segunda-feira, 5 de maio de 2014

É preciso coragem para enfrentar o câmbio!


*Jaciara Itaim, no site Carta Maior


Uma das maneiras mais inadequadas de avaliar o desempenho da política econômica é misturar os aspectos necessários de racionalidade na análise com as intenções e os desejos envolvendo apenas elementos de nacionalismo e de ufanismo. E vejam que não se trata de dizer que a economia poderia ser utilizada como uma espécie de instrumento neutro ou assemelhado aos modelos das ciências duras ou exatas. De jeito nenhum! A economia é política. Mas, mesmo assim, algumas considerações merecem ser feitas.

Já afirmei em outras ocasiões por aqui que o nome completo do campo do conhecimento que busco discutir neste espaço é “economia política”. E isso vem da tradução do termo grafado no original em inglês, que sempre foi usado pelos pensadores considerados clássicos do assunto, como Adam Smith ou David Ricardo. O problema não é esse. Ocorre que ao longo da história, a tradição norte-americana acabou comendo o adjetivo “política” e a “political economy” acabou virando apenas “economics”. Uma sutileza que faz toda a diferença.

A economia é parte integrante das ciências humanas, compõe o universo das ciências sociais. No entanto, isso não significa dizer que não existam leis particulares de funcionamento do fenômeno econômico e mecanismos de análise específicos aplicados à dinâmica de acumulação de capital. Reconhecer sua natureza “política” não significa desconsiderar a necessidade da seriedade, da competência e da responsabilidade na condução da mesma como política pública. Os responsáveis pela política econômica de um País não podem se permitir os erros e os equívocos, tal como estamos habituados a assistir, sob pena de provocarem prejuízos e danos em escala planetária.

Economias abertas e as relações internacionais

Tais considerações preliminares são importantes de se levar em conta quando analisamos um elemento essencial da política econômica - a questão cambial. Os modelos mais simples de análise da economia consideram, inicialmente, os fenômenos apenas em sua escala nacional - a chamada economia autárquica. Para facilitar a compreensão, imagina-se uma sociedade ou um país fechado em suas relações comerciais e econômicas. Assim, não há intercâmbio com o exterior de mercadorias, de capital nem de força de trabalho. Um detalhe essencial, nesse caso, é a existência de um único padrão monetário - a moeda nacional.

Em geral, uma das primeiras etapas de “complexificação” dos modelos explicativos é a introdução da chamada “abertura” da economia para aquilo que o “economês” conhece como “o resto mundo”. A partir de então, tudo começa a ficar mais complicado. As economias que se assemelhavam a ilhas isoladas passam a travar relações com outras nações e as variáveis de política econômica deixam de estar totalmente sob o controle das decisões adotadas apenas no interior do espaço nacional.

A abertura dos modelos implica a possibilidade ou a necessidade de se praticar exportações de bens e serviços. A contrapartida desse movimento é o ingresso de mercadorias importadas para consumo no espaço interno. Além disso, pode-se imaginar a abertura do fluxo financeiro, com liberdade de ingresso ou saída de capital e dos rendimentos dele derivados (a exemplo de juros e lucros). Ora, quando as transações econômicas e comerciais passam a ser efetivadas em escala internacional, surge a necessidade de se introduzir um meio de troca que também seja unanimemente aceito em escala global. No início da era capitalista, essa função era exercida pelo ouro. As trocas internacionais eram calculadas e realizadas com base no peso do metal precioso. As diferentes moedas (e depois as próprias cédulas) nacionais também tinham seu valor referenciado nesse tipo de métrica.

Globalização e a taxa de câmbio

No entanto, como a economia é política, a hegemonia exercida pelos países em cada momento histórico acaba tendo também sua influência em termos monetários. A época de ouro do capitalismo inglês conheceu a supremacia da libra esterlina nas relações internacionais. A posterior ascensão dos Estados Unidos possibilitou a substituição da moeda da antiga metrópole pelo dólar norte-americano. Com o agravante posterior de sua desvinculação formal do padrão-ouro, tal como ocorreu a partir da decisão do governo Nixon, na década de 1970. Há mais de 4 décadas, portanto, um dólar vale um dólar porque todo mundo acredita nessa identidade.

Dessa forma, cada vez mais um elemento que passa a ganhar importância no meu de política econômica de cada país é a sua taxa de câmbio. Ou seja, a relação do valor de troca da moeda nacional em relação às demais moedas do mundo. Desnecessário lembrar que as referências mais importantes são os padrões monetários dos países com o qual se mantêm maior relação comercial.

Moeda forte ou câmbio valorizado artificialmente?

