Relação com países em desenvolvimento e busca por maior protagonismo internacional seguem sendo a tônica Por Igor Ojeda, colaborador de Opera Mundi Não demorou três meses para que o governo Dilma Rousseff tomasse uma medida contrastante com a política externa anterior. Em 24 de março de 2011, o Brasil deu voto favorável no Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) ao envio de um relator especial do tema ao Irã, postura que contrariava o histórico do país em votações relacionadas à nação persa. Antes, embora reconhecesse a existência de problemas, o Itamaraty seguia o princípio da não seletividade das condenações por violações de direitos humanos. Opera Mundi faz especial sobre diplomacia de Dilma O episódio fez acender o sinal de alerta em setores progressistas, que quase unanimemente celebravam a diplomacia desenvolvida durante as gestões do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ex-chanceler Celso Amorim – este, inclusive, chegou a criticar o voto do Brasil em artigo na revista Carta Capital. Estaria a política externa brasileira se reaproximando dos interesses das potências ocidentais? Bastaram algumas posições posteriores de Dilma em relação aos direitos humanos para que o temor se dissipasse. A presidente brasileira não perdeu oportunidades de criticar o uso político do tema por parte das potências para atingir determinados países. Mencionou, por exemplo, a existência da prisão de Guantánamo e rejeitou a pressão norte-americana sobre Cuba em relação a possíveis violações. "O mundo precisa se comprometer em geral, e não é possível fazer da política de direitos humanos só uma arma de combate político-ideológico", disse, em visita à ilha caribenha em fevereiro do ano passado. Na opinião de analistas ouvidos por Opera Mundi, os dois anos de política externa de Dilma e Antonio Patriota serviram para mostrar que as linhas mestras da diplomacia de Lula e Amorim estão sendo seguidas fielmente. A ênfase nas relações com países em desenvolvimento e a busca por autonomia em relação aos países centrais e por maior protagonismo, entre outras características, continuam fortemente presentes. A mudança, sutil, está no estilo dos respectivos presidentes e chanceleres. "São características pessoais dos presidentes E as formas de ação, tanto no plano interno quanto no externo, não diferem essencialmente, apenas refletem essas características", diz o cientista político Tullo Vigevani, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Para o jornalista uruguaio Raúl Zibechi, editor do semanário Brecha e autor do livro Brasil Potencia. Entre la integración regional y un nuevo imperialismo, a política externa de Dilma é mais cautelosa e cuidadosa, dando a impressão, por vezes, de estar em uma posição de imobilidade. "Com Dilma, o Brasil tem menos presença global e se coloca em uma posição mais defensiva diante do Norte e concretamente diante dos Estados Unidos. Ainda é cedo para saber se se trata de uma posição política diferente ou é apenas prudência", afirma. Já Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), vê traços de continuidade em termos de princípios e valores, como o foco nas relações Sul-Sul, mas diferenças "no sentido tático-estratégico de realização dessa agenda, que vem sendo perseguida com menor intensidade e com baixo perfil". Golpe no Paraguai Um baixo perfil que não significa necessariamente falta de firmeza, como ficou claro no talvez maior desafio da diplomacia de Dilma/Patriota até agora: a destituição sumária do presidente do Paraguai Fernando Lugo pelo Congresso daquele país, em junho. O Brasil não só articulou a suspensão da nação vizinha da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e do Mercosul, como também trabalhou para a aprovação do ingresso da Venezuela neste último bloco – possibilidade que vinha sendo travada pelo parlamento paraguaio. "Especula-se que a posição brasileira, de condenação enfática dos golpistas, tenha sido ditada muito mais pelo Planalto, isto é, por Dilma e Garcia [Marco Aurélio Garcia, Assessor Especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais], do que pelo Itamaraty e seu titular, que