transcrito do Carta Maior
A Carta Maior traduziu trecho da entrevista que o neurocientista Carl Hart concedeu ao site Democracy Now!.
Atualmente, o debate da questão das drogas no Brasil muitas vezes foca a
internação compulsória e o acirramento das leis anti-drogas como as
medidas necessárias a serem tomadas para tentar solucionar o problema da
dependência química. O Dr. Carl Hart traz uma visão totalmente
diferente e inovadora para os padrões científicos amplamente difundidos
na grande mídia.
Entrevista do Dr. Carl Hart a Amy Goodman, do DemocracyNow!
O
Dr. Carl Hart é o primeiro cientista afro-americano titular na
Universidade de Columbia, onde é professor associado dos departamentos
de psicologia e psiquiatria. Ele também é membro do Conselho em Assuntos
de Abuso de Drogas e pesquisador da Divisão de Abuso de Substâncias do
Instituto de Psiquiatria de Nova York. No entanto, muito antes de ter
entrado nos salões consagrados da Ivy League, Carl Hart adiquiriu
conhecimento de primeira-mão sobre o uso de drogas nos bairros mais
perigosos de Miami, onde cresceu. Ele publicou recentemente o seu livro
High Price: A Neuroscientist’s Journey of Self-Discovery That Challenges
Everything You Know About Drugs and Society. Neste livro, ele relembra
sua jornada de descobertas e como escapou de uma vida de crimes e não se
tornou um dependente químico como aqueles que ele hoje estuda.
Amy Goodman: Vamos começar falando sobre de onde você vem.
Dr. Carl Hart: Bom, como dizem, eu vim do gueto. E, quando pensamos nestas comunidades, logo pensamos naquela imagem de lugares devastados pelo
abuso de drogas: eu acreditei nessa narrativa por muito tempo. Na
verdade, eu tenho estudado as drogas há 23 anos; e por 20 acreditei que
as drogas eram o problema das comunidades. Mas quando eu comecei a olhar
com mais cuidado, quando comecei a olhar as evidências de maneira mais
cuidadosa, ficou claro para mim que as drogas não eram o problema. O
problema era a pobreza, a política anti-drogas, a falta de empregos - um
leque variado de coisas. E as drogas eram apenas um componente que não
contribuía tanto quanto os outros que citei anteriormente.
Amy Goodman: Então, fale-nos dos resultados destes estudos que você vem publicando há alguns anos nos maiores jornais científicos.
Dr. Carl Hart:
Bom, uma das coisas que me chocaram quando eu comecei a entender o que
estava acontecendo foi o fato de ter descoberto que de 80% a 90% das
pessoas que usam drogas como o crack, a heroína, metanfetaminas,
maconha, não são viciadas. Eu pensei, “espera aí. Eu pensava que uma vez
que se usava estas drogas, todos se tornavam viciados, e essa era a
causa dos problemas sociais.” Outra coisa que eu descobri foi que se
dermos alternativas às pessoas - como empregos - elas não abusarão das
drogas como fazem. Descobri isso no laboratório com humanos assim como
com animais.
Amy Goodman: o que você quer dizer? Você está dizendo que o crack não é tão viciante quanto todos dizem?
Dr. Carl Hart: Bom,
temos um belo exemplo agora: o prefeito de Toronto, Rob Ford. Ele usou
crack e fez seu trabalho normalmente. Deixando de lado o que pensamos
sobre ele ou suas políticas, ele foi ao trabalho todos os dias. Ele fez
seu trabalho. A mesma coisa aconteceu com Marion Barry. Ele foi ao
trabalho todos os dias. Na verdade, ele o fez tão bem na opinião das
pessoas de Washington que ele foi votado mesmo depois de ter sido
condenado pelo uso de crack. E assim é a maioria dos usuários de crack.
Assim como qualquer outra droga, a maior parte das pessoas o faz sem
outros problemas.
Amy Goodman: Compare com o álcool.
