segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

MARTÍ E A REVOLUÇÃO CUBANA


Frei  Betto
     
         Em  evento internacional sobre o equilíbrio do mundo, patrocinado pela UNESCO,  comemora-se em Havana, na última semana de janeiro, o 160º aniversário do  nascimento de José  Martí.
         A história  da América Latina é rica em líderes sociais que encarnaram, em ideias e  atitudes, utopias libertárias. Raros, entretanto, aqueles que, se por  milagre ressuscitassem do túmulo, se deparariam com a realização efetiva de  seus sonhos e projetos. Um deles é José Martí, que veria na Revolução Cubana  que seu sacrifício não foi em vão – morreu de armas nas mãos, em 1895,  defendendo a emancipação de Cuba do domínio espanhol.
         Sua luta  disseminou raízes que floresceram no projeto de soberania e libertação  nacionais, com expressiva ressonância internacionalista, realizado pelo povo  cubano nas últimas seis décadas, sob a liderança dos irmãos Fidel e Raúl  Castro.
         Graças a  Martí, a Revolução Cubana preservou a sua cubanidade, a sua originalidade,  sem se deixar engessar por conceitos dogmáticos que, em outros países  socialistas, produziram tão nefastas consequências. Martí tinha o dom de ser  um homem de ação sem deixar de ser um intelectual refinado, um pragmático e  um espiritualista. Jamais perdeu o senso crítico e mesmo autocrítico.
         Martí viveu 15  anos nos EUA, em Nova York, entre 1880 a 1895, quando ali vicejava uma  radical transformação que imprimiria ao capitalismo seu caráter agressivo.  Ao mesmo tempo,possibilitou-lhe o contatocom o que havia de mais avançado nos pensamentos  filosóficos, científicos e espirituais.
         Na sociedade  norte-americana, Martí constatou o que significa um desenvolvimento  econômico centrado na apropriação privada da riqueza, indiferente às reais  necessidades humanas, e como essa concepção egocêntrica limitava a vida  espiritual.
         O  papel de Cuba no equilíbrio da América Latina e do Caribe deita raízes no  século XVIII, quando, graças à influência do enciclopedismo, a cultura  cubana ganhou identidade e expressão. Dentro desse processo destacaram-se  homens de profundo senso espiritual, como o bispo Espada, Félix Varela, Luz  y Caballero, para culminar em Martí e naqueles que ele formou, como Enrique  José Varona, mentor dos jovens universitários nos primórdios do século XX.
         O que marcou  a geração de Varela, Luz e, em seguida, a de Martí, foi a capacidade de  assimilar as novas ideias iluministas sem despregar os pés do solo  latino-americano e caribenho. Há um princípio de educação popular que bem se  aplica a essas figuras históricas, e também explica a originalidade de seus  pensamentos: a cabeça pensa onde os pés pisam.
         Nas pegadas do  ideário que os movia estava o sofrimento dos povos indígenas e dos escravos,  a sanha colonialista, a luta pioneira de meu confrade, frei Bartolomeu de  las Casas, os princípios cristãos da radical sacralidade de cada ser humano,  considerado filho amado de Deus, independentemente de sua classe, etnia ou  atividade social.
A luta por liberdade e justiça foi iniciada, em nosso  Continente, pelos povos indígenas. Milhões foram encarcerados, enforcados,  queimados vivos, decapitados e esquartejados. Tupac Amaru clamou contra a  opressão colonialista. Hatuey, líder indígena de Cuba, foi queimado em uma  fogueira. Consta que, ao lhe perguntarem se queria aceitar a religião de  seus algozes espanhóis, de modo a garantir seu lugar no Céu, perguntou se  eles também, ao morrerem, iriam para o Céu. Ao responderem que sim, Hatuey  disse que não queria estar com eles no Paraíso... Também mulheres indígenas,  como Bartolina Sisa e Micaela Bastidas, lutaram e morreram em defesa dos  direitos de seus povos.
         Todos esses  antecedentes explicam a Revolução Cubana e por que ela se destaca como fator  de resistência na América Latina. Antes da vitória em Sierra Maestra, nosso  Continente era zona de ocupação e extorsão, exploração e submissão aos  países mais poderosos do Ocidente. A Revolução Cubana deu um basta ao  imperialismo, resgatou o espírito de soberania dos povos caribenhos e  latino-americanos, despertou a consciência crítica de nossa gente, fomentou  movimentos libertários, comprovou que a utopia pode, sim, se transformar em  topia, e que a esperança nunca é em vão.
         Cuba venceu o  colonialismo espanhol eliminando a escravatura e assegurando a sua  independência como nação. Com a vitória da Revolução, impôs limites à  expansão imperialista dos  EUA.
         Ali ocorreu um  movimento de libertação nacional que abraçou o projeto socialista. Mas o  equilíbrio se manteve. Martí não foi trocado por Marx; a fé religiosa dos  cubanos não foi eliminada pelo materialismo histórico e dialético; a arte  não se deixou descaracterizar pelos estreitos limites do realismo  socialista. Aquilo que no pensamento europeu soava como antagônico, aqui na  América Latina e no Caribe se revelou paradoxo. O que parecia  irreconciliável do outro lado do oceano, aqui apresenta convergência, como o  marxismo destituído de dogmas e o cristianismo desprovido de arrogância  elitista, mas sensível ao clamor dos pobres, o que resultou na Teologia da  Libertação.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com  Marcelo Gleiser, de “Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros  livros.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário