no site Carta Maior
Paris - A esquerda francesa mudou de cultura política. No curso da terceira coletiva de imprensa de seu mandato, o presidente François Hollande fechou os portões da social democracia, com cujos encantos foi eleito, para abrir uma a uma as janelas às políticas de corte liberal e dar acesso às demandas históricas do patronato francês. O socialismo francês entrou no círculo dessa coisa híbrida que é o “socialismo europeu”: brando, cínico, liberal e gestionário. Com uma vaga promessa de “esclarecer a situação”, o presidente francês procurou driblar a curiosidade dos 500 jornalistas que esperavam que na coletiva o chefe de Estado se referisse ao cômico episódio que expôs sua relação clandestina com a atriz Julie Gayet.
Este episódio é por demais anedótico frente à transformação de quem foi eleito em 2012 com uma promessa de justiça social e uma declaração de guerra contra o setor financeiro. Aqueles cânticos contra os mercados devem ser incluídos hoje no manual das boas intenções. Como já é comum com os socialistas do final do século XX e início do século XXI, uma vez no poder eles tomam o caminho que repudiaram na oposição. Hollande seguiu esse caminho e os empresários celebram agora o presente que acabam de receber da presidência. Sob a pomposa denominação de “pacto de responsabilidade”, o presidente francês apresentou um plano de ação que contempla unicamente os interesses das empresas.
Trata-se de um cheque em branco que engloba uma expressiva redução dos custos da mão de obra em troca da eterna promessa das empresas de que criarão mais trabalho. O pacto e as transformações são profundas: em sua manchete de capa, o vespertino Le Monde escreve: “Hollande impõe à esquerda a opção da empresa”. O semanário Le Nouvel Observateur assinala: “antes se tratava de redistribuir para reativar a produção. Agora se ajuda a produção, ou seja, as empresas privadas, para redistribuir mais tarde”.
A receita já é conhecida. Hollande terminou de virar as costas para suas promessas e aos eleitores da esquerda com o célebre argumento segundo o qual “a oferta cria a demanda”. Em números reais, o primeiro capítulo compreende uma redução do custo da mão de obra mediante a eliminação até 2017 das cotizações familiares para as empresas, o que equivale a 35 bilhões de euros. Segundo prometeu o presidente, o custo desta solução não repercutirá em novos aumentos de impostos, e será financiado economizando uns 53 bilhões de euros. Hollande assegurou que este dispositivo será financiado com uma nova reforma do Estado, com a luta contra a fraude à seguridade social, a simplificação da política tributária e a diminuição do gasto público. Liberal, liberal, liberal.
Esta linha aponta claramente para aumentar os lucros das empresas, para que estas desenvolvam novos produtos, tenham mais atividade e, por conseguinte, contratem pessoal. Orientada como um canhão para o patronato, François Hollande disse na coletiva de imprensa que tudo “seria simplificado”, não para melhorar a seguridade social, mas para “simplificar e facilitar a vida das empresas”. O patronato francês estava embriagado de alegria. Os principais círculos do empresariado celebraram os anúncios do presidente enquanto que os sindicatos sentiam que o futuro avançava sobre eles carregado de nuvens ultra-liberais.
Hollande cedeu ante à principal exigência do Medef – o organismo que agrupa o patronato francês. O Medef vinha pedindo há muito tempo que se eliminassem os impostos das empresas mediante os quais se financiam os subsídios familiares – 5,4% do salário. Hollande cedeu. O Chefe de Estado repetiu: “meu único objetivo é o trabalho. Só conseguiremos reduzir o desemprego se as empresas criarem empregos”. O caminho que escolheu consiste em oferecer de bandeja um novo presente às empresas para ver se, quando elas o abrirem, decidam redistribuir. O homem que chegou ao poder prometendo restaurar a social democracia europeia fez o caminho inverso: restaurou o liberalismo no seio da social democracia.
Quanto a suas aventuras amorosas descobertas pelo semanário Closer, Hollande se esquivou das perguntas. Alain Barluet, o presidente da associação da imprensa presidencial, foi o encarregado de fazer a pergunta: “Valérie Trierweiler segue sendo a primeira dama da França?” – indagou o jornalista. O presidente respondeu que ele e sua companheira viviam “momentos difíceis e dolorosos” e prometeu que dará as explicações necessárias antes de viajar a Washington, no próximo dia 11 de fevereiro. Uma vaga sensação de infidelidade ficou flutuando no ar. A mais importante é aquela que diz respeito aos eleitores que elegeram o presidente com um programa muito distinto ao da agenda patronal que Hollande apresentou como uma poção mágica para o futuro.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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