Incluir não é fácil
Autor(es): Renato Janine Ribeiro |
Valor Econômico - 28/01/2013 |
Circulou muito no Facebook uma recomendação do blog "Viajando com os
filhos", que consistia em conselhos para lidar com a babá. A autora,
que em São Paulo se hospeda num dos melhores hotéis da cidade, discutia
passagem, hospedagem, comida e bebida de sua empregada. O texto é
detalhista e chocante. A patroa chama a babá de gênero de "terceira
necessidade" e fala dela como se fosse um animal. Curiosamente, não
parece mesquinha: paga um excelente quarto de hotel para a empregada; o
problema é que não tem noção de como lidar com um ser humano.
Por que discutir esse tema numa coluna dedicada à política? Porque,
sem querer, o texto - que foi retirado do ar, quando o blog se deu
conta da péssima publicidade que angariou com ele - mostra as
dificuldades para se aceitar algo que, reconheço, é difícil: a inclusão
social. Não me juntarei àqueles que - com razão - condenam a autora. O
que quero entender é o que passa na cabeça de alguém que vive no
privilégio e não consegue sequer entender o que é a passagem ao mundo
do direito. Ou que, tendo a vantagem da riqueza numa sociedade com alto
teor de exclusão, não percebe que, um dia, isso acabará. Antes que me
chamem de petista, é bom lembrar que tal nível de exclusão acabou faz
tempo nas grandes economias capitalistas. Se a autora vivesse nos
Estados Unidos, Reino Unido ou França, primeiro, dificilmente
escreveria o que escreveu; segundo, se o fizesse, pagaria por isso.
O assunto faz lembrar a declaração de Delfim Netto, em abril de 2011
(quem teve empregada doméstica, que é um "animal em extinção", teve;
quem não teve, não terá) ou o artigo de Danuza Leão, de novembro,
observando como viagens a Paris perdem o valor quando todos podem
fazê-la. Mas são casos bem diferentes. Com seu conhecido humor e
inteligência, o ex-ministro anotou um fato: os empregos domésticos se
extinguem, justamente porque uma pessoa cuidar da vida íntima de outra é
quase humilhante e por isso, nos países desenvolvidos, se encarece ou
se extingue. Danuza Leão dizia que há prazeres que dificilmente
comportam o acesso de todos: o Louvre não pode, gostemos ou não disso,
receber 100 mil pessoas por dia. Daí, ela conclui - o que endosso - que
ler um livro pode ser bem melhor. Delfim e Danuza disseram coisas
pertinentes, ainda que a formulação não tenha sido feliz. Já o post da
blogueira não é reflexão, é sintoma, e suscita outra discussão.
A inclusão social mexe em nosso imaginário
Ao longo dos séculos e milênios, o que hoje chamamos de inclusão
social se estagnou, cresceu raramente e com frequência recuou. Mas, nas
últimas décadas, a integração dos miseráveis na sociedade (civil? de
consumo? a diferença é importante) se acelerou intensamente - em muitos
países. Aqui, em cinco anos do governo Lula, 50 milhões passaram das
classes D e E para a C. Esse aumento de justiça social impõe mudanças
de atitude radicais no interior da sociedade. Os mais vulneráveis se
fortalecem. Socialmente, o dado principal é que recusam o papel
subalterno ou subserviente que sempre foi o dos pobres em nosso país.
Se esse processo é amplamente positivo, ele tem seus senões, também
pensando no plano social. Um diz respeito à própria condição dos
ex-miseráveis. Eles parecem dar maior importância ao aumento do
consumo, e junto com ele ao do crédito e do endividamento, do que ao
acesso à educação e à cultura - da mesma forma, por sinal, que os
gestores da economia e da política. Daí que a conquista de espaços
sociais pela nova classe média continue frágil. Hoje, pode ser que
muitos salários estejam subindo mais porque a economia está aquecida do
que porque os seres humanos, que eventualmente chamamos de "mão de
obra", se qualificaram como sujeitos de sua existência. Mas há outro
problema, eticamente mais grave. Para as classes tradicionalmente ricas
- ou "dominantes" - o ingresso em seu território de quem era não
pessoa é chocante. Isso não quer dizer que os privilegiados sejam
maldosos, de tão egoístas. O que falta é noção dos limites recíprocos
que constroem uma sociedade decente. Obviamente, não merece elogio, nem
sequer pena, quem age assim. Até porque essas pessoas, se viajam a
países ricos, sabem que não podem tratar dessa forma as pessoas lá,
mesmo as menos ricas. Seguem então um duplo padrão - assim como
respeitam a lei de trânsito na Flórida e não no Brasil. Mas quem deseja
mudar a sociedade não pode ficar na condenação ou no repúdio. É
preciso compreender. Sem entender o que está ocorrendo, é difícil agir
para mudar. Este é um campo importante para a pesquisa.
Mesmo assim, há medidas concretas e urgentes a tomar. Têm que ficar
claros, para todos os brasileiros, valores como a liberdade e a
igualdade. Isso depende do "governo", dos órgãos de defesa dos direitos
humanos, do Ministério Público e do Judiciário mas, mais que tudo, do
esforço da sociedade. É preciso difundir a ética nas escolas. Ela não
pode ficar nas mãos só das Igrejas e das famílias; deve ser estudada,
com uma abordagem leiga e universal, no ensino básico, isto é, da
alfabetização até a conclusão do ensino médio. Deve haver também uma
preocupação das empresas, que são responsáveis por boa parte da
socialização das pessoas. Uma corporação ou organização não pode
tolerar atitudes antiéticas de seus funcionários, sobretudo de seus
dirigentes. Estas são políticas públicas, não apenas estatais. Além
disso, politicas de combate aos privilégios devem ser adotadas - tanto
de quem usa um cargo público para levar vantagem, quanto de quem
utiliza sua riqueza para desprezar o próximo. Porque a batalha se
trava, afinal, nos corações e mentes.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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