Por Vanessa Jurgenfeld | De Campinas
Valor – terça-feira, 13/05/2014
Professor
da Universidade Paris 13 e pesquisador das economias latino-americanas, o
francês Pierre Salama acredita que o aumento da financeirização da economia
brasileira levará a uma maior precarização no mercado de trabalho e a uma
tendência de redução da taxa de crescimento dos salários. A boa fase do mercado
de trabalho doméstico, segundo ele, já dá sinais de que acabou.
Autor de
livros publicados no país como “O Desafio das Desigualdades”, Salama esteve no
Brasil há poucos dias para debater o mercado de trabalho mundial, e
especificamente o mercado de trabalho brasileiro. Ele participou de evento na
União Geral dos Trabalhadores (UGT) e deu uma palestra na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
Salama
entende que o fato de as grandes empresas cada vez mais estarem voltadas a
fornecer ganhos aos seus acionistas do mercado financeiro, de forma que
destinam uma parcela crescente de seus lucros para pagamentos de dividendos,
ocorre em detrimento da aplicação do lucro em investimentos em capital
produtivo. Esse processo de financeirização, segundo ele, está por trás do
baixo nível de investimentos industriais em economias como a brasileira e
também é pano de fundo para a falta de melhoria na produtividade industrial.
Segundo Salama, se não há investimentos produtivos e nem preocupações
significativas com avanços tecnológicos para ganhos de competitividade, a saída
buscada pelas empresas para melhorar sua situação acaba sendo, em última
instância, em cima da precarização do trabalho e na pressão sobre os salários,
algo que ele já vê ocorrendo na França.
Segundo
ele, a evolução de 2009 para cá no pagamento de dividendos mundial é grande e
muito mais frequentemente as empresas tomam decisão de aumentar os dividendos. “Hoje,
você pode ter aumento de lucro e aumento de dividendo distribuído; uma queda do
lucro e um crescimento dos dividendos; e uma alta no lucro e uma queda dos investimentos”,
destacou.
O
economista vai publicar em 2015 no Brasil, pela editora Unesp, o livro “As
economias emergentes latino-americanas: entre cigarras e formigas”. O título é
uma metáfora de uma fábula de Jean de La Fontaine, no qual as cigarras gostam
de dançar, as formigas, de trabalhar. Na sua avaliação, o Brasil estaria entre
esses dois “mundos”: uma economia bastante rentista (os aspectos das cigarras),
mas que tem também possibilidade maior do que tinha nos anos 1990 de obter um
taxa de crescimento um pouco mais forte. Mas ele mesmo diz que talvez, quando
escreveu a edição em francês (publicada em 2012), estivesse otimista demais
porque hoje acredita que o Brasil está frente a um enfraquecimento do seu
crescimento.
Para
Salama, o país está perto de entrar em um processo que ele chama de “financeirização
perversa”, parecido ao que está em vigor em diversos países centrais. Isso
alteraria o cenário dos últimos oito anos, quando, segundo ele, o país chegou a
viver uma “financeirização feliz”, porque ao mesmo tempo que a preponderância
das finanças avançava sobre as operações das corporações, ainda conseguia
melhorar os ganhos reais dos salários no país e havia uma diminuição da taxa de
desemprego. Mas esse período passou, afirma.
A seguir,
confira trechos da entrevista concedida ao Valor:
Valor: O sr tem dito que o aumento da
financeirização leva a uma aceleração da precarização no mercado de trabalho em
várias economias do globo. O sr. pode explicar melhor essa relação?
Pierre
Salama: Estou
certo disso. A financeirização perversa, como a que existe hoje na França e em
muitos outros países, especialmente nos países centrais, implica em um aumento
mais fraco do salário, aumento da rotatividade, e da flexibilização da jornada
de trabalho. A onda negativa sobre o mercado trabalho resulta do peso mais
forte do poder dos acionistas.
Valor: Mas o sr comentou recentemente que aqui no
Brasil o processo de financeirização da economia seria por enquanto um “processo
feliz”. O que o sr quis dizer com isso?
Salama: O uso do termo ‘financeirização
feliz’ foi uma provocação. Quis dizer que, ao contrário do que se passa nos
países avançados, a financeirização não veio acompanhada no Brasil por enquanto
de taxa de desemprego bastante alta nem de redução de salários. Aqui nos
últimos anos, oito anos mais ou menos, o aumento da financeirização veio
acompanhado de crescimento dos salários e de uma taxa de emprego alta. É o
contrário do que se passa na França hoje e em outros países da Europa.
Aparentemente, aqui no Brasil estamos frente a uma ‘financeirização feliz’. Mas
isso pode se transformar em uma espécie de miragem.
Valor: Por que uma miragem?
