Leia abaixo a íntegra da entrevista, publicada no site do “El País” no último dia de 2013:
--Pergunta: Como é ser prefeito da maior cidade da América Latina?
Resposta:
Uma experiência desafiadora. Mas há, também, a sensação de que você
consegue dar resposta aos problemas, desde que você tenha alguma
determinação para mudar a realidade da cidade. Em geral, os prefeitos
que deixam uma marca na sua cidade foram os que tomaram as providências
que todo mundo sabia que precisavam ser tomadas, mas eram postergadas em
função de circunstâncias conjunturais. A questão da mobilidade é
clássica no mundo inteiro. Todo mundo sabe que deve priorizar o
transporte público, mas tomar a decisão de priorizá-lo é difícil porque
incomoda aqueles que estão comodamente utilizando o transporte
individual. Já tínhamos anunciado na campanha que faríamos, mas
impulsionados pelas manifestações de junho fizemos em seis meses o que
faríamos em quatro anos [com o aumento das faixas exclusivas de ônibus],
o que resultou em um incremento na velocidade do ônibus, superior à
verificada em Nova York e Paris, que tomaram a mesma decisão.
--P: Mas as pesquisas mostram que pessoas não deixaram o carro em casa, que o número dos que usam ônibus não aumentou muito.
R: Mas deixou de cair. Vinha caindo consideravelmente. Essa mudança não se faz em meses.
--P: Há uma forma de estimular as pessoas a deixarem o carro?
R: É
a perseverança. O trânsito em São Paulo piorou menos em 2013 do que em
2012, quando não se investiu um centavo em transporte público. O
trânsito aumentou 11% de 2011 para 2012, sem uma faixa, sem um corredor.
E de 2012 para 2013, 7%. Óbvio que é uma mudança de cultura, talvez
geracional. No meu tempo, o presente de quem entrava na faculdade era um
carro. Outro dia, meu filho me disse que pensava em se desfazer do
carro, em função dos custos associados. Paga-se muito mais de seguro de
carro em São Paulo do que de IPTU.
--P: Esse é um valor percebido por um grupo mais crítico. A população, em geral, ainda não vê assim.
R: Mas os 70% que usam transporte público entendem.
--P: E isso não deveria se refletir em apoio ao seu nome?
R: Vamos
dissociar essas duas coisas. O apoio à medida [implementação das
faixas] foi medido por dois institutos de pesquisa, e está na casa dos
90%. Uma coisa é aprovar a medida, outra coisa é aprovar o político.
Estamos num ano muito atípico do ponto de vista de aprovação aos
governantes, de maneira geral. A aprovação da nossa reforma educacional é
na casa dos 90%. De mobilidade, 90%. Se perguntarem sobre as medidas
para combate à corrupção, certamente vai ser de 100%. E isso tudo pode
não se refletir em apoio político.
--P: Isso é uma sina em São Paulo, onde poucos prefeitos reelegeram sucessores?
R: É
um contexto geral de mau humor em relação à política, que é mais grave
em São Paulo. Porque a cidade vive uma crise financeira há 20 anos. São
Paulo está investindo menos da metade das capitais do Sudeste [Belo
Horizonte, por exemplo, investe três vezes mais]. Não tem como. Tem uma
hora que a política tem que fazer a concessão à matemática.
--P: O problema é a dívida de 56 bilhões de reais, que não dá margem para investimento?
R: Não
é só isso. Tem os precatórios. O Supremo declarou inconstitucional o
parcelamento dos precatórios, isso já está se refletindo nas contas
municipais. Tem um problema novo, o do congelamento da tarifa de ônibus.
E um mais novo ainda, que é a suspensão de uma prática comum a todos os
governantes que me foi sonegada, que é a atualização da planta de
valores do IPTU.
--P: E por que o senhor acha que, agora, pela primeira vez, foi negada a atualização do IPTU?
R: Eu não sei.
--P: É uma questão política?
R: Não
sei. Eu acompanho finanças públicas desde criancinha, vamos dizer. Eu
nunca vi uma decisão dessa, de negar uma prefeitura de atualizar a base
de cálculo.