tenderiam a uma resposta mais branda e protocolar. É provável que isso tenha ocorrido de fato. Mas aí ficamos no terreno das especulações", analisa Igor Fuser, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC. Ele concorda que não houve mudanças significativas de conteúdo na diplomacia do atual governo, embora seja evidente a intenção de evitar novos focos de polêmica. Essa postura de perfil mais baixo, para Fuser, está determinada pelo contexto internacional. "Enquanto a diplomacia de Lula e Amorim tratou de capitalizar o sucesso brasileiro no crescimento econômico e na melhoria dos indicadores sociais para impulsionar uma conduta externa `ativa e altiva', como se dizia, a dupla Dilma e Patriota está focada em minimizar os danos que a crise global possa trazer à economia brasileira". Nem por isso, porém, a política externa de Dilma deixou de imprimir suas marcas. O embaixador Tovar da Silva Nunes, porta-voz do Itamaraty, ressalta que a herança – sobretudo do governo anterior – de projeção da diplomacia brasileira no mundo possibilitou à atual gestão aprofundá-la e criar nichos específicos. Ele cita a atuação destacada do Brasil em órgãos multilaterais, como o Conselho de Segurança e o Conselho de Direitos Humanos, ambos da ONU, na questão da soberania alimentar e nas discussões sobre mudanças climáticas. Uma atuação, segundo ele, sempre calcada na experiência brasileira de inclusão social e de diálogo para a paz. "Nosso propósito continua sendo o de seguir o histórico da política externa do Brasil, da diplomacia pelo diálogo, mas agora com voz mais ativa. Temos sido procurados cada vez mais por países que antigamente não nos ouviam necessariamente, não tinham o impulso de nos consultar", lembra Nunes. Ainda segundo ele, eventos como a Rio+20 ajudaram nesse sentido, identificando o "Brasil como verdadeiro propulsor desse novo paradigma de desenvolvimento." Direitos humanos Com relação aos direitos humanos, o porta-voz do Itamaraty esclarece que a instrução do Planalto é continuar a seguir à risca os princípios da não seletividade e da não utilização política do tema. Em 28 de novembro deste ano, por exemplo, o Brasil se absteve de votar texto da ONU que condenava as violações cometidas pelo Irã. Segundo o governo, o documento era "desequilibrado" e não exortava ao diálogo com o país. A diplomacia brasileira também havia se abstido em novembro de 2011, na votação de uma resolução sobre Teerã na Terceira Comissão da Assembleia-Geral das Nações Unidas – espécie de correção de rota após o voto contrário à nação governada por Mahmoud Ahmadinejad em março daquele ano. Tullo Vigevani destaca, ainda, o posicionamento do Brasil em relação às crises na Líbia, que levou ao fim do governo de Muamar Kadafi, e na Síria, que passa por uma guerra civil. "A diplomacia brasileira tem reiterado suas manifestações contra a intervenção de países estrangeiros com o objetivo de desestabilizar qualquer governo, defendendo o direito da população de cada Estado de definir o regime que considera o mais adequado para si próprio", salienta. A maior prova de fogo para a presidente Dilma Rousseff e o chanceler Antonio Patriota nos dois anos do atual governo foi a destituição sumária, pelo Congresso do Paraguai, do presidente Fernando Lugo, em 22 de junho deste ano. Desafio ainda maior por ter ocorrido no âmbito de influência do Brasil e pela expectativa de que o país assuma definitivamente um papel de liderança no continente. O governo brasileiro não demorou em qualificar a manobra como golpe de Estado e liderar a suspensão do país vizinho da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e do Mercosul, sob a justificativa da quebra da ordem democrática. Mas não parou por aí. Como a entrada da Venezuela de Hugo Chávez no bloco econômico dependia apenas da aprovação do parlamento paraguaio – os legislativos dos outros países membros já tinham dado o aval – o Brasil aproveitou a brecha criada pela punição ao Paraguai para ratificar a adesão da nação bolivariana como membro-pleno. Em comunicado logo após a reunião que oficializou a expansão do Mercosul, realizada em 31 de julho, o Itamaraty