Transcrito do Portal Desacato
Por que “Casa-Grande & Senzala” ajuda a compreender, também, papel da alimentação no desenho dos dramas e encantos do país
Por Raul Lody.*
O livro germinal de Gilberto Freyre, que
em Dezembro de 2013 completa 80 anos da sua primeira edição, tem a
virtude de ser sensível diante da complexidade das suas grandes questões
sobre um Nordeste fundado no açúcar. Gilberto se propõe a revelar “o
seu” Nordeste ao leitor. Um Nordeste orientalizado a partir das matrizes
lusas com os seus encontros com a China, Índia.
Japão; e nas tradições moçárabes e judaicas.
Um nordeste da Zona da Mata de
Pernambuco. Sim, Pernambuco como um foco possível e preferencial de
Gilberto. O livro Casa-Grande & Senzala é também um depoimento
vivencial de Gilberto, que mistura endoetnografias nos cenários do
Recife.
Assim, ele traz leituras e experiências
familiares; também dá interpretações sentimentais; e ainda busca os
sinais de uma região orientada pelo patriarcado que nasce na cana
sacarina.
É uma obra para muitas interpretações,
para ser revisitada apontando-se para as cozinhas como experiências
formais da identidade do brasileiro. Por ser um livro de vocação
sensorial, sugiro ler algumas páginas ao sabor de um bolo de massa de
mandioca, ou bebendo um boa cachaça, para que se possa assim ter um
encontro hedonista ao gosto de Gilberto.
Ele se revela hedonista quando traz de
Ruth Benedict os seus conceitos de “apolíneo” e de “dionisíaco”. São
encontros desejáveis e necessários ao tema açúcar, um tema nem sempre
tão “doce”.
Entender ainda que Gilberto tem suas
preocupações literárias e estéticas com Casa-Grande & Senzala. Ele
relata ambientes, festas, indumentárias, comidas, processos culinários,
rituais de comensalidade. Gilberto tem um olhar iconográfico dominante, e
recorre ao desenho e a pintura como processo de criação e de
representação cultural.
Estes imaginários estão nos textos, e
pode-se dizer que Casa-Grande & Senzala é um livro
“cinematográfico”. E com este desejo visual, Gilberto mostra o melhor
deste livro.
Tudo acontece em contexto ecológico, na
Mata Atlântica e nos canaviais, temas que mais tarde são aprofundados no
livro Nordeste. Esta sociedade do século XIX, exemplar em Casa-Grande
& Senzala, é ampliada também em Sobrados e Mocambos, com um olhar
mais urbano sobre a civilização que nasce do açúcar.
Casa-Grande & Senzala mostra as
histórias das “casas” e das pessoas que vivem nestas
casas.casagrandejorgesabino1 Relata religiosidade, maneiras de fazer a
comida, escolher os ingredientes; as muitas receitas de um Portugal já
globalizado com as “grandes navegações” que aproximaram o Oriente do
Ocidente. Esta obra mostra as festas, os rituais do plantio e da
colheita da cana sacarina; os encontros de portugueses africanizados
pelo Magreb, de povos nativos, de milhares de africanos da Costa, que
revelam novos gostos e interpretações de sabores que se espalham pelas
cozinhas, pelas mesas, num Brasil à boca.
Gilberto quer apresentar um lugar
possível do “trópico”. Mostrar uma civilização onde o poder formal está
no mando masculino. Contudo, este poder está também nas cozinhas,
territórios consagrados ao mando feminino. Cozinhas na “Casa-Grande”,
lugar onde as relações sociais são formalizadas na intimidade de espaços
geradores de comidas, de um poder que se projeta no ato da alimentação.
Gilberto revela os rituais das
alimentações, inclusive dos “santos”, que são íntimos nestas relações
sociais já à brasileira. O Menino Deus, para adoração e para o convívio
com as crianças da “casa”, torna-se tão próximo que parece estar também
se lambuzando de geleia de araçá.
Outros doces são marcantes e, em
especial, os “bolos”, tema que fundamenta o seu livro Açúcar, também dos
anos 1930. Gilberto mostra o doce como um preparo feminino, marcado
pela mulher lusa como uma atividade especial, pois o doce tem um preparo
que vai muito além do açúcar. É um preparo de memórias ancestrais da
história colonial lusa.
O termo “doce” valoriza e qualifica
aspectos sociais como, por exemplo, “você é um doce”; “te dou um doce”;
tudo mostra o açúcar como formador de laços sociais, e isso também é
retratado em Casa-Grande & Senzala.
As referências dos sabores, a nova forma
para se construir o paladar, o reconhecimento do que é o gosto gostoso,
daquilo que chega de Portugal com os “gostos do mundo”, e se misturam
com este Brasil de mandioca, de peixes, de milho, de pimentas frescas, e
de muitos outros produtos da “terra”, produtos nativos.
Gilberto, em Casa-Grande & Senzala,
expõe uma sociedade que se revela à mesa. É assim que ele quer
interpretar o brasileiro: “a partir da comida”. Casa-Grande &
Senzala é uma construção formal de análise que está na tese Social life
an Brazil in the middlle of the 19th Century para o título de Master
Artium ou Master of Arts, Columbia University, 1922.
Com certeza, em Gilberto, estão todos os
sentimentos do gourmet, do antropólogo e do artista, todos reunidos na
sua maneira pessoal de gostar do Recife.
Comida de matriz africana em Casa-Grande & Senzala
Na busca de uma “unidade” na formação
colonial marcada pela cana sacarina no Nordeste, Gilberto recorre às
bases étnicas, mantendo o pensamento dominante à época ( anos 1930)
sobre a trilogia: europeu, africano e indígena.
Gilberto em Casa-Grande & Senzala
expõe o que é europeu com ênfase no que é lusitano e ibérico; e ao que é
“nativo”, indígena. Já aquilo que é africano assume um destaque
intencional, e ganha na obra um desejo de maior aprofundamento.
O autor olha para as relações da África
magrebina e a sua civilização afro-islâmica na península ibérica atuando
na formação das cozinhas da Espanha e de Portugal. Mostra o africano em
condição escrava, e destaca os papéis sociais da mulher africana, entre
eles, o de fazer comida, e vender nos “ganhos”, e nas “quitandas”. Está
na mulher o amplo repertório de sabedoria culinária e de memória
cultural. A mulher como yá bassê ( básè, em Yorubá, significa assistente
de cozinha) é a responsável pela cozinha sagrada dos terreiros da
tradição Nagô, e assim mantém as receitas de uso religioso.
Gilberto destaca a ação civilizadora da
mulher africana nas casas dos engenhos, nos ofícios das cozinhas, na
mistura das receitas de Portugal com os ingredientes da “terra” , e com
os acréscimos que chegam das memórias africanas. São novos gostos,
gostos em construção, gostos brasileiros.
Ele olha para a cozinha no contexto das
relações interafricanas, dos africanos em condição escrava, da crueldade
da vida na plantation dos engenhos de se fazer açúcar, sem mergulhar
numa “cordialidade” idealizada.
Embora o Nordeste seja exemplificado e
aprofundado em Pernambuco, Gilberto mostra a Bahia como um território de
força e de expressão africana, e ainda cita o Maranhão e o Rio de
Janeiro. Porém está em Pernambuco o foco e a experiência etnográfica de
Gilberto, que se inclui como um viajante da sua própria cidade, o
Recife.
Em outras obras, o sociólgo destaca as
comidas do terreiro Obá Ogunté, Seita Africana Obá Omim, do Recife, em
Água Fria, e localiza o importante babalorixá Adão Costa. Relata
experiências gastronômicas neste terreiro de Xangô da tradição Nagô,
tido como o mais antigo do Recife.
Gilberto valoriza [e certamente gosta]
as comidas afrodescendentes, e assim chama esses acervos culinários de
“manjar africano”. Informa sobre o uso de folhas nos processos
culinários africanos, e nesta verdadeira fusion, unem-se tecnologias de
embalar e de produzir comida a partir de modelos milenares americanos
dos “tamales”, com receitas que expõem uma cozinha de matriz africana
onde se notabilizam o acaçá, o abará, e outras comidas embaladas em
folha de bananeira.
Casa-Grande & Senzala detalha a
feitura do acaçá, uma comida de milho branco, milho de mungunzá; uma
massa cozida sem temperos para acompanhar vatapá, caruru de quiabos,
peixes no dendê. Destaca assim os processos culinários com o uso da
“pedra”, do pilão lítico, para processar o milho e o feijão, bases do
acaçá e do abará.
Na Bahia se valoriza a “pedra do
acarajé”, que é o pilão, pois se considera que ele dá a melhor textura
para as massas do acarajé, do abará e do acaçá. Nestas comidas estão as
assinaturas das “baianas”, notabilizando o acarajé mais crocante, o
abará melhor recheado; são comidas autorais de tabuleiro.
As comidas de “tabuleiro”, hoje
identificadas pelos: acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante; e
também pela “passarinha”, estão nas ruas, praças, adros, no caso da
cidade do São Salvador. Permanecem os imaginários dos ganhos. É um
ofício, que hoje, na grande Salvador, reúne mais de três mil “baianas e
baianos de acarajé” .
Gilberto traz, em Casa-Grande &
Senzala, os “bolos de tabuleiro”, certamente criando categorias para os
bolos. Pois os bolos identificam um lugar especial da doçaria
pernambucana. Receitas dos conventos de Portugal, outras da confeitaria
popular, e outras das comidas de rua que se encontra com a mandioca, e
outros ingredientes da “terra”.
No Recife, em carrinhos de madeira,
ainda hoje são vendidos bolos e biscoitos, próximos em forma e gosto das
suas fontes portuguesas. Tortas enroladas que remetem as tortas do
Azeitão (Portugal), bolos verdadeiramente ancestrais; base do tão
querido “bolo de rolo”, na verdade “torta de rolo”.
Ainda, tão do gosto e do cotidiano das
mesas do Nordeste, estão as receitas de cuscuz. Tradição da África
mediterrânea, da África magrebina, que ganha interpretações com a
farinha de milho, com a massa da mandioca , com o leite de coco, e com
muitos outros acréscimos nas receitas.
