Jornalismo: tomar partido é uma coisa. Vender-se é
outra história
26/12/2012 |
Leonardo Sakamoto
Blog do Sakamoto
As pessoas vêem e sentem o mundo de formas diferentes. Cada um “filtra” o dia-a-dia da sua maneira e constrói diferentes realidades. Cada um possui preconceitos, medos, interesses pessoais que mudam a forma como entendemos e interpretamos as coisas. Duas pessoas que estão lado a lado vendo um mesmo fato podem não contar a mesma história.
A melhor forma de contar uma história é assistindo-a pessoalmente. Se for impossível isso, deve-se ouvir o maior número possível de pessoas que viram ou participaram do fato. Cada um vai dar sua versão, recheada de opiniões pessoais. Cada um vai contribuir com a reconstrução de uma realidade que passou. Com a sobreposição de versões é possível montar um retrato aproximado do fato. Quanto mais versões ouvidas, mais completo será o retrato.
Veículos de comunicação não são imparciais ou independentes. Pertencentes a empresas, a governos ou entidades da sociedade civil, eles têm opiniões e interesses. O que não é ruim – ruim é esconder isso do leitor. Quando determinado jornal declara voto em um candidato logo no começo da campanha ajuda o leitor a entender o que vai ler. Pois, querendo ou não, isso vai influenciar muita coisa internamente.
O alinhamento automático de um jornalista com as opiniões do veículo e de seus proprietários (sejam conservadores, progressistas ou vale-o-quanto-paga) faz com que uma boa notícia morra antes mesmo de nascer. Tendo interiorizado as posições da empresa, repórteres, fotógrafos e – principalmente – editores aderem alegremente e passam a reproduzi-las. Agem de forma orquestrada, sem necessidade de serem orquestrados. Mas a manipulação não é a única forma de distorção dos fatos, por incrível que pareça. Nem a mais comum. A preguiça, a arrogância e a incompetência de colegas de profissão diante do trabalho pode fazer estragos incalculáveis.
Mesmo tendo o seu alinhamento, muitas empresas de mídia recomendam que seus empregados evitem alinhamento público com um dos lados de uma questão. Exigem uma atitude “profissional”. Porém, se a imparcialidade é impossível, não seria melhor ser sincero com o leitor e revelar seu “lado” na história ao mesmo tempo em que se abre espaço para ouvir o maior número possível de lados de uma questão?
Já cobri guerra e locais com conflitos armados. Sempre tentei ouvir ao máximo os dois lados – no caso de Timor Leste, fiz mais de 70 entrevistas em dois meses de trabalho. Por isso, falo com todas as letras: não existe observador independente. Você vai influenciar aquela realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido, como tomei e deixei claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem que é necessário buscar uma pretensa imparcialidade. O que só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade. Há quem tente ferozmente e ache bonito. Nessas situações tomei partido de quem estavam sofrendo graves violações de direitos humanos e não me arrependo.
Tomar partido se reflete na escolha da que pauta você vai fazer, sob a ótica de quem. Concordo com Robert Fisk, o lendário correspondente para o Oriente Médio do jornal inglês Independent, que diz que em situações de confronto, de limite, deve-se tomar opção pelos mais fracos. Ou, mais especificamente, dos empobrecidos e marginalizados, no que se refere à realidade política, econômica, social, cultural e ambiental.
Tomar partido não significa distorcer os fatos, pelo contrário, é trazer o que historicamente é jogado para baixo do tapete, agindo conscientemente no sentido de contrabalancear junto à opinião pública o peso dos lados envolvidos na questão. Distorcer é má fé, preguiça ou incompetência – coisa que muito jornalista que se diz imparcial faz aos montes, aplaudido por quem manda. Aqui ou lá fora.
Investimento – Não seria ótimo se nós, jornalistas, avisássemos aos leitores quando estamos reportando ou opinando a respeito de um assunto sobre o qual temos, direta ou indiretamente, algum interesse pessoal? Não estou falando de preocupações universais e sim de temas que podem trazer ganhos ao jornalista no curto prazo. Por exemplo, quando escrevemos uma matéria sobre determinada empresa de capital aberto da qual temos ações.
Já vi jornais, como o The New York Times, publicarem artigos de análise econômica e no seu rodapé, naquele espaço em que explicam quem é o autor, detalharem que alguns papéis tratados no texto poderiam ter relação com os papéis comercializados por um dos autores.
Sem entrar no mérito da discussão, fico imaginando quantos colegas que soltaram artigos – e mesmo reportagens – inflamados contra a manuitenção do preço da gasolina pela Petrobras (não estou entrando no mérito da política) possuem ações da empresa. Ter ações pode não influenciar na crítica que você publica, é claro. E uma crítica sozinho pode não ter forças para influenciar o futuro econômico da empresa. Mas o leitor tem o direito de saber.