afirmou: "a incorporação da Venezuela altera o posicionamento estratégico do bloco, que passa a estender-se do Caribe ao extremo sul do continente. O Mercosul se afirma, também, como potência energética global tanto em recursos renováveis quanto em não renováveis". O bloco passou a contar com 70% da população, 72% da área e 83,2% do PIB sul-americano. "Foi um fato de muita importância, que fortalecerá o Mercosul de uma forma extraordinária", avalia o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário-geral das Relações Exteriores do Ministério das Relações Exteriores (2003-2009). Para Raúl Zibechi, editor do semanário uruguaio Brecha e autor do livro Brasil Potencia. Entre la integración regional y un nuevo imperialismo, a resposta brasileira à destituição de Lugo foi "contundente e potente". Em dezembro deste ano, foi a vez da Bolívia. No dia 7, no final da plenária da Cúpula de Chefes de Estado do bloco, em Brasília, o presidente boliviano, Evo Morales, assinou o protocolo de adesão, surpreendendo até os negociadores. "A permanência desse cenário global de crise torna ainda mais evidente a importância da nossa integração, que é o que nos fará mais fortes e aptos a enfrentar as turbulências do mercado internacional", comemorou Dilma na ocasião. O fortalecimento do Mercosul, comandado pelo Brasil, demonstrou que o foco na integração regional continua sendo prioridade do atual governo. "A Unasul e o Mercosul são os pilares mestres da liderança brasileira no continente e os arranjos de integração pelos quais o Brasil tem maiores interesses e nos quais procura atuar de forma mais decisiva", analisa Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela faz a ressalva, no entanto, de que a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), criada em 2010 para fazer contraposição à OEA (Organização dos Estados Americanos), vem recebendo menos atenção dos países da região e apresentando "significativo recuo" em sua construção. Zibechi, por outro lado, chama a atenção para a importância do Brasil como impulsionador no último período do CDS (Conselho de Defesa Sul-Americano), órgão da Unasul que pretende promover o intercâmbio militar entre as nações do continente. Um dos passos mais ambiciosos nesse sentido foi dado no final de novembro deste ano, em Lima, durante a IV Reunião do CDS. Lá foi aprovado o Plano de Ação para 2013, que inclui uma série de iniciativas conjuntas na área, como a instituição de um fórum que discuta o estabelecimento de mecanismos e normas especiais para compras e desenvolvimento de produtos e sistemas militares na região. Na declaração final da reunião, os países sul-americanos reiteraram o compromisso de ampliar a cooperação em defesa e fortalecer o continente como zona de paz. O poder brasileiro A ascensão do Brasil como potência regional, sobretudo nos últimos dez anos, deve-se muito à sua expansão econômica, apontam especialistas. Mas não só a isso. Cristina Pecequilo ressalta a busca do país pela afirmação de uma presença internacional não só na América Latina, como também no continente africano. Segundo ela, seria uma forma de elevar seu poder. "Para isso, o Brasil tem como foco instrumentos de soft power, com perfil cooperativo, que se somam a essa reafirmação de liderança", diz. Soft power, ou poder brando, é o tipo de influência exercida por um Estado especialmente por meios culturais ou ideológicos. O embaixador Tovar da Silva Nunes, porta-voz do Itamaraty, vai além. "[Seus agentes] são os atletas, os times de futebol, as empresas, a música, os filmes, e, inclusive, os brasileiros no exterior. Nossa diáspora é vista como trabalhadora e que se integra, fala as línguas locais. Isso faz parte de uma percepção do Brasil e do seu povo como uma nação que agrega, que é positiva, que tem soluções criativas", diz. Citando os projetos de cooperação do Brasil na África e no Caribe, Nunes faz questão de frisar que há um desejo por parte do governo brasileiro de "fazer diferente do que faziam os outros países". A gestão Dilma estaria consolidando tal postura. O conceito de soft power para definir o poder exercido pelo Brasil na América Latina