Dr. Carl Hart:
Bom, quando pensamos no álcool, cerca de 10% a 15% dos usuários são
viciados ou se encaixam em critérios do alcoolismo; para o crack, cerca
de 15% a 20% - quase a mesma coisa se tratando de números. E nós sabemos
disso cientificamente já faz 40 anos. Mas não dizemos esse tipo de
coisa ao público
Amy Goodman:
Então, você está dizendo que alguém que toma vinho todas as noites no
jantar não seria considerado viciado da mesma forma que a pessoa que usa
crack é?
Dr. Carl Hart:
Exatamente. Então, o crítério, para mim, para julgar se alguém é ou não
viciado é o de se esta pessoa tem problemas nas suas funções
psicossociais. Ela vai ao trabalho? Ela lida com suas responsabilidades?
O ela deixa de lado suas atividade? E quando pensamos em drogas como o
alcool, as pessoas podem beber todos os dias e ainda assim lidar com
todas suas responsabilidades. O mesmo se dá com usuários de crack. O
mesmo se dá com usuários de cocaína. O mesmo com maconha. Pense da
seguinte forma: os três últimos presidentes recentes usaram drogas
ilícitas, e todos eles cumpriram com suas responsabilidades. Eles
alcançaram os níveis mais altos de poder. E teríamos orgulho deles se
fossem nossos filhos, apesar do fato de terem usado drogas ilegais.
Amy Goodman: Mas todos eles dizem que não usavam de maneira regular...
Dr. Carl Hart:
Bom, quando nós dizemos “de maneira regular,” por exemplo, eu uso
álcool assim. Eu posso beber uma vez por mês, duas, quatro vezes. Pode
variar, mas isto é, certamente, regular. E então eu penso que, quando as
pessoas dizem regular, elas pensam na verdade em abusar. E quando as
pessoas abusam várias vezes ao dia isso vai atrapalhar algumas de suas
funções psicossociais. Mas, isto se dá com um número pequeno de pessoas.
Só algumas têm um comportamento como esse. E eu asseguro que se alguém
tem esse tipo de comportamento, este não é seu único problema. Ela tem
muitos outros.
Amy Goodman: Então, por que algumas pessoas se viciam em crack e outras não?
Dr. Carl Hart:
Esta é uma ótima questão. As pessoas se viciam por muitas razões.
Algumas possuem outras doenças psiquiátricas que contribuem com seu
vício em drogas. Outras ficam viciadas porque esta é a melhor opção
disponível a elas; outras porque têm poucas capacidades limitadas para
assumir responsabilidades. As pessoas se tornam viciadas por um leque
muito diverso de razões. Se nós estivéssemos de fato preocupados com o
vício em drogas, nós estaríamos tentando entender precisamente o porquê
as pessoas se tornam dependentes. Mas não é nisso que estamos
interessados. Nesta sociedade nós nos interessamos em maldizer
as drogas. Dessa forma, não temos de lidar com os problemas sociais mais
complexos que transformam as pessoas em dependentes químicos.
Amy Goodman: Fale sobre neurociência.
Dr. Carl Hart:
Essa é uma ótima questão. Em algum nível, em termos de abuso de drogas,
a neurociência se tornou um tipo de "vodu", apesar de ser meu tipo
favorito de ciência. As pessoas acham que a neurociência se resume em
imagens bonitinhas mostradas aos pacientes e suas reações, como se essas
refletissem seu comportamento. Não reflete. Partindo dessa perspectiva,
isso me preocupa muito. Mas por um outro lado, eu me maravilho com o
que aprendemos sobre o funcionamento do cérebro. Não estamos nem perto
de poder explicar o vício em drogas com a neurociência, mas isso não
significa que não deveríamos tentar descobrir o que se passa no nossa
cabeça.
Amy Goodman: Você tem feito testes em humanos. Como esses experimentos se comparam com os feitos em animais e nos ratos?