Gilberto tem o desejo de marcar os
territórios dessas matrizes do continente africano; ora afro-islâmica,
ora das “Costas” – ocidental, austral, oriental –, e assim busca
mostrar, preferencialmente pela comida, essas chegadas e essas formas de
civilizar o Brasil.
Sabores ibéricos em Casa-Grande & Senzala
Gilberto valoriza uma ancestralidade de
sabores decorrentes da península ibérica, e assim louva Portugal com
todos os sabores reunidos de um povo globalizado pelas grandes
navegações.
Tudo está em um Portugal ibérico com
territórios africanizados pelo Magreb afro-islâmicos. Do norte da África
chegaram também civilizações do Mediterrâneo, a civilização da “oliva”,
do “vinho”, do “queijo”. Pelas rotas das especiarias, Portugal retoma
as rotas romanas que o levam para o Oriente, para a África das costas do
Atlântico e do Índico; e ainda amplia as suas relações, e comércio, nas
Américas e o no Caribe.
Com todos estes elementos de
civilizações do Ocidente e do Oriente, chegam novas construções de
sabores, de técnicas culinárias, de objetos de cozinha e de serviço à
mesa; e receitas, muitas dos cardápios do cotidiano, e outras das
festas, festas religiosas, essencialmente católicas.
Embora de um rico acervo de
ingredientes, de receitas, de um Portugal de além-mar, Gilberto, em
Casa-Grande & Senzala, aponta para questões econômicas, e os
diferentes processos sociais que fazem parte da alimentação no Brasil
colônia, e diz: “Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a
alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII, XVIII. Nas
cidades péssima e escassa.”
Gilberto, em Casa-Grande & Senzala,
quer mostrar o Nordeste do século XIX sob o regime patriarcal que foi
fundado no açúcar da cana sacarina, e uma análise da civilização ibérica
no trópico. Assim, escolhe a comida para interpretar essa compreensão
colonial. Mostra, com outro olhar, a “idealizada” contribuição holandesa
na cozinha regional, e diz sobre o “brote”, um tipo de biscoito
enquanto, talvez, uma possível “permanência” dos batavos em Pernambuco.
Pois nestes momentos da “Maurícia”, passava-se fome no Recife, os
soldados batavos caçavam inclusive ratos para comer.
Gilberto assim louva a farinha de
mandioca e tudo que chega dela, e diz: “o próprio feijão já é luxo”. A
maioria dos produtos da tradição alimentar ibérica: azeite de oliva,
azeitona, vinho, farinha de trigo, e queijo chegavam de Portugal. Ainda,
Gilberto diz que os cardápios mais comuns do cotidiano, da
subsistência, estavam baseados na farinha de mandioca e no charque. Os
desenhos das mesas repletas de comidas, num cenário de prataria, de
sedas, de festas magníficas, estão, na maioria, em leituras ingênuas
sobre estes processos econômicos e culturais sobre a comida possível no
nordeste do Brasil colônia.
Contudo, Gilberto que exibir as mesas de
celebrações, mesas com montes de açúcar, para indicar o poder do senhor
de engenho. Sem dúvida, o açúcar é o orientador e formalizador das
relações sociais. É também com o açúcar vêm as antigas receitas dos
mosteiros de Portugal, que são realizadas e reinventadas nestes
contextos da mandioca e das suas muitas possibilidades culinárias . Com a
colonização, as referências das culturas de Portugal estão no idioma e
na comida. Comida formada a partir de receitas moçárabes, de base
muçulmana, como mostra Arte da Cozinha (1692) de Domingos Rodrigues:
carneiro mourisco, galinha mourisca, entre outros. Também há a comida
dos mosteiros medievais. Espaços consagrados as “regras” de alimentação e
do “jejum”, uma orientação para a falta de comida, uma santificação
para os períodos de comida rara, mesmo em Portugal.
Bolo do AzeitãoAssim, os cardápios e as
receitas especiais, que se juntam às tradições populares e as “cozinhas”
sofisticadas dos moçárabes na península ibérica, vão construindo uma
“cozinha” de formação tropical, e que recorre também aos imaginários
medievais dos conventos e mosteiros. Ordem dos Agostinhos, dos
Beneditinos, das Carmelitas, dos Jesuítas, entre outras.
Sabores “santos” que chegam às receitas
de: morangos no vinagre, caldo de acelgas, bispos, leite frito, natas
imaculadas, frango no vinho da missa, arroz com leite, entre muitas,
muitas outras receitas conventuais. E alguns doces: amorzinhos de
noviça, argola de abadessa, barrigas de freira, fatias celestiais,
queijinhos do céu. E alguns exemplos que trazem os “pontos do açúcar”:
de pasta, de fio, de cabelo, de pérola, do assoprado, de espadana, de
rebuçado …
Filhoses da Ilha Terceira AzoresTudo
traz os encontros e as criações, pois, “navegar” e principalmente comer é
preciso. Invenções nas cozinhas e descobertas à mesa.
Fonte: Outras Palavras
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