Salama: A financeirização aqui se parece
com um tigre de papel, mas o problema é saber se esse tigre de papel tem ou não
dentes atômicos e eu acho que ele tem. No último ano, pudemos ver os primeiros
efeitos negativos da financeirização, com um enfraquecimento da taxa de
crescimento do PIB e do salário etc. Isso, na verdade, começou a ocorrer há
cerca de um ano no Brasil. A época feliz do salário e do mercado de trabalho de
maneira geral chegou num limite e está acabada no Brasil. O Brasil entra agora
num processo de circulo vicioso que implica hoje mudar de modelo e não fazer
como se isso não fosse nada. É preciso ter uma retomada da taxa de crescimento,
aumento dos investimentos em saúde e educação. Isso passa por uma postura
contra a financeirização. O Brasil deve aprender o que foi e o que é a
financeirização nos países avançados.
Valor: O Sr. poderia indicar quais elementos o
levam a crer que esse limite no mercado de trabalho tenha sido de fato
atingido?
Salama: O país está às vésperas de
medidas de austeridade, você verá isso depois das eleições. E isso significa
que a política favorável aos salários encontra limites. O “gap” entre consumo
de bens e produção é cada dia mais importante e só as importações de bens
permitem fechar esta brecha. O saldo da balança comercial é quase negativo. O
saldo do balanço de transações correntes é muito negativo. A situação é difícil
porque a única maneira de superar os problemas é a entrada de capitais, vale
dizer mantendo uma taxa de câmbio apreciada, vale dizer favorecendo ainda mais
a desindustrialização (salvo se a produtividade aumentar), o que significa um
aumento da taxa de desemprego e que o aumento dos salários será mais fraco.
Então, o Brasil está perto da financeirização infeliz como temos na Europa.
Valor: O momento é bem mais difícil?
Salama: Sim, você pode ver que há um
enfraquecimento bastante forte da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto
(PIB) brasileiro e da taxa de aumento dos salários. A balança comercial hoje
tem muitos problemas, especialmente a balança comercial industrial, que está
completamente em déficit. Agora, o país depende ainda mais de entrada de
capitais. É uma situação de bastante vulnerabilidade. Há pouco tempo, a sorte
do Brasil era que o preço de matérias-primas havia subido e também os volumes
cresceram nos últimos anos. Isso permitiu que o problema de balança comercial
fosse resolvido por algum tempo. Em lugar de déficit, houve um excedente
comercial bastante forte. Isso permitiu que a questão da desindustrialização do
país – uma realidade para a indústria de transformação – e a capacidade de o
industrial responder à demanda não fosse um problema grave na medida que se
podia comprar bens importados. Mas hoje não é mais assim.
Valor: Há então alguns equívocos na política
econômica recente do governo brasileiro, ao não dar prioridade para a
indústria?
Salama: Acho que se fala muito e se faz
pouco no Brasil. A política do governo é uma política pendular. Um dia se
favorece uma coisa e noutro dia se favorece uma coisa completamente contrária.
Basta olhar o nível da taxa de câmbio – apreciada ou não apreciada – e da taxa
de juro, um dia vamos baixá-la, noutro vamos aumentá-la na perspectiva do
combate à inflação. Não me parece uma política coerente.
Valor: O sr. está se referindo ao governo Dilma
Rousseff?
Salama: Sim, aos dois últimos anos do
governo Dilma. O país deve ter taxa de câmbio mais depreciada e taxa de juros
muito menos alta. E deve haver um esforço do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) para favorecer alguns setores industriais. Se você
favorece setores com uma taxa de juros menos alta, você faz uma aposta contra o
sistema financeiro. Isso [a relação com o sistema financeiro] explica a questão
pendulária que se vive hoje.
Valor: O sr comentou que o país deveria adotar
uma postura contra a ampliação da financeirização da economia brasileira, qual
deveria ser essa postura?
Salama: Deveria adotar postura contra a
financeirização e contra a primarização excessiva. Isso não quer dizer que sou
contra as finanças, no sentido da concessão do crédito para desenvolver a
economia. Eu sou absolutamente contra a financeirização, porque ela significa
que hoje se paga mais e mais juros e dividendos para os acionistas das
empresas, de forma que há um peso cada vez mais forte dos acionistas do mercado
financeiro na empresa. Esse é um processo que se faz em prejuízo dos
investimentos no setor produtivo. Isso explica os efeitos indiretos sobre a
primarização da economia e sobre a desindustrialização precoce. A única maneira
de sair de tudo isso é limitar a financeirização. Isso implica uma mudança
bastante grande em nível de controle de capitais e também em nível de sistema
tributário, para que o capital pague mais imposto do que hoje paga. Isso
poderia limitar a importância dos acionistas.