e na África, no entanto, é contestado por Igor Fuser, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC. "É um desses conceitos vagos, que servem para qualquer coisa e para nada ao mesmo tempo. A figura de Lula, seu discurso contra a fome e as notícias sobre as políticas sociais no Brasil, entre outros fatores, despertaram enorme simpatia pelo nosso país, mas daí a falar em soft power vai uma distância enorme." "Imperialimo" Outros estudiosos, contudo, definem a atuação brasileira especialmente na África como "imperialista". É o caso de Ana Saggioro Garcia, doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pesquisadora do Brics Policy Center (BPC). Segundo ela, são evidentes os interesses econômicos e políticos do Brasil no continente africano, onde o país compete com outras potências por mercados e recursos naturais e pela construção de uma imagem de cooperador internacional. Na opinião da pesquisadora, a política externa de Dilma estaria aprofundando esse tipo de atuação. "Eu enxergo o Brasil ocupando um lugar cada vez mais importante na estrutura da acumulação capitalista global. Nosso país atua dentro do capitalismo, por isso não tem como fugir do imperialismo. Imperialismo é poder econômico conjugado com poder político, e está clara a tentativa do Brasil de ser um poder regional, e, via essas relações Sul-Sul, ter mais poder no âmbito global. Almeja aumentar seu prestígio internacional, ter poder nas instâncias de concertação global. Não é uma amizade, uma dádiva, uma coisa que vai sem volta [a cooperação com os africanos]", analisa. De acordo com Ana, isso é sentido pelas populações locais principalmente por causa da atuação agressiva das empresas brasileiras nos países do continente. "É grosseiro mesmo, seja no âmbito mais institucional, de corrupção, seja em relações concretas de direitos humanos e sociais, como a atuação da [mineradora] Vale em Moçambique. Não avalio que o Brasil tenha chegado ao ponto de substituir as potências globais, mas essa postura imperialista é percebida pelas populações afetadas." Para Raúl Zibechi, o imperialismo ou o sub-imperialismo não podem ser decididos por um governo – são questões estruturais. Segundo ele, o Brasil não pode ser mais definido como sub-imperialista, pois tem capacidade própria de acumulação de capital e, pelo menos nos aspectos decisivos, não é mais um país dependente. "Isso não quer dizer que automaticamente deve-se colocá-lo como imperialista. Certamente há traços de imperialismo, mas no fundamental estamos diante de um cenário aberto, no qual jogam tanto o Brasil como os demais países da América do Sul, que é a região chave para os interesses do Brasil. Por isso falo de Brasil Potência e não de Brasil Império. Ainda há possibilidade de que as relações com seus vizinhos sejam de outro caráter que não a de dominação ou imposição", explica. Samuel Pinheiro Guimarães, por sua vez, qualifica como um "equívoco total" a definição do Brasil como um país imperialista nas suas relações com nações menos desenvolvidas. De acordo com o diplomata, o Brasil não força ninguém a adotar algum tipo de política – os países que o procuram, em busca de apoio, principalmente, para a realização de obras de infraestrutura para os quais não têm recursos. Em relação à atuação das empresas brasileiras no exterior, Guimarães avalia que o governo não é responsável. "O Brasil insiste que devem seguir as legislações locais. Ao financiar uma atividade em outro país, o governo assume que a empresa as está cumprindo. Além disso, cabe a cada país fazer valer suas leis", acredita. Fuser destaca que é preciso ter claro que o conceito de imperialismo vai muito além da simples exportação de capital por meio de investimentos empresariais. "Imperialismo é uma relação abrangente de dominação, que envolve, além do plano econômico, a dominação política e a supremacia militar, sem falar em fatores culturais e ideológicos". Esse não seria o caso do Brasil, defende.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Diplomacia brasileira sob Dilma e Patriota muda de estilo, mas mantém essência
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