"Ali não tinha nenhum santo." Foi com tal sentença que o governador do
Amazonas veio a público comentar o massacre que ocorreu em prisão de
Manaus. De fato, santo lá não havia, como, ao que tudo indica, não há em
nenhum outro lugar do mundo sublunar.
Os presidiários não são santos, você também não é, nem eu e muito menos o senhor governador.
Se estivéssemos em uma sociedade de santos, não haveria necessidade de justiça, nem mesmo de governo.
Se existe direito, justiça e governo é porque aqui também, ou seja, fora
do presídio, não há nenhum santo, há seres humanos com suas
trajetórias erráticas e seus acordos precários. A justiça é uma
construção humana para lidar com humanos.
Por isso, é possível que a frase do senhor governador quisesse dizer
outra coisa. Talvez algo como: "Quem estava lá era sub-humano, não há
porque estarmos concernidos com suas mortes". Essa é uma estratégia que
os governos brasileiros se eximem em implementar desde há muito,
impulsionados por uma parcela da própria população.
Trata-se de espoliar massas inteiras de sujeitos de qualquer forma de
humanidade. Se eles morrem, não haverá nem nomes nem histórias. Haverá
apenas números: 60 presos mortos. Você nunca saberá quem são, se eles
estavam lá por assassinar a ex-mulher, o filho e seus parentes ou por
ter vendido meia dúzia de cigarros de maconha.
Você nunca verá seus rostos. Até porque, desde que entraram na cadeia,
eles já estavam desaparecidos, eles já não existiam mais,
dessubjetivados, prontos para uma morte indiferente patrocinada pelo
Estado e aplaudida por "pessoas de bem".
Entender como o governo brasileiro funciona é entender como ele
administra o desaparecimento e o direito de matar. Esta é sua verdadeira
forma de governo.
Com uma mão ele massacra parte de sua população, com outra ele lembra, à
outra parcela, que o medo espreita e que é necessário "ser ainda mais
duro".
Matar esses "60 presos" é visto, no fundo, como um direito soberano do
Estado, como foi um direito soberano matar "111 presos" no Carandiru sem
que isso tenha gerado maiores consequências, sem que houvesse rastos.
Não, não foi uma luta de gangues o que produziu o massacre em Manaus,
mas uma política deliberada e pensada de administração da morte, feita
nas pranchetas da omissão, do descaso, da perpetuação de condições
medievais e da cumplicidade.
Então virão aqueles que aplaudem o ocorrido, seja com aplausos
explícitos, seja com satisfação implícita. "Ali não tinha nenhum santo",
dizem todos. Os que aplaudem sempre estiveram lá, no mesmo lugar,
desde as execuções públicas medievais, as torturas públicas de escravos
em fuga até os massacres policiais de hoje, com o mesmo rosto de
"fizeram por merecer".
Desde tempos imemoriais eles repetem o mesmo raciocínio que confunde
justiça e vingança, que acredita estar seguro quando submetido a um
poder sem limites, que dirá "se você não faz nada, nada acontecerá
contigo".
Mas o que você precisa fazer para ser preso no Brasil? Pouco mais de 10%
dos presos brasileiros estão lá por homicídio (simples ou
qualificado). Os outros 90% são pessoas que cometeram furtos e roubos
de toda sorte, pichadores, pessoas que "desacataram" a autoridade e,
principalmente, sujeitos com problemas ligados a drogas que não tiveram
um bom advogado ou um sobrenome capaz de libertá-los.
Ou seja, em larga medida, pessoas que deveriam estar fora de presídios,
cumprindo outra forma de pena — e estariam cumprindo se não fossem de
classes sociais massacradas.
"Tem pena, leve para casa", grita a turba. Mas, sabe turba, não, não
temos pena. Temos indignação, o que é algo totalmente diferente.
Não queremos levar ninguém para casa, queremos que o Estado brasileiro
saia do banditismo que muitos aplaudem. Já os gregos sabiam, ao menos
desde "Antígona": retirar a humanidade daqueles que o Estado julga
criminosos é a forma mais rápida de destruir o próprio Estado, de fazer
do Estado outro criminoso.
O Estado brasileiro age como o PCC, decidindo soberanamente quem irá
viver e quem será deixado para morrer. Como ele espera julgá-lo?
Vladimir Safatle na Folha
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