domingo, 19 de janeiro de 2014

O homem que fez as palavras falarem além da morte

Silvina Friera - Página/12 no Carta Maior
 
“Morreu um homem e estão juntando seu sangue com colherinhas, / querido Juan, morreste finalmente. /De nada te serviram teus pedaços/molhados em ternura. / Como foi possível/que te fosses por um buraquinho/ e ninguém tenha posto o dedo/ para que ficasses.”
 
A tristeza é enorme, infinita, insuportável. A língua castelhana está de rigoroso luto. Morreu Juan Gelman, terça-feira (14), aos 83 anos, na cidade do México, onde residia há mais de vinte e cinco anos. Morreu o poeta que tinha a poesia tatuada nos ossos. Morreu o maior dos poetas argentinos, nosso Prêmio Cervantes, o homem que estendeu o elástico da linguagem e suas impossibilidades, convertendo verbos em substantivos e substantivos em verbos para arranhar a realidade que escorre entre as mãos. O poeta que se transformava para permanecer, refratário às normas, ao piloto automático ou ao funcionamento aluvial da “maquinita” expressiva, como preferia chamá-la.

Morreu o homem que transformou as feridas em versos memoráveis – “a memória é uma caixinha que reviro sem solução” ou “o frio treme em portas do passado que voltam a bater” –; uma voz indomável, tão próxima e querida, à beira do sussurro, com essa cadência grave e profunda por onde flameavam sempre as chispas de uma ironia elegante e brincalhona.

Terceiro filho de uma família de imigrantes ucranianos, Gelman nasceu em Buenos Aires no dia 3 de maio de 1930. Não sobrava dinheiro nessa família, mas se poupava de centavo em centavo para ir ao Teatro Colon uma vez ao ano. Seu irmão maior, Boris, lhe recitava versos de Pushkin em russo. O levava a um canto afastado e Gelman, aos seus sete anos, caía rendido pelo ritmo e a música daquelas palavras que não entendia em absoluto. Aos nove anos decidiu escrever poemas a uma vizinha dois anos mais velha. A princípio lhe mandava versos de Almafuerte (poeta argentino – 1854/1917 – N. do T.), como se fossem próprios, mas a indiferença da menina o obrigou a dar um passo a mais.

A batalha não seria simples. Então tentou escrever ele mesmo; tampouco obteve resposta. Ela continuou no seu caminho; ele ficou com a poesia. E seus leitores do mundo, claro, agradecidos pela reticência da vizinha. Ainda não havia dado o estirão, quando o “guri taquinho”, como era conhecido nos campinhos de futebol da Villa Crespo pelo modo de levar a bola, publicou seu primeiro poema na revista Rojo y Negro. Tinha onze anos. Juan, menino precoce que aprendeu a ler aos três anos, cursou o ensino médio no Colégio Nacional de Buenos Aires. Começou a estudar a carreira de Química, mas, como contou mais de uma vez, lhe interessava “muito mais a poesia que a decomposição do átomo, os prótons e os nêutrons”.

Experimentou vários trabalhos, mas escolheu o ofício de jornalista para ganhar a vida. Longe de depreciar a profissão jornalística, Gelman a entendia como um gênero literário “que se escreve bem ou se escreve mal”.

Seu itinerário jornalístico arrancou em Orientación, semanário do Partido Comunista Argentino (PCA), continuou no jornal La Hora até que, em 1962, entrou na Xinhua, a agência chinesa de notícias. Na revista Confirmado, na qual ingressou em 1966, se encarregava da seção de livros. Depois se seguiram a seção internacional de Panorama e La Opinión (1971-1973), a revista Crisis (1973-1974) e a chefia de redação do jornal Noticias (1974). Com o regresso da democracia, se somou a Página/12, onde escreveu desde seu primeiro número (cobrindo o histórico julgamento do criminoso de guerra nazista Klaus Barbie) até a contracapa do último domingo.

Do ambiente da militância no PC, surgiu o grupo “El pan duro”, integrado por Gelman, José Luis Mangieri, Héctor Negro e Juana Bignozzi, todos muito jovens e, naquela época, poetas desconhecidos. Eram tempos difíceis para publicar e pior ainda quando se trata de poesia, “essa Cinderela da literatura, que apenas ocupa algum cantinho nos catálogos das grandes editoras”. Os membros do grupo decidiram autofinanciar suas próprias edições através de um método: vendiam bônus de dez pesos, que era o que podia custar um exemplar. Faziam recitais, festas populares em clubes como Vélez Sarsfield e, à medida que reuniam o dinheiro, escolhiam por votação a ordem dos livros para publicar.