--P: Está claro, há um problema...
R: Não há um problema. Havia um, agora são quatro (risos).
--P: O seu cenário é muito pessimista pelo jeito. Quais são as soluções possíveis? Reajuste da tarifa de ônibus em junho?
R: Antes
das manifestações de junho, eu já havia dado uma declaração de que eu
era a favor da municipalização da CIDE [Contribuições de Intervenção no
Domínio Econômico], um tributo que incide sobre a gasolina, para
baratear o preço da mobilidade em São Paulo. No mundo inteiro discute-se
isso. Em Bogotá, por exemplo, tem uma espécie de CIDE municipal. O
prefeito tributa a gasolina e subsidia o transporte público. Eu entendo
que 2014 é um bom ano para discutir esse tema, em termos nacionais.
--P: Mas em um ano eleitoral?
R: Justamente.
É em ano eleitoral que se discute esse tipo de coisa. Se o Brasil quer o
barateamento da tarifa, então temos que discutir a fonte desse
barateamento. Por que você vai prejudicar outros setores do governo para
baratear o transporte? Saúde, educação, moradia? Essa pergunta será
feita aos candidatos. Ninguém que é pessimista pode entrar na política. A
política já é tão difícil sendo o que ela é. O pessimista tem de fazer
outra coisa... Tem que ser jornalista (risos).
--P: Mas a prefeitura teve que congelar boa parte da verba por mais um ano. Como implementar os projetos?
R: A
suspensão da tarifa e a falta de correção da tabela do IPTU implicam na
redução do investimento na cidade. Mal ou bem, essas decisões foram
tomadas. Foi o resultado do campo de forças que atuou sobre a cidade.
Uma cidade que já investe metade do que as demais capitais do Sudeste
investem vai ter mais restrições de investimentos. Esta cidade que pede
mais creche, mais qualidade do transporte, mais leitos hospitalares, que
se façam mais cirurgias eletivas, precisa encontrar um padrão de
financiamento. Isso passa por muitas ações, pela repactuação da dívida
do município com a União, que ao contrário do que se vem retratando,
está bem encaminhada.
--P: Mas existe um consenso no mundo
econômico de que repactuar a dívida da prefeitura com a União pode gerar
um endividamento e prejudicar o ajuste fiscal do país.
R: Discordo
desse entendimento. Primeiro, porque não tem impacto fiscal no curto
prazo. Segundo, nós estamos buscando um reequilíbrio do contrato. Não é
farra fiscal. A União não pode enriquecer às custas dos entes cujas
dívidas foram renegociadas. Não posso pagar uma dívida de 17% [de juros]
para a União, enquanto ela rola as dívidas dela a 10%. Numa Federação,
um ente não pode lucrar à custa de outro. Acho incrível um economista
sério defender um contrato totalmente desequilibrado como esse. O que
estão dizendo é o seguinte: já que você assinou um contrato infeliz,
paciência. Você vai colaborar com o esforço fiscal da nação porque você
fez um mau negócio. Mas esse negócio foi feito entre o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso e o ex-prefeito Celso Pitta (nos anos 2000). É
uma excrescência do ponto de vista jurídico.
--P: O senhor acredita, então, que isso pode mudar neste ano?
R: Eu
confio na regra de bom senso. Não há como prevalecer o entendimento de
que um contrato totalmente desequilibrado deva ser mantido porque um
grupo de fundamentalistas entende que isso coloca em risco a
estabilidade financeira do país. Estamos falando de um município!
--P: Mas que é o maior município do país...
R: O que é pouquíssimo perto da União.
--P: Mas a mudança do indexador afetaria outros municípios e Estados.
R: Mas
é justo que a mudança do indexador ocorra. Não é razoável imaginar que
Alagoas, por exemplo, um dos Estados com os piores indicadores sociais,
talvez do mundo, subsidie a União. Esquece São Paulo. Para Alagoas é
justo?