Isso pode ser pequeno, até besta. Mas passar a sensação de transparência ao consumidor da notícia apenas agrega valor à qualidade de imprensa. E afasta dúvidas incômodas.
Não é de hoje que colegas que atuam na área de moda arrancam os cabelos ao contar histórias de gente do jabá que, em troca de viagens, mordomias, produtos ou do velho e bom dindim, elevam esterco à categoria de produtos de qualidade internacional. Há quem faça qualquer negócio – até porque não se preocupa com o interesse público, mas com sua imagem e conta bancária.
Vender, contudo, produto publicitário como jornalístico para tentar se valer da suposta credibilidade da profissão é o fim da picada, o ó do borogodó, a xepa. Descontados os casos de falta de ética crônica de colegas que se dizem independentes mas que trabalham a soldo de governos e partidos ou de anunciantes nacionais ou estrangeiros, alugando o seu ponto de vista, temos casos tragicômicos no varejo.
Colunistas sociais que ganham carros importados e pedem para trocá-los por blindados para falar bem do lançamento do possante.
Chefes de redação que acertam com empresas de turismo pacotes para eles, os filhos e os sobrinhos poderem ir à Disney antes de autorizar a publicação de matéria elogiosa para a referida empresa.
Editores que, para escrever sobre barcos, ganham barcos de presente.
Gente que recebe uma fortuna para tuitar a favor de algo, mas “esquece” de avisar ao leitor disso e depois reclama quanto é criticada.
É. O povo diz que tem que sobreviver de alguma forma.
Anúncios com cara de reportagem feitos por jornalistas têm sido cada vez mais comuns. De blogs a revistas, aparecem como material noticioso sem o “Informe Publicitário” ou “Publieditorial” – que já é insuficiente por si, a bem da verdade. É papel de uma marca tentar melhorar sua imagem. Mas é dever de quem assume o papel de jornalista não deixar ser usado como escadinha ou lava-rápido da reputação alheia.
Tem muita gente vendida por aí? Sim, claro, como este post bem lembra. Porém, o que assusta muitas pessoas é que existam aqueles que não estão à venda. Neste mundo que cisma em ser pós-moderno é difícil explicar que ainda há alguns nortes que valem a pena ser seguidos. Não grandes discursos de Verdade, pois isso não existe. Mas noções éticas básicas que, construídas e compartilhadas, melhoram a nossa existência. Como já disse aqui antes, para quem acredita que a vida não é um grande “cada um por si e Deus por todos”, isso é extremamente desesperador.
26/12/2012 |
Leonardo Sakamoto
Blog do Sakamoto
As pessoas vêem e sentem o mundo de formas diferentes. Cada um “filtra” o dia-a-dia da sua maneira e constrói diferentes realidades. Cada um possui preconceitos, medos, interesses pessoais que mudam a forma como entendemos e interpretamos as coisas. Duas pessoas que estão lado a lado vendo um mesmo fato podem não contar a mesma história.
A melhor forma de contar uma história é assistindo-a pessoalmente. Se for impossível isso, deve-se ouvir o maior número possível de pessoas que viram ou participaram do fato. Cada um vai dar sua versão, recheada de opiniões pessoais. Cada um vai contribuir com a reconstrução de uma realidade que passou. Com a sobreposição de versões é possível montar um retrato aproximado do fato. Quanto mais versões ouvidas, mais completo será o retrato.
Veículos de comunicação não são imparciais ou independentes. Pertencentes a empresas, a governos ou entidades da sociedade civil, eles têm opiniões e interesses. O que não é ruim – ruim é esconder isso do leitor. Quando determinado jornal declara voto em um candidato logo no começo da campanha ajuda o leitor a entender o que vai ler. Pois, querendo ou não, isso vai influenciar muita coisa internamente.
O alinhamento automático de um jornalista com as opiniões do veículo e de seus proprietários (sejam conservadores, progressistas ou vale-o-quanto-paga) faz com que uma boa notícia morra antes mesmo de nascer. Tendo interiorizado as posições da empresa, repórteres, fotógrafos e – principalmente – editores aderem alegremente e passam a reproduzi-las. Agem de forma orquestrada, sem necessidade de serem orquestrados. Mas a manipulação não é a única forma de distorção dos fatos, por incrível que pareça. Nem a mais comum. A preguiça, a arrogância e a incompetência de colegas de profissão diante do trabalho pode fazer estragos incalculáveis.
Mesmo tendo o seu alinhamento, muitas empresas de mídia recomendam que seus empregados evitem alinhamento público com um dos lados de uma questão. Exigem uma atitude “profissional”. Porém, se a imparcialidade é impossível, não seria melhor ser sincero com o leitor e revelar seu “lado” na história ao mesmo tempo em que se abre espaço para ouvir o maior número possível de lados de uma questão?