Dr. Carl Hart:
Depende da pergunta que você faz. Quando pensamos na dopamina, e você
tem ouvido falar bastante desse neurotransmissor, está nos cérebros dos
ratos e dos humanos. Se você quer saber o que a cocaína faz com a
dopamina, você pode usar o cérebro de um rato para descobrir isso, assim
como o de um humano. Mas quando começamos a falar sobre vício em drogas
e suas complexidades, o aspecto muda pois esse vício é uma doença dos
humanos, não dos ratos. O que você pode fazer nos ratos é, talvez,
formular um componente ou até dois da dependência química, mas temos de
entender que isso tem suas limitações.
Amy Goodman:
Doutor, você pode falar da sua jornada de vida? Como acabou sendo o
primeiro cientista Afro-Americano a ser titulado na Universidade de
Columbia?
Dr. Carl Hart:
Essa é uma questão que a sociedade deveria responder. Eu digo, quando
pensamos nos números de Afro-Americanos que estão no campo da
neurociência e porque são baixos, esse é um assunto que a sociedade
ainda não analisou. E tem relação com o papo sobre maconha. Você mostrou
algo sobre Kennedy mais cedo. Esse tipo de pessoa me enoja, sério,
quando pensamos sobre o papel do racismo na repressão às drogas, e essas
pessoas não pensam nisso?
Amy Goodman:
O ex-membro do Congresso, Patrick Kennedy, co-fundou o grupo
Alternativas Inteligentes para a Maconha, sendo contrário à legalização,
baseando-se no argumento de que poderia ser prejudicial às minorias do
país. O que você pensa sobre isso?
DR. Carl Hart:
Se ele realmente estivesse preocupado com as comunidades compostas por
minorias, ele deveria fazer menção a este fato: hoje, se mantivermos a
mesma aplicação de políticas em relação às drogas, um a cada três
afro-americanos nascidos hoje passariam um tempo na cadeia. Se ele
estivesse realmente preocupado, ele iria entender que homens
afro-americanos representam 6% da populaçao e 35% da população
carcerária. Isso é abominável.
E
quando nós pensamos sobre os perigos da maconha de uma perspectiva
científica, eles são equivalentes ao do álcool. Agora, eu não quero
ficar falando sobre os perigos do álcool ou acabar com sua reputação,
pois eu penso que toda sociedade deveria ter drogas. Nós precisamos
delas, e toda sociedade sempre os utilizou.
AMY GOODMAN: Por que nós precisamos de drogas?
Dr. Carl Hart:
Deixa as pessoas mais interessantes, diminui a ansiedade. O álcool é
associado com um grande leque de efeitos benéficos à saúde - diminui a
chance de doença no coração, de enfartos. O mesmo pode ser dito da
maconha - ajuda as pessoas a dormir melhor, pode combater a ansiedade.
Pensemos
em analogia com os automóveis. Nos anos 1950, o número de acidentes de
carro eram relativamente altos. Foram instituídas medidas: cinto de
segurança, limite de velocidade etc. Os acidentes diminuíram
sensivelmente. Se as pessoas estão preocupados com os perigos da
maconha, nós podemos ensina-las como usar de forma mais segura.
Amy Goodman: Como você saiu de uma vizinhança violenta em Miami para a Universidade de Columbia ?
Dr. Carl Hart: Nós
tinhamos um Estado de bem-estar social, que servia como uma rede de
segurança para famílias como a minha. Eu tenho sete irmãos e hoje somos
todos contribuintes, mas nós fomos criados no Estado de bem-estar. Sem
isso, eu não estaria aqui. O governo tinha programas em ciência para as
minorias, o que me ajudou a conseguir um Ph.D. Além disso, tive muitos
mentores: negros, brancos, mulheres. E uma avó forte e cinco irmãs mais
velhas que me ajudaram muito.
Amy Goodman: Você inicia seu livro falando sobre um experimento humano que você fez recentemente. Explique.