--P: Mas, de qualquer forma, ainda estamos falando de uma expectativa de mudança. E, de concreto, ainda não tem verba.
R: Quando uma bola está na marca do pênalti, tenho uma boa expectativa de que vai sair o gol.
--P: Tem o Roberto Baggio para mostrar que ela sempre pode ir para fora....
R: Óbvio que pode. Mas com uma bola na marca do pênalti, uma expectativa de gol não é otimismo exacerbado.
--P: Mas o senhor conta com mais verbas da União? Ela já aumentou em 3.000% para os investimentos na saúde na sua gestão...
R: São
Paulo se mantinha isolado. Nós estamos aderindo a todos os programas
federais. Na área da saúde, educação, cultura, mobilidade, do “Minha
Casa, Minha Vida”. Agora, óbvio que nós temos constrangimentos. Quando o
programa federal exige contrapartida, o aumento da arrecadação própria
do município é essencial para honrar essa contrapartida. Por isso, a
nossa preocupação com o IPTU é tão grande.
--P: Como assim?
R: Porque
ao contrário do que a FIESP alardeou, nós não vamos perder só 800
milhões de reais. Aliás, 800 milhões só não é dinheiro para a FIESP.
Para São Paulo, é muito dinheiro. Nós não vamos perder só os 800
milhões, vamos deixar também de fazer obras que exigem a contrapartida.
Por exemplo: a União paga a construção de creche para os municípios. Só
que, para isso, eu preciso de terreno. Mas como não tenho terreno
público em São Paulo, eu preciso desapropriar. E se eu não tenho o
dinheiro próprio para a desapropriação, o dinheiro federal não vem. O
principal problema são os casos em que preciso desapropriar, como o
“Minha Casa, Minha Vida”, e os corredores de ônibus.
--P:
Houve bairros com aumento de 29%, como no caso da Vila Mariana (classe
média alta), e redução de 10% em bairros como Guaianases (de baixa
renda). Não se poderia [para proteger um pouco mais os mais ricos] ter mantido esses bairros sem desconto, para que outros não tivessem tanto reajuste?
R: A
planta genérica de valores não é uma peça política. É uma peça técnica,
elaborada na secretaria de Finanças. Uma lei municipal exige que, no
primeiro ano de mandato, todo prefeito atualize. Eu estava cumprindo a
lei. Eu estava fazendo o que todos os prefeitos fizeram no seu primeiro
ano. É justo atualizar a base de cálculo do tributo. Se uma
jurisprudência como essa se firma, o que eu não acredito, vai ter
repercussões em todos os municípios.
--P: Não faltou diálogo, sabendo ainda que o presidente da FIESP, Paulo Skaf, pode se candidatar a governador em 2014?
R: Não faltou diálogo, sobrou oportunismo. É minha opinião sincera.
--P: No mundo da política não existem bondades, o jogo não é fraternal...
R: Debate
sobre tributo no Brasil sempre se ganha a posteriori; a priori é muito
difícil ganhar. Quando prometeram que os preços das mercadorias iriam
cair com o final da CPMF (tributo criado para financiar a saúde, extinto
posteriormente), lembra? Nós estamos esperando até agora... Os
empresários embolsaram lucros maiores e a saúde pública foi prejudicada.
--P:
Já que estamos falando de lucro... O senhor deu uma declaração que
gerou polêmica recentemente. Disse que a Casa Grande, representada pela
FIESP, venceu a Senzala, que é a população pobre de São Paulo. O senhor
acha que há uma luta de classes?
R: Veja bem, nós
estamos num dos países mais desiguais do mundo. Não sei por que lembrar
isso ofende alguém. E combater as desigualdades é equilibrar a
contribuição que cada um dá para a sociedade se emancipar das mazelas
materiais que sofre. Não vejo ofensa nisso.
--P: É difícil ter uma visão mais marxista numa sociedade tão conservadora quanto São Paulo?
R: Não
estou falando de marxismo aqui. Estou falando de Estado de bem-estar
social. Como é que São Paulo admite conviver com a miséria que ainda
existe aqui, a cinco quilômetros do centro? Como se admite conviver com
tanta miséria ainda?
