terça-feira, 5 de novembro de 2013

A urgência à procura de um debate

Saul Leblon no Carta Maior


Um dos maiores gargalos do país é a ausência de espaço para a discussão madura das opções, dos custos e requisitos à ordenação de um novo ciclo de crescimento brasileiro.

Sem esse escrutínio, a coisa não anda. Patina-se no vale-tudo onde a serenidade e o disparate se ombreiam na mesma irrelevância.

A paralisia só é boa para quem aposta no desgaste como via de rendição da sociedade a purga saneadora prescrita pela ortodoxia.

Uma hora cansa e a gororoba é empurrada pela goela.

Ou não terá sido assim que aconteceu na Espanha? Com as ruas tomadas pelos ‘indignados’, o país elegeu o PP (o demos de lá)e deu plenos poderes ao premiê  Mariano Rajoyna Câmara.

Para fazer o que?

O arrocho espanhol elevou a taxa de desemprego no país a fantásticos 26%. Em média. No caso da juventude vai a 50%.

‘A esperança da ortodoxia, para amenizar o cenário, é que a migração retire do mercado espanhol uns 300 mil a 500 mil jovens por ano’, informa o correspondente de Carta Maior em Londres, Marcelo Justo.

O país está à beira da deflação, a exemplo do espectro que ronda todo o ambiente europeu.

Cortes suicidas de preços se multiplicam diante de um consumidor empobrecido que adia sua compra  no aguardo de novas baixas.

Foi assim na Depressão norte-americana, em 1929, que esfarelou a indústria e despejou metade da mão de obra na rua.

Mas os bancos saúdam a ‘recuperação conduzida por Rajoy’ e os replicantes tropicais da via espanhola não se intimidam.

Manipulação de prioridades e indução de expectativas, eis o combustível conservador desse jogo perigoso.

As sirenes do colapso iminente – ‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’--completam  um repertório que alimenta o descrédito na ação pública e em todo o sistema político.

A cereja do bolo é a corrupção, que como sabemos é sistêmica nos governos do PT. Será sempre pontual no caso da coalizão conservadora.

Toneladas desse ácido corrosivo banham o espírito da sociedade diuturnamente.

A ardilosa montanha-russa eleva as expectativas para em seguida frustrá-las com a porretada do desencanto.

A reportagem da Folha deste domingo sobre a conversão do sistema elétrico aérea em subterrâneo condensa em ponto pequeno o mecanismo.

Primeiro, atiça-se o apetite da classe média com o miraculoso recurso do photoshop.

Vejam quão bela ficaria a emergente Vila Olímpia sem a maçaroca aérea de cabos  que nos equiparam a um Haiti. Agora, comparem a magnífica Paris isenta dessa teia asfixiante; e como ficaria degradada se tivesse fiação equivalente a de São Paulo.

Ótimo. Aos custos: uns R$ 120 bilhões para o enterramento da fiação em toda a capital. Três vezes o orçamento da prefeitura.

Essa é um dos destaques do jornal que diariamente açula a revolta dos munícipes contra o reajuste indispensável do IPTU para mitigar urgências da metrópole colapsada.

Em frente.

No edição dominical do Estadão, o tucano FHC vai mais fundo.

Ele atribui o ‘caos urbano’ aos governos petistas ‘que puseram em marcha’, diz,‘uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a prazo mais longo’.

Para não esquecer: quem pontifica é aquele em cuja gestão o Brasil quebrou três vezes e na qual um apagão engessou o curto prazo da economia, enquanto um juro real de 10%condenaria o longo prazo à gaveta.

“O futuro chegou’, esponja-se agora um FHC professoral:“ (chegou) na esteira da falta de investimento em infraestrutura (...) e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo país afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível de poluição atmosférica etc.”

Afinal, o que o sociólogo de estilo sonolento está propondo?

Um capitalismo sem crédito?  Uma bicicleta sem pedal?

Bem que ele tentou: no ciclo FHC a relação crédito/PIB ficou estagnada em 26%, contra 54% agora.

Administrar a demanda agregada, tudo bem, mas um capitalismo sem crédito destina-se exatamente a quem?

O capitalismo sem demanda é funcional à supremacia dos mercados financeiros.

A baixa atividade mantém a senzala recolhida aos bantustões.

O trânsito fica menos carregado, os aeroportos mais livres; o desemprego de 12,5%no ciclo do PSDB (hoje é inferior a 6%)  evidenciava a anemia geral contabilizada na queda da receita fiscal.

Nenhum problema: o endividamento público, lubrificado por um juro real de 10% ao ano (hoje é de 3%), abastecia os cofres do Estado e alegrava o rentismo.

Essa é a coerência para a qual a o ziguezigue conservador quer nos empurrar novamente.

Parece redondo.

Exceto por um senão: o juro alto atrai capitais especulativos, que valorizariam ainda mais um Real já adverso à competitividade da indústria atrofiada pela  importação barata.

O desafio do câmbio é uma agenda presente hoje em boa parte da América Latina.

Não é uma questão técnica.

Câmbio e inflação são almas gêmeas.

A taxa de câmbio define qual será o poder real de compra dos salários.

O câmbio qualifica o trânsito para um novo ciclo econômico; em certa medida antecipa seus vencedores e perdedores; ele determina  a inserção da economia no quadro mundial, o papel da exportação e da indústria (onde ela existe) e o tipo de emprego e de mercado interno que se deseja incentivar.

É por conta dessas implicações delicadas que mesmo governos progressistas usufruíram passivamente do confortável ciclo de alta liquidez internacional que valorizou o câmbio e o poder de compra local.

O ensaio de recuperação norte-americana prenuncia  a inversão dos fluxos de capitais, que viajam de volta aos papéis de longo prazo do Tesouro, em detrimento dos países em desenvolvimento.

A travessia cambial explica a tensão do debate econômico no interior do bolivarianismo venezuelano; constitui um  divisor  dentro do peronismo argentino e está subjacente à discussão do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

O choque de juros preconizado por tucanos e assemelhados tem o predicado de precipitara direção do ajuste definindo  o lombo onde recairá a chibatada cambial mais dolorida.

Talvez precise da polícia para colocar ordem na fila do pelourinho.

Mas para quem, como a Folha deste domingo, discute seriamente Ruanda (45% de pobreza)como o país ‘top reformer’, um paradigma das mudanças amigáveis ao ambiente dos negócios, tudo bem.

O ponto a reter é que há decisões estruturais batendo na porta da economia brasileira.

A urgência procura um espaço maduro para um debate complexo.

O oposto do oferecido pela sofreguidão indigente que exala da leitura dominical da mídia conservadora.



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