Por José Luís Fiori
Valor
– 29/01/2014
“As terras situadas ao sul do Rio Grande constituem
um mundo diferente do Canadá e dos Estados Unidos. E é uma coisa desafortunada
que as partes de fala inglesa e latina do continente tenham que ser chamadas
igualmente de América, evocando similitudes entre as duas que de fato não
existem”. N.
Spypkman, “America’s Strategy in World Politics, Harcourt, Brace abd Company,
New York, 1942, p: 46
Tudo indica que os Estados Unidos serão o principal
contraponto da política externa brasileira, dentro do Hemisfério Ocidental,
durante o século XXI. E quase ninguém duvida, também, que os EUA seguirão sendo
por muito tempo a principal potência militar e uma das principais economias do
mundo. Por isto é fundamental compreender as configurações geopolíticas da
região e a estratégia que orienta a política hemisférica americana deste início
de século.
Ao norte do continente, o poder americano foi, é e
seguirá sendo incontrastável, garantindo-lhe fronteiras continentais
absolutamente seguras. Além disto, a assimetria de poder dentro da América do
Norte é de tal ordem que o Canadá e o México tendem a convergir cada vez mais,
atraídos pela força gravitacional do poder econômico e militar dos EUA. O que
não significa, entretanto, que o Canadá e o México ocupem a mesma posição junto
aos EUA e dentro do tabuleiro geopolítico e econômico regional, apesar dos três
países participarem do “Tratado Norte-Americano de Livre Comercio” (Nafta)
desde 1993.
O Canadá ocupa uma posição única, como ex-colônia e
ex-domínio britânico, que, depois da sua independência e da Segunda Guerra
Mundial, transferiu-se para a órbita de influência direta dos EUA,
transformando-se em sócio comercial, aliado estratégico e membro do sistema de
defesa e informação militar dos povos de “língua inglesa”, comandado pelos EUA,
e composto pela Inglaterra, Austrália e a Nova Zelândia. Neste contexto, o
México ocupa apenas a posição de enclave militar dos EUA, uma espécie de “primo
pobre”, de “fala latina”, ao lado das potências anglo-saxônicas.
Mais do que isto, o México é hoje um país dividido
e conflagrado por uma verdadeira guerra civil que escapa cada vez mais ao
controle do seu governo central, mesmo depois do acordo de colaboração militar
assinado com os EUA em 2010. E mesmo com relação ao Nafta, a economia mexicana
se beneficiou em alguns poucos setores dominados pelo capital americano, como
automobilística e eletrônica, mas ao mesmo tempo, nestes últimos vinte anos, o
México foi o único dos grandes países latino-americanos em que a pobreza
cresceu, atingindo hoje, 51,3% da sua população. Hoje a economia mexicana é
inseparável da americana e a política externa do país tem escassíssimos graus
de liberdade, atuando quase sempre como ponta de lança da política econômica
internacional dos EUA, como no caso explícito da “Aliança do Pacífico”.
Do ponto de vista estritamente geográfico, a
América do Norte inclui o istmo centro-americano, que Nicholas Spykman coloca
ao lado dos países caribenhos, e da Colômbia e Venezuela, dentro de uma mesma
zona de influência americana, “onde a supremacia dos EUA não pode ser
questionada. Para todos os efeitos trata-se um mar fechado cujas chaves
pertencem aos EUA o que significa que ficarão sempre numa posição de absoluta
dependência dos EUA” (N.S, p: 60). O que explica as 15 bases militares dos EUA,
existentes na América Central e no Caribe. Foi uma região central na 2ªGuerra
Fria de Ronald Reagan e será muito difícil que se altere a posição americana
nas próximas décadas, muito além da das “dissidências” cubana e venezuelana.
Por último, a política externa americana diferencia
claramente os países situados ao sul da Colômbia e da Venezuela, onde seu
principal objetivo estratégico foi sempre impedir que surgisse um polo
alternativo de poder no Cone Sul do continente, capaz de questionar a sua
hegemonia hemisférica. Com relação a estes países, os EUA sempre utilizaram a
mesma linguagem, com duas tônicas complementares: a dos acordos militares
bilaterais e a das zonas de livre comércio.
Os acordos militares começaram a ser assinados no
fim do século XIX e a primeira proposta de uma zona pan-americana de livre
comércio foi apresentada pelo presidente Grover Cleveland, em 1887, um século
antes da Alca, proposta em 1994 e rejeitada em 2005, pelos principais países
sul-americanos. Não existe uma relação mecânica entre os fatos, mas chama
atenção que pouco depois desta rejeição os EUA tenham reativado sua IV Frota
Naval, com objetivo de proteger seus interesses no Atlântico Sul. A este
propósito cabe lembrar o diagnóstico e a proposta de Nicholas Spykman
(1893-1943), o teórico geopolítico que exerceu maior influência sobre a
política externa dos EUA no século XX: “fora da nossa zona imediata de
supremacia americana, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e
Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder através de uma ação comum [...]
e uma ameaça à hegemonia americana nesta região do hemisfério (a região do ABC)
terá que ser respondida por meio da guerra” (N.S p: 62 e 64). Estes são os
termos da equação, e a posição americana foi sempre muito clara. O mesmo não se
pode dizer da política externa brasileira.
José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da
UFRJ, é autor do livro “O Poder Global”, da Editora Boitempo, e coordenador do
grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”.
Escreve mensalmente às quartas-feiras.
[Extraído de http://www.valor.com.br/opiniao/3411356/brasil-eua-e-o-hemisferio-ocidental em 29/01/2014]
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