Dr. Carl Hart:
Esse experimento foi pubicado no New York Times recentemente. Eu
pesquisei a literatura animal, a qual mostra que quando você permite que
um animal auto-administre cocaína pressionando uma alavanca que a
injeta em suas veias, ele o fará até morrer. No entanto, após um estudo
mais aprofundado da literatura, descobri que se você oferece um parceiro
sexual a esse animal, ou algo doce para comer, eles dispensam a droga.
Eles dão atenção a essas outras atividades. Então, eu achei que seria
interessante descobrir se viciados em crack teriam seus comportamentos
em relação à droga alterados se lhes fossem oferecidas alternativas.
Nesse experimento, oferecíamos apenas 5 dólares. E é possível ver que
eles aceitam o dinheiro em mais da metade das ocasiões.
Amy Goodman: Explique essa cena.
Dr. Carl Hart:
Você leva uma pessoa para o laboratório. Eles se sentam de frente para
um computador para indicar suas escolhas. Do lado esquerdo, a droga; do
direito, o dinheiro. E eles têm cinco oportunidades, separadas por 15
minutos, que é o intervalo de tempo que uma enfermeira entra na sala e
pede para que eles indiquem a opção escolhida.
Amy Goodman: Quem são esses sujeitos?
Dr. Carl Hart:
Esses participantes são pessoas que atendem ao critério do vício em
crack: indivíduos que usam crack por volta de cinco dias por semana.
Eles gastam por volta de 200 a 300 dólares por semana com a droga. E nós
passamos todos os requisitos éticos para que eles possam vir ao
laboratório. Eles passam por exames físicos e são monitorados por uma
enfermeira e um médico.
Assim
que eles indicam sua escolha para a enfermeira, ela as traz para nós.
Quando você oferece cinco dólares, a escolha é dividida. Mas se você
aumenta a oferta para 20 dólares, eles sempre escolhm o dinheiro, nunca a
droga. E muitas vezes as pessoas dizem: "Eles selecionam o dinheiro
para comprar mais droga". Uma coisa que normalmente se diz sobre
usuários de crack é que eles não conseguem fazer escolhas racionais uma
vez que possuem a opção de escolher a droga. Mas eu sei que a maioria
dessas pessoas nesses estudos não simplesmente pegou o dinheiro para
comprar drogas, até porque pagamos algumas de suas dívidas. Eles
guardaram o dinheiro que receberam e nos pediram para pagar certas
contas.
Amy Goodman: Você ficou surpreso com suas descobertas?
Dr. Carl Hart
Eu fiquei absolutamente surpreso quando comecei a coletar esses dados
em 1999, 2000, pois eu havia sido levado a pensar, assim como o público
americano, que usuários de crack iriam sempre escolher por mais crack. E
isso é um mito.
Amy Goodman: Finalmente, Dr. Carl Hart, qual sua avaliação da forma como a mídia lida com as questões relacionadas às drogas?
Dr. Carl Hart:
Não é apenas a mídia. Cientistas também contribuem para a
desinformação, em parte porque têm medo de que qualquer coisa que digam
seja interpretada como permissiva, então dizem muito pouco.
Aparentemente, o principal objetivo dos cientistas não é a comunicação,
mas sim não estar errado. E assim nós perdemos uma oportunidade de
educar o público americano sobre como diminuir prejuízos relacionados às
drogas.
Amy Goodman: O que você diz para os jovens a respeito de drogas e álcool?
Dr. Carl Hart:
Eu penso nessas coisas da mesma forma que eu penso sobre outros
comportamentos potencialmente perigosos, como dirigir, por exemplo. Eu
faço questão de educar meus filhos para que dirijam de forma segura,
para fazerem sexo seguro. O mesmo vale para as drogas. Eu faço questão
de que eles entendam os potenciais efeitos positivos, negativos, e como
evitar os negativos.
Tradução de Isabela Palhares, Roberto Brilhante, e Rodrigo Giordano
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