Assim apareceu Violín y otras cuestiones, seu primeiro livro de poesia, publicado em 1956, prologado por Raúl González Tuñón, que destacou que, nessa seleção de poemas “palpita um lirismo rico e vivaz e um conteúdo social, mas social bem entendido, que não elude o luxo da fantasia”. Entre outras virtudes, Tuñón ponderava “a forma ágil, fresca, variada em tons e matizes”, de um poeta “nacional, portenho, muito nosso”, que “recém começa e já está maduro”. Essa surpreendente maturidade se expandiu em Gotán (1962), que significa tango ao contrário; em Cólera Buey (1965) e nos poemas de Sydney West (1969) com formas e ritmos que pescavam no ar as inflexões da fala portenha, além de traduções simuladas de poemas. Então já se vislumbrava o que logo seria uma certeza: que nenhum dos livros de Gelman se parecem entre si. Que cada livro novo postulava uma ruptura radical com o anterior. Como se fosse e não fosse, cada vez, o mesmo poeta.

Na década de 60 suas ideias se radicalizariam mais à esquerda e se distanciaria do PC, partido que depois o expulsou de suas filas. “Foi o momento da Revolução cubana e um grupo de nós sustentava que esse fato era uma linha divisória”, explicou. “Se falava de chegar ao socialismo pela via pacífica; nós vimos em Cuba outro tipo de possibilidades.” Em 1967 se incorporou às Forças Armadas Revolucionárias (FAR) e, quando FAR e Montoneros se fundiram em uma única organização, em 1975, Juan foi enviado ao exterior para denunciar publicamente a repressão e a violação da Triple A. Há golpes na vida, tão fortes... se poderia parafrasear César Vallejo, um de seus poetas preferidos.

Em 1976 sequestraram seus filhos Nora Eva e Marcelo Ariel, junto a sua nora María Claudia Iruretagoyena, que se encontrava grávida de sete meses. Seu filho e sua nora desapareceram, junto a sua neta nascida em cativeiro. A ruptura com os Montoneros chegou quando a condução dispôs “essa loucura da contraofensiva militar, que conduziu à morte a maioria das pessoas que participou nela”.

O poeta, nesta época já exilado, voltou clandestinamente ao país em 1978, com o objetivo de que um punhado de jornalistas pudesse ver o que estava acontecendo na Argentina, o terror da ditadura cívico-militar. Durante sete anos não escreveu nem publicou. Regressaria à atividade com Hechos e relaciones, texto onde emerge a dor em carne viva, do exílio e das mortes. Em 1989 o presidente Carlos Menem assinou o indulto. Juan objetou a medida através de uma nota publicada neste jornal: “Estão me trocando pelos sequestradores de meus filhos e de outros milhares de meninos que agora são meus filhos”, se queixou.

“Me encolho para não te encobrir mais com visões de teu abrigo longo. Uma piscada dura muito quando se afasta o ser de si em voos sem rumor. Livre ainda entre muros de cimento e cal vivo/lançado a que nunca fosses certeza”, se lê em um dos poemas recentes que dedicou a seu filho. No dia 7 de janeiro de 1990, a Equipe Argentina de Antropologia Forense identificou os restos de Marcelo, encontrados em um Rio de San Fernando, dentro de um tambor de graxa cheio de cimento. O haviam matado com um tiro na nuca.

Em 1998 descobriu que sua nora havia sido levada ao Uruguai e que havia sido mantida com vida ao menos até dar à luz a uma menina no Hospital Militar de Montevidéu. A partir desse momento lançou uma busca incansável para encontrar sua neta, apoiado por escritores, artistas e intelectuais. Em 2000, finalmente se reuniu com sua neta María Macarena Gelman García. “Marcelo Gelman, presente!” O filho do poeta, entre outras vítimas da ditadura militar, soou mais vivo que nunca nessa quinta-feira, 31 de março de 2011, quando o Tribunal Oral Federal 1 julgou os repressores do centro clandestino Automotores Orletti. Eduardo Cabanillas, o assassino de Marcelo, foi condenado a prisão perpétua. Juan dizia que não sentiu nada. Nem alegria, nem ódio. Nada. E se perguntou por que. A resposta está encadeada nos textos que integram Hoy, o último livro que publicou no ano passado.

O poema “VIII” é o primeiro dedicado a seu filho: “Quanto sangue custa/ ir de saber a contramão/ do esquecimento ao horror/ da injustiça à justiça? Há que tocar os altares ardentes/ evitar a vergonha/ a falta que preocupava Teognis/ interrupção do dia? O beijo do laço se converte no laço que o assassino ajusta. Desvio sem limite nem fundo nem virtude. A mesmice é um espelho partido em terceira pessoa e ouço tua mão desenhando um pássaro azul”.

