quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Brasil, EUA e o “hemisfério ocidental”


Por José Luís Fiori
 
Valor – 29/01/2014
“As terras situadas ao sul do Rio Grande constituem um mundo diferente do Canadá e dos Estados Unidos. E é uma coisa desafortunada que as partes de fala inglesa e latina do continente tenham que ser chamadas igualmente de América, evocando similitudes entre as duas que de fato não existem”. N. Spypkman, “America’s Strategy in World Politics, Harcourt, Brace abd Company, New York, 1942, p: 46
Tudo indica que os Estados Unidos serão o principal contraponto da política externa brasileira, dentro do Hemisfério Ocidental, durante o século XXI. E quase ninguém duvida, também, que os EUA seguirão sendo por muito tempo a principal potência militar e uma das principais economias do mundo. Por isto é fundamental compreender as configurações geopolíticas da região e a estratégia que orienta a política hemisférica americana deste início de século.
Ao norte do continente, o poder americano foi, é e seguirá sendo incontrastável, garantindo-lhe fronteiras continentais absolutamente seguras. Além disto, a assimetria de poder dentro da América do Norte é de tal ordem que o Canadá e o México tendem a convergir cada vez mais, atraídos pela força gravitacional do poder econômico e militar dos EUA. O que não significa, entretanto, que o Canadá e o México ocupem a mesma posição junto aos EUA e dentro do tabuleiro geopolítico e econômico regional, apesar dos três países participarem do “Tratado Norte-Americano de Livre Comercio” (Nafta) desde 1993.
O Canadá ocupa uma posição única, como ex-colônia e ex-domínio britânico, que, depois da sua independência e da Segunda Guerra Mundial, transferiu-se para a órbita de influência direta dos EUA, transformando-se em sócio comercial, aliado estratégico e membro do sistema de defesa e informação militar dos povos de “língua inglesa”, comandado pelos EUA, e composto pela Inglaterra, Austrália e a Nova Zelândia. Neste contexto, o México ocupa apenas a posição de enclave militar dos EUA, uma espécie de “primo pobre”, de “fala latina”, ao lado das potências anglo-saxônicas.
Mais do que isto, o México é hoje um país dividido e conflagrado por uma verdadeira guerra civil que escapa cada vez mais ao controle do seu governo central, mesmo depois do acordo de colaboração militar assinado com os EUA em 2010. E mesmo com relação ao Nafta, a economia mexicana se beneficiou em alguns poucos setores dominados pelo capital americano, como automobilística e eletrônica, mas ao mesmo tempo, nestes últimos vinte anos, o México foi o único dos grandes países latino-americanos em que a pobreza cresceu, atingindo hoje, 51,3% da sua população. Hoje a economia mexicana é inseparável da americana e a política externa do país tem escassíssimos graus de liberdade, atuando quase sempre como ponta de lança da política econômica internacional dos EUA, como no caso explícito da “Aliança do Pacífico”.
Do ponto de vista estritamente geográfico, a América do Norte inclui o istmo centro-americano, que Nicholas Spykman coloca ao lado dos países caribenhos, e da Colômbia e Venezuela, dentro de uma mesma zona de influência americana, “onde a supremacia dos EUA não pode ser questionada. Para todos os efeitos trata-se um mar fechado cujas chaves pertencem aos EUA o que significa que ficarão sempre numa posição de absoluta dependência dos EUA” (N.S, p: 60). O que explica as 15 bases militares dos EUA, existentes na América Central e no Caribe. Foi uma região central na 2ªGuerra Fria de Ronald Reagan e será muito difícil que se altere a posição americana nas próximas décadas, muito além da das “dissidências” cubana e venezuelana.
Por último, a política externa americana diferencia claramente os países situados ao sul da Colômbia e da Venezuela, onde seu principal objetivo estratégico foi sempre impedir que surgisse um polo alternativo de poder no Cone Sul do continente, capaz de questionar a sua hegemonia hemisférica. Com relação a estes países, os EUA sempre utilizaram a mesma linguagem, com duas tônicas complementares: a dos acordos militares bilaterais e a das zonas de livre comércio.
Os acordos militares começaram a ser assinados no fim do século XIX e a primeira proposta de uma zona pan-americana de livre comércio foi apresentada pelo presidente Grover Cleveland, em 1887, um século antes da Alca, proposta em 1994 e rejeitada em 2005, pelos principais países sul-americanos. Não existe uma relação mecânica entre os fatos, mas chama atenção que pouco depois desta rejeição os EUA tenham reativado sua IV Frota Naval, com objetivo de proteger seus interesses no Atlântico Sul. A este propósito cabe lembrar o diagnóstico e a proposta de Nicholas Spykman (1893-1943), o teórico geopolítico que exerceu maior influência sobre a política externa dos EUA no século XX: “fora da nossa zona imediata de supremacia americana, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder através de uma ação comum [...] e uma ameaça à hegemonia americana nesta região do hemisfério (a região do ABC) terá que ser respondida por meio da guerra” (N.S p: 62 e 64). Estes são os termos da equação, e a posição americana foi sempre muito clara. O mesmo não se pode dizer da política externa brasileira.
José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro “O Poder Global”, da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”. Escreve mensalmente às quartas-feiras.

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