Valor: Falta apoio ao setor industrial no Brasil,
o que deveria ser feito, na sua opinião?
Salama: Não sou contra o país se
aproveitar da existência de recursos naturais, mas não sou favorável a isso a
partir do momento que esse processo ocorre contra a industrialização, por meio
de uma taxa de câmbio apreciada. O que quer dizer é que de uma certa maneira
seria muito bom que o Brasil descobrisse como usar matérias-primas para
favorecer sua própria indústria e não para combatê-la. Isso seria importante
para o país não sofrer a doença holandesa. O país terá que fazer duas coisas. A
primeira é uma política industrial estratégica. E felizmente existe um banco de
desenvolvimento bastante forte no país que se chama BNDES, coisa que não existe
em vários outros países, e ele poderia favorecer uma política industrial mais
agressiva por parte do Estado. E a segunda coisa é que o dinheiro que vem da
primarização da economia deveria ser usado para preparar o futuro e não para
favorecer políticas sociais. Essas deveriam ser favorecidas por uma mudança no
sistema tributário. O dinheiro de exportação de matérias-primas deveria ser usado
para favorecer os esforços de pesquisa para o futuro. O esforço aqui no Brasil
para isso é quase nada. Fala-se muito em pesquisa, mas só 1% do PIB do Brasil
vai para pesquisa. Em países como Coreia do Sul isso representa quase 4% do
PIB, na França é 2,4% e é insuficiente.
Valor: Essa preferência de pagamento de
dividendos com o lucro das empresas em detrimento de usar esses recursos do
lucro para novos investimentos explica, na sua opinião, a baixa taxa de
investimento em economias como o Brasil nos últimos anos?
Salama: Esses 18% de taxa de investimento
em relação ao PIB como ocorre atualmente no Brasil é quase nada. Na China, isso
é bem mais alto, entre 45% e 48%. E todos os países que tiveram uma decolagem,
durante a sua época de decolagem [em inglês, catch up], como a Coreia do Sul,
era entre 30% e 35%.
Valor: Quais os riscos dessa balança mais
favorável para a remessa de lucros como dividendos persistir no longo prazo em
detrimento dos investimentos?
Salama: Os riscos são a
desindustrialização precoce. A taxa de câmbio muito apreciada [devido à entrada
maciça mais recente de investimento de portfólio] mais a política em favor da
distribuição dos dividendos não deixam muitos recursos aos investimentos e
favorecem políticas de curto prazo. Vou te dar um dado. Se eu me lembro bem, no
ano passado o pagamento de dividendos e lucros repatriados da parte das firmas
multinacionais no Brasil foi de US$ 32 bilhões. Isso representa uma quantia
muito grande. Os dados são muito mais elevados do que diz a lei, que diz que
25% dos lucros podem ser transformados em dividendos e lucros repatriados. Isso
deve ser 50% no Brasil, o que implica que não há dinheiro para investir.
Valor: Com esse foco em pagar dividendos, na sua
interpretação há um comprometimento do investimento das empresas especialmente
em tecnologia e isso prejudica a competitividade e faz uma pressão negativa
sobre os salários?
Salama: A produtividade média é bastante
baixa no Brasil. Em setores como automobilístico e no de aeronaves, com a
Embraer, a produtividade é alta, mas nos demais não. Se você não tem uma
melhora no nível da produtividade em geral porque você não tem uma taxa de
investimento importante, a única maneira de obter melhor competitividade é
favorecendo a queda do salário direto e indireto – por piora na saúde e da
aposentadoria dos trabalhadores [com redução dessas políticas].
Valor: Como pesquisador dos países latinos, como
o sr analisa o conflito atual entre Brasil e Argentina, na questão do bloqueio
na exportação de manufaturados brasileiros para a Argentina?
Salama: Sou otimista com a Argentina.
Quantas vezes o Mercosul devia explodir e não explodiu? Como quando houve uma
hiperinflação no Brasil no início dos anos 1990 e não na Argentina. A história
da integração latina é uma história de disputa. Não é a primeira vez que esse
tipo de problema existe. Não digo que deveria explodir. E nem que este não é um
problema importante. Mas, se fosse explodir, isso já teria ocorrido antes. O
fato é que, se o Mercosul não existir mais, será pior. Sou a favor da
integração desses países. Deve existir não só integração comercial, mas também
integração política. É preciso mais coordenação, um centro de decisão que seja
mais ou menos independente da parte do governo. Como resistir à China? A
integração latina é a única maneira de resistir à China, senão Golias vai comer
Davi.
[Extraído de http://www.valor.com.br/brasil/3545132/boa-fase-do-mercado-de-trabalho-ficou-no-passado-diz-economista em 13/05/2014]
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