Já cobri guerra e locais com conflitos armados. Sempre tentei ouvir ao máximo os dois lados – no caso de Timor Leste, fiz mais de 70 entrevistas em dois meses de trabalho. Por isso, falo com todas as letras: não existe observador independente. Você vai influenciar aquela realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido, como tomei e deixei claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem que é necessário buscar uma pretensa imparcialidade. O que só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade. Há quem tente ferozmente e ache bonito. Nessas situações tomei partido de quem estavam sofrendo graves violações de direitos humanos e não me arrependo.
Tomar partido se reflete na escolha da que pauta você vai fazer, sob a ótica de quem. Concordo com Robert Fisk, o lendário correspondente para o Oriente Médio do jornal inglês Independent, que diz que em situações de confronto, de limite, deve-se tomar opção pelos mais fracos. Ou, mais especificamente, dos empobrecidos e marginalizados, no que se refere à realidade política, econômica, social, cultural e ambiental.
Tomar partido não significa distorcer os fatos, pelo contrário, é trazer o que historicamente é jogado para baixo do tapete, agindo conscientemente no sentido de contrabalancear junto à opinião pública o peso dos lados envolvidos na questão. Distorcer é má fé, preguiça ou incompetência – coisa que muito jornalista que se diz imparcial faz aos montes, aplaudido por quem manda. Aqui ou lá fora.
Investimento – Não seria ótimo se nós, jornalistas, avisássemos aos leitores quando estamos reportando ou opinando a respeito de um assunto sobre o qual temos, direta ou indiretamente, algum interesse pessoal? Não estou falando de preocupações universais e sim de temas que podem trazer ganhos ao jornalista no curto prazo. Por exemplo, quando escrevemos uma matéria sobre determinada empresa de capital aberto da qual temos ações.
Já vi jornais, como o The New York Times, publicarem artigos de análise econômica e no seu rodapé, naquele espaço em que explicam quem é o autor, detalharem que alguns papéis tratados no texto poderiam ter relação com os papéis comercializados por um dos autores.
Sem entrar no mérito da discussão, fico imaginando quantos colegas que soltaram artigos – e mesmo reportagens – inflamados contra a manuitenção do preço da gasolina pela Petrobras (não estou entrando no mérito da política) possuem ações da empresa. Ter ações pode não influenciar na crítica que você publica, é claro. E uma crítica sozinho pode não ter forças para influenciar o futuro econômico da empresa. Mas o leitor tem o direito de saber.
Isso pode ser pequeno, até besta. Mas passar a sensação de transparência ao consumidor da notícia apenas agrega valor à qualidade de imprensa. E afasta dúvidas incômodas.
Não é de hoje que colegas que atuam na área de moda arrancam os cabelos ao contar histórias de gente do jabá que, em troca de viagens, mordomias, produtos ou do velho e bom dindim, elevam esterco à categoria de produtos de qualidade internacional. Há quem faça qualquer negócio – até porque não se preocupa com o interesse público, mas com sua imagem e conta bancária.
Vender, contudo, produto publicitário como jornalístico para tentar se valer da suposta credibilidade da profissão é o fim da picada, o ó do borogodó, a xepa. Descontados os casos de falta de ética crônica de colegas que se dizem independentes mas que trabalham a soldo de governos e partidos ou de anunciantes nacionais ou estrangeiros, alugando o seu ponto de vista, temos casos tragicômicos no varejo.
Colunistas sociais que ganham carros importados e pedem para trocá-los por blindados para falar bem do lançamento do possante.
Chefes de redação que acertam com empresas de turismo pacotes para eles, os filhos e os sobrinhos poderem ir à Disney antes de autorizar a publicação de matéria elogiosa para a referida empresa.
Editores que, para escrever sobre barcos, ganham barcos de presente.
Gente que recebe uma fortuna para tuitar a favor de algo, mas “esquece” de avisar ao leitor disso e depois reclama quanto é criticada.
É. O povo diz que tem que sobreviver de alguma forma.
Anúncios com cara de reportagem feitos por jornalistas têm sido cada vez mais comuns. De blogs a revistas, aparecem como material noticioso sem o “Informe Publicitário” ou “Publieditorial” – que já é insuficiente por si, a bem da verdade. É papel de uma marca tentar melhorar sua imagem. Mas é dever de quem assume o papel de jornalista não deixar ser usado como escadinha ou lava-rápido da reputação alheia.
Tem muita gente vendida por aí? Sim, claro, como este post bem lembra. Porém, o que assusta muitas pessoas é que existam aqueles que não estão à venda. Neste mundo que cisma em ser pós-moderno é difícil explicar que ainda há alguns nortes que valem a pena ser seguidos. Não grandes discursos de Verdade, pois isso não existe. Mas noções éticas básicas que, construídas e compartilhadas, melhoram a nossa existência. Como já disse aqui antes, para quem acredita que a vida não é um grande “cada um por si e Deus por todos”, isso é extremamente desesperador.
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