Definir sua poesia como política – um mal-entendido generalizado – é reduzir e etiquetar a obra de um poeta que demonstrou, livro após livro, a insensatez de prendê-lo quando ele se dedicou, com uma obstinação poucas vezes vista, a desfazer e refazer os modos de colocar em jogo a língua. “Quando se fala de minha poesia como política, penso que o erro está em pensar que vivo conectado à realidade as 24 horas do dia. Nem tudo o que acontece no mundo me desperta a necessidade de escrever um poema. Como cidadão, tenho compromissos e responsabilidades que não têm que estar, necessariamente, na poesia. A ideologia de alguém forma parte de sua subjetividade, mas não é toda sua subjetividade – dizia o poeta em uma entrevista a Página/12 –. Não me afeta nem em um sentido nem em outro que digam que minha poesia é política. O que me importa é meu trabalho como poeta, não me preocupa o que digam os demais, têm todo o direito de opinar. Mas, francamente, o único que influi é a leitura da poesia e o trabalho de escrevê-la.”

Tudo o que se escreve, advertia Juan, é um longo fracasso na tentativa de conseguir pegar a poesia. “Se alguém insiste neste oficio ardente que é a poesia, é porque espera a aparição do milagre, mas, como dizia Dylan Thomas: o milagroso dos milagres é que às vezes eles acontecem.”

Juan agradecia os prêmios que foi recebendo nos últimos anos: o Prêmio Nacional de Poesia na Argentina (1997), o Prêmio Cervantes em 2007; os prêmios ibero-americanos de poesia Ramón López Velarde (2003), Pablo Neruda (2005) e o Rainha Sofía (2005); e o Prêmio de Literatura Latino-americana e do Caribe Juan Rulfo (2000), entre outros. Sem dúvidas eram um estímulo e reconhecimento.

“A poesia fala ao ser humano não como um ser feito, mas por fazer, lhe descobre espaços interiores que ignorava ter e que por isso não tinha – argumentou no discurso de recebimento do Rainha Sofía –. Vai à realidade e a devolve outra. Espera o milagre, mas sobretudo procura a matéria que o faz. Nomeia o que aesperava oculto no fundo dos tempos e é memória do não sucedido ainda. Só no desconhecido canta a poesia. Ela aceita a espessura da tragédia humana, mas não obedece o princípio de realidade, mas a ordem do desejo. Choca contra os limites da língua e vai além na tentativa de responder o chamado de um amor que não cessa. É um movimento em direção ao Outro, passa de seu mistério ao mistério de todos e lhes oferece rostos que duram a eternidade de um resplendor. Corrige a feiura, aliena o cálculo e dá abrigo em suas tendas de fogo. Se instala na língua como corpo e não a deixa dormir.”

Como não evocar as palavras que pronunciou quando recebeu o Cervantes, frente aos Reis da Espanha. “É algo verdadeiramente admirável, nestes tempos mesquinhos, tempos de penúria, como os qualificava Holderlin, perguntando-se: para que poetas? Que teria dito hoje, em um mundo no qual a cada três segundos e meio uma criança menor de cinco anos morre de doenças curáveis, de fome, de pobreza? Me pergunto quantos terão falecido desde que comecei a dizer estas palavras. Mas aí está a poesia: de pé, contra a morte”. O poeta repassou o significado que teve ler Santa Teresa e San Juan de la Cruz durante o exilio que o condenou a ditadura. “Sua leitura, desde outro lugar me reuniu com o que eu mesmo sentia, ou seja, a presença ausente do amado, Deus para eles, o país do qual fui expulso para mim. E quanta companhia de impossível me brindaram. Esse é um destino ‘que não é mais morrer muitas vezes’, comprovava Teresa de Avila. E eu morria muitas vezes e mais, com cada notícia de um amigo ou companheiro assassinado ou desaparecido que aumentava a perda do amado”, confessou o autor de uma obra descomunal composta por mais de trinta títulos na qual cabe destacar Citas e comentarios (1982), Interrupciones II (1986), Carta a mi madre (1989), Salarios del impío (1993), Dibaxu (1994), Incompletamente (1997), En el flaco perdón de Dios/Hijos de desaparecidos, junto a sua esposa Mara, A Madrid (1997), Valer a pena (2001), País que fue será (2004) e Mundar (2007), entre outros.

A língua de Juan foi a chama que aumentou a temperatura na noite de segunda-feira, nesse 26 de agosto, na Biblioteca Nacional, quando o poeta apresentou Hoy, 288 poemas em prosa que transitam o caminho do luto pela desaparição e assassinato de seu filho Marcelo, mas também dão conta do abismo insondável do mal no mundo. O poeta leu durante mais de meia hora. Não voava uma mosca na sala. Todos mudos frente a versos que grudam nos lábios da memória: “A terra pule ossos que o tempo rouba sem retorno”.

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