Assim, existe uma tendência equivocada - de natureza puramente emocional - a se considerar relevante uma moeda nacional considerada “forte”. Enfim, é até mesmo compreensível, dada a complexidade de análise do fenômeno econômico. Imaginem qual não seria o resultado de uma pesquisa realizada pelo IBOPE junto à população brasileira: “você considera positiva ou negativa a proposta de um real valorizado frente ao dólar?”. A maioria deve bater no peito, todo orgulhoso, a favor de uma moeda nacional fortalecida frente às demais. Ocorre que esse é um dos atalhos perigosos para o nacionalismo de natureza ufanista e xenofóbica. Moeda forte não depende de bravata governamental ou de orgulho dos compatriotas. Ela é função da importância econômica do país no cenário internacional.

A opção de política econômica brasileira, levada a cabo nos últimos tempos, revela bem os perigos do equívoco no tratamento da questão cambial. A decisão de manter o famoso “tripé” em vigor desde o Plano Real manteve a liberdade de fluxo de capitais externos e a livre flutuação da taxa de câmbio, em função da oferta e da demanda de divisas internacionais. Esse verdadeiro crime de responsabilidade para com a economia brasileira foi praticado tendo por base a crença (ingênua?) na suposta existência de um mercado livre para as trocas de moedas em nosso País. Um absurdo, como se os mega operadores do mercado financeiro oligopolizado operassem como se fossem agentes do mercado de batatinha, negociando o preço do tubérculo no final da feira.

Porém, a verdade é que o Brasil se manteve desde sempre como um grande atrativo para as aplicações do capital especulativo internacional. Isso porque - lembremo-nos todos! – o outro ponto de apoio do tripé exigia uma política monetária de juros estratosféricos para controlar a inflação. Com a SELIC nas estrelas, seguíamos a ocupando o posto de campeão mundial da ortodoxia, com nossas praias sendo inundadas por recursos nominados em moeda estrangeira. O resultado era mais do que previsível. Excesso de oferta de dólares em nosso mercado de câmbio, fazendo com que o “preço” da moeda norte-americana ficasse baixo frente ao nosso real. Com isso, nossa taxa de câmbio ficava artificialmente valorizada. Mas nada ver com alguma suposta pujança de nossa economia ou coisa parecida.

A crença imbecil na virtude da solução neo-liberal imobilizou as diversas equipes econômicas na adoção de medidas de controle de capitais ou de intervenção no mercado de câmbio para corrigir tal distorção - a valorização inconsistente de nossa moeda. As consequências foram múltiplas: desde a farra da gastança da classe média nas compras em Miami até a invasão permanente de manufaturados importados de países asiáticos, em especial os oriundos da China. A desindustrialização por mais de uma década tem apresentado a sua fatura e as contas externas começam a exibir déficits bilionários mais do que preocupantes.

A auto-enganação alardeada pelos sucessivos governos com os saldos positivos obtidos na Balança Comercial ofuscava a sinalização de desequilíbrio na conta financeira dos fluxos externos. Em 2013, por exemplo, o déficit em Transações Correntes atingiu o valor acumulado anual de US$ 81 bi. Um verdadeiro sinal amarelo na performance do setor externo. O que se faz necessário é a coragem política de reconhecer o equívoco cometido e a urgência em corrigir tal estado de coisas.

Isso significa promover uma política aulatina de desvalorização cambial, de forma a recuperar um patamar de taxa de câmbio mais realista, que impeça a continuidade da desindustrialização e ofereça algum horizonte de credibilidade para a atividade produtiva a ser realizada em território nacional. Como os diversos momentos adequados, desde 2003, foram solenemente perdidos e desprezados, a correção de rumo na conjuntura atual é bem mais delicada. A elevação da inflação e o represamento da necessária correção de preços de energia, por exemplo, exigem uma estratégia mais prudente, de desvalorização gradual.

E a coragem para mudar?

Apesar de não existir nenhuma resposta precisa a respeito de qual seria a taxa de câmbio adequada à realidade da economia brasileira nos dias de hoje, o fato inegável é que os atuais R$ 2,20 ainda carregam uma forte dose de sobrevalorização artificial. Uma taxa próxima a R$ 3,00 com certeza ofereceria maior competitividade às exportações de manufaturados brasileiros e reduziria a farra dos importados. Um dos caminhos para tal quadro seria a tão necessária redução da taxa oficial de juros, que tornaria o Brasil menos atraente para especulação do financismo internacional.

Com menos dólares entrando, a taxa de câmbio caminharia sozinha para uma desvalorização. Mas para tanto é necessário um pouco mais de ousadia política.

Isso implica em causar algum arranhão nos lucros fáceis obtidos pelo sistema financeiro. Porém, os ganhos para as futuras gerações são inequívocos. O momento é esse e o caminho está traçado. Ao que tudo indica, falta a coragem por parte de quem tem o poder e o dever da tomada de decisão.


 (*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.

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