terça-feira, 1 de abril de 2014

Reformas de base


Darcy Ribeiro

Na data em que o golpe de 1964 completa meio século, a Agência Sindical publica artigo de Darcy Ribeiro sobre as reformas de base, a reação às medidas e o golpe. Definido por Glauber Rocha como “gênio da raça”, Darcy dispensa apresentações


Do Ministério da Educação passei ao cargo de Chefe da Casa Civil da Presidência da República, cujo encargo fundamental é coordenar todo o governo, fazendo-o seguir as diretrizes do Presidente. Nestas novas funções tive de enfrentar, além de toda uma enormidade de atividades administrativas, tarefas totalmente novas, fundamentalmente a de dar forma concreta ao movimento nacional pelas Reformas de Base. Seu objetivo era transformar pela persuasão as arcaicas estruturas legais brasileiras consagradoras do latifúndio e do empreguismo. O fundamental era dar resposta aos seguintes desafios:
- Como reverter o processo histórico, a fim de romper as muralhas do latifúndio improdutivo e, em lugar da colonização das áreas novas se fazer através do latifúndio, ela se fizesse através de pequenas propriedades?
- Como assegurar aos milhões de posseiros e arrendatários rurais que alugavam terras dos latifundiários a preços exorbitantes, sem nenhuma garantia, as regalias então asseguradas aos inquilinos urbanos?
- Como pôr em execução a Lei de Remessa de Lucros para colocar sob controle governamental as empresas estrangeiras, a fim de impedir a apropriação total das riquezas naturais e o domínio completo do nosso mercado interno, tal como veio ocorrer depois?
O que se pretendia era uma reforma estrutural de caráter capitalista. Elas foram vistas, porém, como revolucionárias em razão do caráter retrógrado do capitalismo dependente que se implantou no Brasil sob a regência de descendentes de senhores de escravos e de testas-de-ferro de interesses estrangeiros. Jango dizia e eu repetia até a exaustão que com milhões de pequenos proprietários a propriedade estaria mais defendida e muito mais gente poderia comer e educar os filhos.
Argumentávamos, com igual vigor, que cruzeiros não podem produzir dólares, isto é, que as empresas estrangeiras poderiam mandar para fora os lucros do capital que trouxeram um dia de qualquer forma para o Brasil, mas não sobre o que cresceu aqui, com o apoio do sistema bancário nacional.
O apoio popular a este programa não poderia ser mais entusiástico. Nem mais fanática a oposição a ele por parte dos latifundiários e dos agentes de interesses estrangeiros. Unidos eles montaram a maior campanha publicitária que se viu no País, para convencer as classes médias de que o governo marchava para o comunismo. O ambiente de odiosidade que se criou dividiu as forças armadas e pôs o Brasil sob ameaça de invasão pelos Estados Unidos, a pedido do governo de Minas Gerais. Nestas circunstâncias, João Goulart teve que optar entre deixar-se derrubar ou resistir permitindo que se desencadeasse no País uma guerra civil que podia custar milhões de vidas.
O governo de Jango era reformista, mas a profundidade das reformas que propunha fez com que ele passasse a ser percebido como revolucionário, provocando, assim, uma contrarrevolução preventiva. Caiu porque a única forma de enfrentar uma contrarrevolução é fazer a revolução e isto excedia a tudo o que aquele governo pretendia.
Seguiu-se o golpe e se implantou o regime militar de 1964, que passa a governar como um negativo fotográfico do programa de Jango, fazendo exatamente o oposto. Em lugar de democracia e liberdade sindical, ditadura e arrocho salarial. Em lugar de milhões de pequenos proprietários, milhões de hectares para super-proprietários. Em lugar do controle das multinacionais, a entrega total do Brasil ao controle delas.

Extraído do livro “Testemunho”, de Darcy Ribeiro, 2ª edição, 1992, edições Siciliano. Site: www.fundar.org.br

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