conectado à sociedade. Não
me importa como a estrada foi construída, não me importa de
onde vem o bombeiro, não me importa quem educa as crianças
que não são meus filhos. Eu sou eu. É a vitória do ego. Eu
sou eu, ouçam-me rugir.
Surpreende-me que tenhamos chegado a este
ponto, porque basicamente, ao vencer sua vitória, ao ver
aquele Muro cair e ver a viagem do antigo Estado stalinista
em direção ao nosso modo de pensar em termos de mercados ou
de ser vulnerável, você teria pensado que tivéssemos
aprendido o que funciona. Em vez disso, decaímos ao que só
pode ser descrito como ganância. Isto é apenas ganância. É
uma incapacidade de ver que todos estamos conectados, que a
ideia de dois Estados Unidos é implausível, assim como de
duas Austrálias, duas Espanhas ou duas Franças.
As sociedades são exatamente o que elas
parecem. Se todo mundo estiver empenhado e se todo mundo
apenas acreditar que tem "uma parte", não quer dizer que
todos vão receber a mesma quantia. Não significa que não
haverá pessoas que são os capitalistas de risco que
pretendem ganhar mais. Não é cada um segundo suas
necessidades ou algo que seja puramente marxista, mas que
todo mundo sinta que "se a sociedade tiver êxito, eu terei
êxito, não ficarei para trás". E não existe uma sociedade no
Ocidente hoje, neste momento, que seja capaz de sustentar
isso para toda a sua população.
Assim, em meu país estamos vendo um show
de horrores. Estamos vendo uma retração em termos de renda
familiar, o abandono de serviços básicos como a educação
pública, a educação pública funcional. Vemos a subclasse
caçada por meio de uma suposta guerra às drogas perigosas
que é na verdade apenas uma guerra contra os pobres e nos
transformou no Estado mais encarcerante da história da
humanidade. Falo em termos dos simples números de pessoas
que colocamos nas prisões norte-americanas e da porcentagem
de norte-americanos que colocamos nas prisões. Nenhum outro
país na face da Terra prende pessoas no número e no ritmo em
que o fazemos.
Tornamo-nos algo diferente do que
reivindicamos no sonho americano, e tudo por causa de nossa
incapacidade básica de compartilhar, de sequer considerar um
impulso socialista.
"Socialismo" é um palavrão em meu país.
Tenho de fazer essa ressalva no início de cada palestra:
"Oh, aliás, não sou marxista, vocês sabem". Vivi ao longo do
século XX. Não acredito que uma economia dirigida pelo
Estado possa ser tão viável quanto o capitalismo de mercado
para produzir riqueza em massa. Não acredito.
Estou totalmente comprometido com a ideia
de que o capitalismo tem de ser o modo como geraremos
riqueza em massa no próximo século. Essa discussão terminou.
Mas a ideia de que não estará casado com um pacto social, de
que a distribuição dos benefícios do capitalismo não
incluirá todo mundo da sociedade em medida razoável, isso é
incrível para mim.
E assim o capitalismo está prestes a
arrancar a derrota das presas da vitória com sua própria
mão. Esse é o fim surpreendente desta história, a menos que
revertamos o rumo. A menos que levemos em consideração,
senão os remédios de Marx, pelo menos o diagnóstico. Ele viu
o que aconteceria se o capital triunfasse de modo
inequívoco, se conseguisse tudo o que queria.
E uma das coisas que o capital queria
inequivocamente e com certeza é a diminuição da mão-de-obra.
Eles queriam que a mão-de-obra fosse diminuída porque a
mão-de-obra é um custo. E se a mão-de-obra for diminuída,
vamos traduzir: em termos humanos, significa que os seres
humanos valem menos.
A partir desse momento, a menos que
revertamos o rumo, o ser humano médio vale menos no planeta
Terra. A menos que levemos em conta o fato de que talvez o
socialismo e o impulso socialista deva ser novamente
abordado; ele tem de ser casado como era casado nos anos
1930, 40 e até nos 50, com a máquina que é o capitalismo.
Confundir o capitalismo com uma planta
detalhada para se construir uma sociedade me parece uma
ideia realmente perigosa, de uma maneira ruim. O capitalismo
é uma máquina notável para produzir riqueza. É uma grande
ferramenta para se ter na caixa de ferramentas se você
estiver tentando construir uma sociedade e quiser que essa
sociedade progrida. Você não desejaria avançar neste ponto
sem ela. Mas não é uma planta para se construir a sociedade
justa. Existem outras métricas além do relatório trimestral
de lucros.
A ideia de que o mercado solucionará as
coisas como preocupações ambientais, como nossas divisões
raciais, nossas distinções de classe, nossos problemas com a
educação e inclusão de uma geração de trabalhadores na
economia depois de outra quando essa economia está mudando;
a ideia de que o mercado vá atender a todas as preocupações
humanas e ainda maximizar os lucros é juvenil. É uma ideia
juvenil e está sendo defendida em meu país apaixonadamente e
estamos descendo pelo ralo. E isso me aterroriza porque fico
incrédulo ao ver como ficamos à vontade ao nos absolvermos
do que é basicamente uma opção moral. Estamos todos juntos
nisto ou não?
Se você visse o fracasso que foi, e é, a
luta sobre algo tão básico quanto a política de saúde
pública em meu país nos últimos anos, imagine a ineficácia
que os norte-americanos vão oferecer ao mundo sobre algo
realmente complexo como o aquecimento global. Não podemos
nem conseguir atendimento de saúde para nossos cidadãos em
um nível básico. E o argumento se resume a: "Maldito
presidente socialista. Ele pensa que vou pagar para manter
outras pessoas saudáveis? Isso é socialismo, filho da mãe".