--P: Mas também existe um paulistano que rejeita a miséria, que quer uma cidade mais humana. Como o senhor percebe isso?
R:
Sempre fui da opinião que São Paulo não é uma cidade conservadora, é
uma cidade onde atuam fortemente forças conservadoras. A cidade é melhor
do que parece. Agora, muitas vezes esse desejo, essa vontade de
mudança, fica subordinada aos donos que impedem essas forças de se
manifestarem mais livremente. Por isso que é uma cidade tensa. Ela quer
aflorar, mas não deixam. É o cabresto da Casa Grande. (risos).
COMBATE À CORRUPÇÃO
--P:
Existe uma ação da prefeitura, com apoio consensual, que é a
Controladoria Municipal. O senhor falou em trabalhar leis internacionais
para punir as construtoras, envolvidas na máfia dos fiscais. Como esse
assunto foi encaminhado? No Brasil, não se pune o corruptor.
R: Ainda
há muitas distorções que estão sendo corrigidas. Entra em vigor em
janeiro uma lei que permite a multa administrativa severa dos
corruptores. É uma lei nacional, que pretendemos aplicá-la exemplarmente
em São Paulo. Há um projeto de lei desde 2004 no Congresso Nacional,
encaminhado pelo ex-presidente Lula, que criminaliza o enriquecimento
ilícito. Hoje, isso não é crime. Posso te garantir uma coisa: se no
Brasil for feito o trabalho que a controladoria do município fez, de
cruzamento de dados patrimoniais, com declaração de Imposto de Renda,
uma parcela da Casa Grande seria encarcerada. Pode ter certeza.
--P:
O combate à corrupção resvalou no seu governo, com o nome do Antônio
Donato (secretário de Governo que pediu afastamento ao ser apontado como
receptor de propina no esquema de fiscais da prefeitura com
construtoras). Como o senhor vê isso?
R: Só três
pessoas poderiam prejudicar essa investigação até a sua conclusão
exitosa: eu, o controlador e o Donato. Éramos as únicas três pessoas da
prefeitura que, por dever de ofício, tinham que acompanhar, desde março,
o passo a passo das ações conduzidas. Teve uma determinada
circunstância, num determinado dia, que foi crucial. O controlador
chegou para mim e para o Donato e falou: 'olha, tá mapeado o problema.'
Expôs todo o problema, que veio a ser conhecido seis meses depois.
Disse: 'nós temos duas condutas a tomar, ambas com amparo legal. Um
processo administrativo disciplinar por enriquecimento ilícito em que
esses servidores serão demitidos. E outro muito mais delicado: levar o
problema para o Ministério Público, tentar uma ação judicial que abra
uma investigação com autorização legal, com quebra de sigilo telefônico,
bancário, fiscal e todas as consequências inerentes a essa decisão'.
Qual foi a posição minha e a do Donato? Vamos pelo caminho mais difícil,
mas que vai resultar na verdade, em saber como essas pessoas acumularam
até aqui 80 milhões de reais em patrimônio pessoal.
--P: E por que o senhor acha que o nome dele foi envolvido?
R: Ah,
aí tem que perguntar para quem envolveu... Eu estou dando um testemunho
de quem presenciou a cena. A decisão foi tomada ali. Naquele minuto.
Ninguém ali piscou. Muita gente não faria isso.
--P: Foi uma perseguição ao senhor?
R: Não,
não lido com esse conceito. Eu só sou uma pessoa, até pela minha
formação, que acredita que você explicando os dilemas que o
administrador público vive, isso ajuda a empurrar para a direção correta
a cidade. Possivelmente, alguém consideraria melhor ir no caminho do
menor risco para a administração. Nós optamos por outro caminho. Por um
jeito que é mais pedagógico, mais transparente e que envolve mais
riscos.
--P: Quer dizer, o grande mérito da Controladoria foi esse cruzamento de dados...
