terça-feira, 5 de novembro de 2013
Os rictus da independência
Por Luiz Gonzaga Belluzzo
Valor – 05/11/2013
"Tradicionalmente, a independência do Banco Central foi concebida
para proteger a política monetária das pressões políticas indevidas.
Agora, no entanto, devemos conceber essa autonomia em termos mais
amplos. O primeiro conjunto de forças nasce dos mercados financeiros e
dos segmentos altamente endividados do setor privado. É possível
pensar numa ameaça da 'dominância financeira', amplamente definida."
(Jaime Caruana, Diretor Geral do BIS, 14 de outubro de 2013).
A divergência de opinião em torno da independência dos Bancos
Centrais e das regras adequadas de gestão monetária refletem a dupla e
contraditória natureza do dinheiro nas economias capitalistas. O
dinheiro é simultaneamente um bem público e objeto de enriquecimento
privado. Enquanto “bem público”, referência para os atos de produção e
intercâmbio de mercadorias, bem como para a avaliação da riqueza e das
dívidas, o dinheiro deve estar sujeito a normas de emissão e
circulação que garantam a reafirmação de sua universalidade como
padrão de preços, meio de pagamento e reserva de valor.
Numa economia monetária, o enriquecimento privado só pode ser buscado
mediante a produção de mercadorias ou a posse de ativos que dão
direito a rendimentos futuros. Trata-se [de] uma aposta, em condições
de incerteza, na possibilidade dessas formas “particulares” de riqueza
preservarem o valor no momento de sua conversão para a forma “geral”,
o dinheiro.
Há, por isso, o temor de que, chegando à transfiguração de sua
riqueza particular em riqueza geral, o proprietário de ativos ou de
mercadorias receba um dinheiro cujo “prêmio de liquidez” está, ele
mesmo, “desvalorizado” por práticas “permissivas” de monetização das
dívidas. A política monetária e os bancos centrais estão, portanto,
submetidos a tensões permanentes. Os credores,
proprietários-administradores da riqueza líquida costumam exigir mais
“austeridade” e os devedores e investidores que se lançam às aventuras
da iliquidez e da criação de riqueza nova postulam mais generosidade
por parte das políticas monetárias.
A ordem monetária capitalista não é um espaço homogêneo onde os
desejos dos indivíduos utilitaristas se harmonizam, senão um organismo
em perpétuo conflito e transformação. O ambiente institucional em que
se desenvolve a gestão monetária é constituído pelo Banco Central e
pelo sistema privado de crédito. Em sua interação, esses “atores”
estão obrigados a evitar a deflagração de situações de pânico,
desconfiança e desalento da atividade criadora, sempre reafirmando a
vigência das normas que garantem a estabilidade monetária, ou seja, a
confiança no ativo que encarna a riqueza universal.
A divisão do trabalho, a diferenciação de funções, a individuação de
comportamentos e valores são a marca registrada da sociabilidade
moderna. Seu desenvolvimento impõe, portanto, a intensificação da
dependência recíproca e a ampliação das relações monetárias e
salariais.
O social se desenvolve de forma ambígua e contraditória: aparece,
diante dos indivíduos, como um espaço infinito da escolha, da produção
incessante de desejos e das possibilidades de sua satisfação, mas
também opera nos bastidores da alma como uma força autônoma e
constrangedora, um sistema de necessidades que só pode ser satisfeito
pelo sucesso das múltiplas conexões monetárias. O sucesso do turbilhão
de apostas privadas depende do processamento pelo mercado das ações
intencionais dos possuidores de riqueza, cujo resultado, no entanto,
escapa às intenções e ao controle dos centros privados de decisão.
Nas últimas duas décadas, a liberalização, desregulamentação e
internacionalização dos mercados financeiros provocaram importantes
transformações na estrutura da riqueza capitalista e – mais importante
– nas relações de poder entre os proprietários da riqueza mobiliária e
os Bancos Centrais.
Os administradores privados da massa de riqueza mobiliária não só
ganharam poderes quase incontrastados na definição das formas de
utilização da riqueza coletiva e do crédito, como tambem assumiram o
papel de juízes de um tribunal de derradeira instância, com pretensões
a julgar a qualidade das políticas econômicas nacionais.
Na era de sua supremacia global, os mercados cuidaram de difundir as
“ilusões necessárias” do jogo estratégico entre os atores privados e o
Banco Central na busca incessante da “construção da confiança”. Sob a
aparência da ciência e da técnica, o “jogo da confiança” supõe a
definição de regras de gestão da “riqueza coletivizada” e da moeda de
crédito. Na era da Grande Moderação que antecedeu o desastre de 2008,
inebriados pelo excesso de confiança, os mercados de riqueza
mergulharam nos abismos da incerteza. Foram resgatados pelos Bancos
Centrais.
À revelia dos critérios da política democrática, o salvamento cumpriu
exclusivamente a agenda dos protagonistas que cuidam da circulação e
da avaliação da riqueza mobiliária global. O discurso econômico em
voga pretende mascarar sua natureza política. Tenta explicar ao
cidadão que é inteiramente fora de propósito entender os segredos que
envolvem a administração da moeda e das finanças. O consenso dominante
garante que se não for assim sua vida pode piorar ainda mais. A
formação deste consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o
imaginário social.
Não é, portanto, pacífica a convivência entre o mundo da finança –
constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados
com a avaliação da riqueza – e a política democrática, entendida como
o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da autonomia.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do
Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da
Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído
entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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