O que você pensa que é o seguro-saúde em
grupo? Você sabe que pergunta a esses sujeitos: "Você tem
seguro-saúde em grupo onde você...?" "Oh, sim, tenho..."
você sabe, "minha firma de advocacia..." Assim, quando você
fica doente você pode pagar pelo tratamento.
O tratamento vem porque você tem pessoas
suficientes em sua firma de advocacia, de modo que você pode
ter seguro-saúde suficiente para elas se manterem saudáveis.
Assim as tabelas de prêmios e riscos funcionam, e vocês
todos, quando ficam doentes, podem ter os recursos para
sarar porque contam com a ideia do grupo. Sim. E eles
balançam as cabeças, e você diz: "Irmão, isso é socialismo.
Você sabe que é".
E... você sabe quando você diz: "Está bem,
vamos fazer o mesmo que fazemos para sua firma de advocacia,
mas vamos fazer para 300 milhões de norte-americanos e vamos
torná-lo acessível a todo mundo dessa maneira. E sim, isso
significa que você estará pagando para os outros caras da
sociedade, da mesma maneira que você paga para os outros
caras da firma... Os olhos deles brilham. Você vê que eles
não querem ouvir isso. É demais. Demais contemplar a ideia
de que todo o país poderia na verdade estar conectado.
Por isso fico surpreso de que ainda hoje
eu esteja aqui de pé dizendo que talvez queiramos recuperar
esse sujeito Marx do qual estávamos rindo, senão por suas
prescrições, pelo menos pelo retrato que ele fez do que é
possível se você não mitigar a autoridade do capitalismo, se
você não abraçar alguns outros valores de esforço humano.
E é basicamente disso que se tratava The Wire, a série de TV. Era sobre pessoas
que valiam menos e não eram mais necessárias, como talvez 10
ou 15% do meu país não são mais necessários para a operação
da economia. Era sobre eles tentando resolver, por falta de
um termo melhor, uma crise existencial. Em sua irrelevância,
sua irrelevância econômica, eles continuavam não obstante em
campo, ocupando este lugar chamado Baltimore, e eles tinham
de sobreviver de alguma forma.
Esse é o grande show de horrores. O que
vamos fazer com todas essas pessoas que conseguimos
marginalizar? Era mais ou menos interessante quando se
tratava apenas de raça, quando você podia fazer isso com
base nos temores raciais das pessoas, e eram apenas os
negros e pardos nas cidades norte-americanas que tinham os
índices mais altos de desemprego e de dependência de drogas,
eram marginalizados e tinham sistemas escolares péssimos e
falta de oportunidades.
E é interessante nesta última recessão ver
a economia encolher e começar a atirar as pessoas brancas de
classe média no mesmo barco, de modo que elas se tornaram
vulneráveis à guerra das drogas, por exemplo com a
metanfetamina, ou se tornaram incapazes de qualificar-se
para empréstimos para a universidade. E de repente a fé na
máquina econômica, na autoridade econômica de Wall Street e
na lógica do mercado começou a se distanciar das pessoas. E
elas perceberam que não se trata apenas de raça, trata-se de
algo ainda mais aterrorizante. Trata-se de classe. Você está
no topo da onda ou está embaixo?
Então, como isso pode melhorar? Em 1932,
melhorou porque eles distribuíram as cartas de novo e houve
uma lógica comunitária para estabelecer que ninguém seria
deixado para trás. Vamos resolver isto. Vamos abrir os
bancos. Das profundezas daquela depressão, um pacto social
foi feito entre trabalhador, entre mão-de-obra e capital que
na verdade permitiu que as pessoas tivessem alguma
esperança.
Ou vamos fazer isso de alguma maneira
prática quando as coisas ficarem suficientemente ruins, ou
vamos continuar fazendo como estamos fazendo. E nesse ponto
haverá tantas pessoas paradas do lado de fora desta confusão
que alguém vai pegar um tijolo, porque você sabe que quando
as pessoas chegam ao fim sempre há o tijolo. Espero que
escolhamos a primeira opção, mas estou perdendo a fé.
Outra coisa que havia em 1932 e que não
existe hoje é que algum elemento da vontade popular podia
ser expresso por meio do processo eleitoral em meu país.
O último trabalho do capitalismo – tendo
ganhado todas as batalhas contra a mão-de-obra, tendo
adquirido a autoridade máxima, quase a autoridade moral
máxima do que é uma boa ideia ou não, ou do que é valorizado
e o que não é –, a última viagem do capital em meu país foi
comprar o processo eleitoral, a única via para reformas que
os norte-americanos ainda tinham.
Neste momento o capital efetivamente
comprou o governo, e você testemunhou isso novamente com a
derrocada do sistema de saúde em termos dos 450 milhões de
dólares que foram depositados sobre o Congresso, a parte
mais danificada do meu governo, para que a vontade popular
nunca emergisse de fato naquele processo legislativo.
Por isso não sei o que faremos se não
pudermos realmente controlar o governo representativo que,
nós alegamos, manifestará a vontade popular. Mesmo que todos
começássemos a ter os mesmos sentimentos que estou
defendendo agora, não tenho certeza se ainda poderemos
efetivá-los, da mesma maneira que pudemos no auge da Grande
Depressão, por isso talvez seja mesmo o tijolo. Mas espero
que não.
(David Simon é um escritor e jornalista
americano e foi produtor-executivo de The Wire. Esta é uma edição de trechos de
uma palestra feita no Festival de Ideias Perigosas em
Sydney, Austrália.)
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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