R: Em
90 dias, desbaratamos uma quadrilha que atuava havia oito anos! Agora,
veja que curioso, a mentalidade é tão distorcida no nosso país, que boa
parte da imprensa local começou a me criticar por não ter feito os
cálculos políticos da minha decisão. Como se a ética tivesse de ser
subordinada ao cálculo político. E muitos prefeitos, que estavam
interessados em criar as suas controladorias, recuaram diante da reação
da imprensa à minha suposta ingenuidade. As distorções morais estão em
todo lugar.
--P: É verdade que o ex-presidente Lula chamou o
senhor para conversar sobre o desgaste dessa ação na aliança com o PSD,
do ex-prefeito Gilberto Kassab, que é importante para a reeleição da
Dilma?
R: Nunca. Tem reuniões das quais eu participei que eu fico sabendo pela imprensa. (risos).
PROTESTOS
--P:
E na época dos protestos? Houve uma crítica de que a prefeitura demorou
para atuar. Se disse que o ex-presidente Lula estava insatisfeito com a
sua postura. É verdade?
R: Sobre esse assunto eu
conversei com o presidente Lula. E ele sempre entendeu o problema como
um problema que não era local. Ele foi um dos primeiros a fazer essa
afirmação: 'não é a tarifa'.
--P: E, hoje, como o senhor avalia o que aconteceu em 2013 no país? Eu queria a resposta do cientista político, não do prefeito.
R: Eu
acho que o estopim pode ter sido a tarifa. Deixa eu fazer algumas
considerações, já que você está perguntando para um cientista político
você tem que me dar tempo (risos). A minha campanha eleitoral se baseou
numa tese que se provou vencedora. Mas que explica muito, na minha
opinião, as manifestações de junho. Eu dizia que a vida do brasileiro
tinha melhorado da porta de casa para dentro. Mas não tinha melhorado da
porta de casa para fora. Quis dizer que a vida do trabalhador: renda,
acesso à crédito, acesso ao consumo, à educação, à saúde... tudo tinha
melhorado, da porta para dentro. Mas que os serviços públicos, da porta
para fora, não tinham acompanhado esse ritmo de mudança. A tarefa nossa,
portanto, seria essa. Tínhamos que melhorar para o usuário do SUS
[Sistema Único de Saúde], para o usuário de escola pública. Acho que
junho é um pouco o resultado disso. Com um ingrediente, na minha
opinião, que explica muito a forma que a coisa assumiu: a violência
policial.
--P: A violência foi o elemento catalizador?
R: Eu
acho que ali houve uma resposta da juventude, que disse: 'nós não vamos
aceitar um retrocesso democrático no país e se formos para a rua para
nos manifestar é um direito nosso'. Acho que aquela quinta-feira, 13 de
junho, é um “turning point”. Existia um movimento [pela redução da
tarifa] que não era novo, que não tinha grande expressão e, de repente,
uma violência muito grande resultou numa situação inédita.
--P: A Polícia Militar foi inábil?
R: Eu
entendo que o Estado ainda não estava preparado do ponto de vista da
sua organização, da formação democrática que as forças de segurança têm
que ter. Nós saímos da ditadura militar, o Brasil está avançando
enormemente na democracia, é uma das democracias mais vibrantes do
mundo. Mas eu entendo que, do ponto de vista da segurança pública,
existe ainda um componente mal resolvido de interface com a política, de
se criminalizar protesto, por exemplo. Isso é uma coisa muito comum em
uma ditadura, onde se criminaliza os opositores do regime. Numa
democracia, não se aceita. O que me pareceu é que houve uma reação muito
forte da sociedade em relação a esse resquício do período autoritário.
--P: O senhor acha que a polícia deve ser desmilitarizada?
R: Eu
não estudei esse assunto. A tendência mundial é a da desmilitarização.
Isso é uma tendência no mundo e quanto mais evoluído o país, mais essa é
a regra.
--P: Agora, olhando quase seis meses depois,
teria alguma coisa que o senhor teria feito diferente em relação às
manifestações? A prefeitura demorou para agir?
R: Demorou-se
muito tempo? Acho que não. Na quinta-feira, 13 de junho, houve aquele
evento, aquela enorme repressão e na quarta-feira foi feito o anúncio.
--P: Mas as manifestações já tinham sido reprimidas com violência outras vezes antes, tudo vinha crescendo...
R: Antes
daquela quinta-feira, as vítimas retratadas pela própria imprensa
estavam mais do lado da polícia. A foto da quarta-feira, 12 de junho, em
todos os jornais, é a de um policial sangrando e não a de um
manifestante ferido. Não estava claro o que de fato estava acontecendo.
Na quinta-feira, muda tudo. O que eu vi depois de quinta é que o debate
ali estava completamente interditado. Já não era possível debater o
assunto. Ainda tentamos. Mas ali já não havia mais nenhum espaço para o
debate.
--P: Uma das soluções que vieram foi a Comissão
Parlamentar de Inquérito do ônibus (quer seria feita na Câmara
Municipal, pelos vereadores, para abrir as planilhas de gastos do
transporte público). Isso andou muito pouco.
R: Eu
não vejo condições de um aprofundamento desse tipo de debate numa CPI.
CPI, em geral, é muito boa para apurar uma denúncia. Um fato concreto.
Uma auditoria, na minha opinião, só uma auditoria internacional licitada
como nós vamos fazer. Estamos no meio do processo de licitação. Como a
sociedade está demandando mais transparência, resolvi que não vou
licitar o sistema, sem antes auditar.
--P: Vai constar no critério de preferências mais linhas oferecidas?
R: Primeiro
lugar, na minha opinião, é o custo disso tudo. Quando as pessoas falam:
'corta do empresário', vamos ver. No primeiro ano da minha primeira
administração, reduzimos o desembolso em 500 milhões de reais em 2013. A
mesma prefeitura está atuando na renegociação dos contratos com os
fornecedores, renegociação da dívida com a União, negociação dos
precatórios, planta genérica de valores... Fazemos um grande esforço de
saneamento para recolocar São Paulo na liderança do investimento público
per capita do país.
--P: É possível ter tarifa zero no transporte público?
R: Vamos
fazer uma pergunta diferente: é possível aumentar o subsídio à tarifa
até o ponto de chegar a 100%? A minha opinião é que sim, se tiver uma
fonte de financiamento.
--P: Que seria...
R: A
municipalização da CIDE. Se os prefeitos forem autorizados a tributar a
gasolina para subsidiar a tarifa, você poderia avançar no subsídio e
diminuir o preço da tarifa no bolso do trabalhador.
--P: Vai ter aumento de ônibus em 2014?
R: Não está planejado.
--P: Isso é não?
R: Isso é não.
POLÍTICA
--P:
Estamos falando de arrumar a casa e, talvez, colher os frutos dessa
arrumação muito tempo depois de quatro anos. Todas essas questões
demoram um tempo até que se tenha verba para fazer o que realmente
aparece aos olhos públicos. Não é um risco político?
R: É
um risco político que eu decidi assumir, conscientemente. Eu vou te dar
um exemplo da minha passagem pelo Ministério da Educação: seguramente,
nós fizemos a maior reforma educacional da história. Mas nós ficamos
dois anos discutindo roubo de uma prova do ENEM, de um livro que
supostamente ensinava o brasileiro a falar errado... Ou seja: do que nós
estamos falando? Você promove uma das maiores reformas, inclusive
reconhecida pela UNESCO, pela UNICEF. E nós ficamos presos a esses
acontecimentos que a imprensa julgou como os mais relevantes a serem
discutidos. É difícil a comunicação.
--P: No longo prazo, esses esforços podem ser percebidos? O PT tem tempo de esperar esse longo prazo em São Paulo?
R: Veja
bem. São Paulo precisa ser bem sucedida pela métrica que me interessa. A
métrica que me interessa não é a reeleição. Você pode ser mal sucedido e
se reeleger. Conheço vários prefeitos ruins que foram reeleitos. A
minha métrica do sucesso não é a reeleição. É um projeto para a cidade. A
cidade tem um projeto hoje? Não tem. Se essa cidade em 2016 tiver um
projeto... E quando eu digo projeto não é o prefeito ter um projeto. É a
cidade ter um projeto. Para mim, essa é a vitória da gestão. Para mim, o
que significa mudar São Paulo é uma combinação virtuosa entre o projeto
e o tempo. É um risco muito grande? É um risco muito grande.
--P: Mas adianta ter um projeto e em 2016 não conseguir a reeleição e entrar outro prefeito que vai assumir outro projeto?
R: Foi
o que aconteceu com a Marta [Suplicy]. Porque a Marta, à maneira dela,
vinha desenvolvendo uma visão de cidade que estava se impondo e que é
diferente da São Paulo que nós conhecemos hoje. Em minha opinião, a
cidade seria outra. Até porque eu participei da gestão dela e vi que se
estava constituindo uma coisa nova em São Paulo. E ela perdeu.
--P: E o senhor não teme isso?
R: Temo. Mas qual a alternativa que eu tenho? Maquiar? Não sei!
--P:
A Marta foi muito bem aceita na periferia e rejeitada nos bairros mais
ricos. Ela também teve um embate com a classe média, onde está grande
parte do conservadorismo. Não existe uma estratégia para trabalhar a
conquista da classe média?
R: É difícil você
convencer alguém de alguma coisa no primeiro ano de governo. Porque as
pessoas não conseguem enxergar. É muito difícil, inclusive, comunicar
coisas que estão sendo gestadas ainda. Então, tem que ter muita
paciência para suportar esse processo. Trabalhar calado, aguentando e
acreditar que tem uma coisa que vai desabrochar. Exige um exercício
incrível.
--P: A gente vê que a aposta do Kassab para a
reeleição foi bem simples. Ele investiu na “Cidade Limpa”, investiu na
zeladoria...
R: A do [José] Serra foi mais simples ainda! Se desincompatibilizou depois de um ano e se candidatou a governador... (risos)
--P: Não seria mais fácil essa aposta mais simples?
R: É mais fácil! Mas, mutatis mutandis,
você está me fazendo o tipo de pergunta que me causava certa indignação
três meses atrás quando me perguntavam: 'mas porque você está
combatendo a corrupção desse jeito? Você não está percebendo que isso
está trazendo prejuízo para o teu governo?'. É o mesmo tipo de cálculo,
entendeu. Mas é o jeito que eu sei fazer.
--P: Mas o senhor
foi uma aposta do PT para tentar se renovar, trazer quadros novos, já
que há preconceito da classe mais conservadora paulista com a questão
sindical, trabalhista, historicamente ligada ao partido. O senhor é um
intelectual, professor da USP. O ministro da Saúde Alexandre Padilha,
que deve ser o candidato ao Governo de São Paulo neste ano, vem com o
mesmo perfil...
R: Não
tem ninguém que se pareça mais com um tucano do que eu. Branco, filho
de imigrante, bem sucedido academicamente, três diplomas. E o que quer
dizer isso? Na hora em que os interesses estão em jogo, é de que lado
você fica que importa. Quer mais do que a Marta? Loira, de olhos azuis,
quatrocentona, poliglota, estudou na França, nos EUA. O currículo da
Marta dá de dez no de qualquer tucano. E daí? Mas ela fez “Bilhete
Único”, CEU na periferia, corredor de ônibus.
--P: Foi um ano intenso. O senhor está cansado?
R: Sei
lá. Oscila muito tua maneira de ver. Não sei. Já vivi anos difíceis na
vida. 2005 foi um ano muito difícil na minha vida, quando assumi o
Ministério da Educação. Tive anos na vida privada muito difíceis.
--P: O senhor se arrepende?
R: Não. É um privilégio viver essa experiência.”
FONTE: entrevista, publicada no site do jornal espanhol “El País” no último dia de 2013. Transcrita no jornal online “Brasil 247”
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