Transcrito do Democracia & Política
"O
decano do jornalismo brasileiro Janio de Freitas, de 82 anos, concedeu
uma longa e enriquecedora entrevista ao "Favela 247". Morador da favela
do Vidigal há 29 anos, Janio discorre sobre as UPP, as eleições para
governador no Rio de Janeiro, a desmilitarização da polícia, a
regulamentação das drogas e dá sua dica ao jovem jornalista de favela: "Vá
em frente. Descubra o seu mundo e descubra o seu jornalismo. Leia
criticamente jornais. Ler livros é fundamental. Ter noção de história é
muito enriquecedor. Ler autores críticos é muito importante. Leia, leia,
leia e leia. O que pintar na frente, leia"
Por Artur Voltolini, para o "Favela 247"
Janio
de Freitas, de 82 anos, um dos mais importantes jornalistas políticos
vivos do Brasil, recebeu o "Favela 247" na varanda de sua casa. Morador
do Vidigal há 29 anos, é de seu escritório repleto de livros, revistas e
jornais amarelados – e com uma incrível vista para o mar e para a favela –, que Janio trava suas batalhas com Joaquim Barbosa e outras figuras importantes da política nacional em sua coluna para o jornal "Folha de São Paulo", que mantém há 31 anos e de onde saem as análises mais coerentes e éticas do jornalismo contemporâneo.
Na entrevista, Janio discorre sobre o tráfico de drogas: "Essa coisa de pobre contra pobre é uma coisa horrorosa. Pobre armado contra pobre é algo insuportável"; e sobre as UPP: "A
UPP sofre por causa da origem da formação profissional do policial, que
continua sendo difícil, viciada. A UPP sofre os efeitos da sociedade
que ela faz parte."
Janio diz achar ser uma "fantasia" a
ideia de resolver a violência policial com a desmilitarização da
polícia, e se diz cético em relação à regulamentação da venda de drogas:
"O traficante de repente vai dizer: 'Olha, aqui eu paro porque o Mujica resolveu agora que o Estado é o dono da maconha?'".
O
jornalista ainda reconhece os avanços sociais do governo Lula, critica o
neoliberalismo do FHC e faz uma análise sobre os candidatos das
eleições para governador do Rio de Janeiro.
Uma das vozes mais lúcidas do jornalismo brasileiro, Janio critica a nova geração: "Hoje em dia há esse fenômeno formidável no jornalismo: o jornalista que não lê jornal", e dá dicas aos jovens jornalistas de favelas: "Vá
em frente. Descubra o seu mundo e descubra o seu jornalismo. Leia
criticamente jornais. E ler livros é fundamental. Ter noção de história é
muito enriquecedor. Ler autores críticos é muito importante. Leia,
leia, leia e leia. O que pintar na frente, leia".
Após uma hora cravada de entrevista, Janio se despediu, precisava almoçar para assistir a mais uma seção do STF.
Como era o Vidigal há 29 anos?
Quando eu me mudei para cá, minha rua não tinha nem calçamento nem iluminação. Essas casas aí não existiam [apontando para o alto do morro],
aqui ao lado havia um começo de obra. Quem arranjou o primeiro
calçamento que houve aqui foi minha mulher. Mas a iluminação pública só
veio depois, também em parte pelo esforço dela, e ainda muito precária.
Como o senhor conheceu o Vidigal?
Eu
já conhecia o Vidigal quando vim pra cá. Nos prédios pequenos, moraram a
Gal, o Caetano eu acho que morou – ou Caetano ou o Gil –, o Lima
Duarte. No prédio grande, morava minha filha. Ela chegou um pouco depois
de mim. Comigo veio meu filho, morou aqui e depois foi para o exterior
estudar por sete anos. Quando voltou, morou um tempo nos predinhos,
depois foi para uma casa aqui em frente onde morou até recentemente.
O senhor frequenta o Vidigal?
Não,
não vivo o Vidigal. Primeiro, porque quando eu vim para cá, e durante
muitos anos e até há pouco tempo atrás, eu trabalhava muito. Fazia uma
coluna diária, uma coluna de informação de ponta, com relação muito
complexa com as fontes. Ela me tomava um tempo gigantesco. Começava
muito cedo, trabalhava em casa até mais ou menos duas horas da tarde,
depois saía para a redação do jornal e aí não tinha hora para voltar.
Tanto podia vir para casa quanto ir me encontrar com alguém para apurar
alguma coisa.
O senhor percebeu um aumento no poder de compra dos moradores do Vidigal nos últimos 10 anos?
Percebi
pela quantidade de casas construídas. Em parte é bom, e em parte
lamentável porque se criou a indústria da laje, que é uma forma covarde
de pobre explorar o pobre. Numa ocasião, eu estava comprando material de
construção quando chegou um sujeito muito bem-vestido, com um tremendo
de um anel de ouro, desses que chamam a atenção. Era nordestino. Fez
suas compras, encomendou umas coisas. Quando ele saiu, o vendedor me
disse: “Sabe do que ele vive? Ele compra laje aqui, sobre ela levanta
mais um andar, manda vir gente do nordeste e os instala nessa laje.
Imediatamente, ele coloca a laje à venda, e os que estão ali podem morar
até que ela seja vendida. Enquanto isso, ele está fazendo outras
lajes, uns quatro ou cinco segundo andares. Ele vive de explorar laje.
Resultou nisso aí [apontando para o alto do Vidigal]. Uma coisa
inacreditável. Se você vir umas fotos que eu fiz na década de 1980 desse
morro, você não acredita que seja o mesmo. Inclusive as árvores, era um
beleza, árvores imensas, lindas, foi tudo abaixo.
Quando o senhor se mudou para o Vidigal, o tráfico já estava organizado?
Não
sei dizer a você o quanto era organizado ou não. Mas não era ostensivo.
O clima de tranquilidade existia. A pessoa que veio trabalhar comigo
aqui em casa era do Vidigal, conhecia todo mundo. Lourdes me falava
muito de um tal de seu Santinho, que ela dizia que era quem mantinha a
ordem. Muito antes de o
"Comando Vermelho" entrar.
O senhor percebeu a entrada das facções no Vidigal?
Eu
não tenho muita noção de como as coisas se passaram. Mas isso de ver
homens armados demorou a acontecer. Quando eu vim pra cá não existia. A
primeira vez em que fui parado numa barricada por traficantes foi muito
desagradável, muito chocante.
Qual é a sua visão sobre as UPP?
Eu
acho que a ideia em si é muito boa, necessária. Mas não pode ser só
UPP, só polícia. Com a UPP, têm que vir os demais serviços de
administração pública. Isso é absolutamente fundamental. A militarização
é uma etapa. Quando o nível de exigência dos próprios moradores
aumentar, eu acho vai haver um aumento na quantidade se serviços
disponíveis. Tem de aumentar.
Como morador do Vidigal, o que o senhor vê de impactos pós-UPP?
Eu
não tenho percebido nada ostensivo e intimidador como havia antes. Não
tenho notícias de que tenha o tipo de intimidação que a Lourdes, que
trabalhou muitos anos aqui comigo, passou. De vez em quando, ela chegava
aqui muito triste, aborrecida, porque na véspera um grupo havia subido
na laje dela e passou a noite fumando maconha, fazendo barulho, e
Lourdes não conseguia dormir. Depois, eles foram se tornando mais
audaciosos ainda, entravam na casa de Lourdes e retiravam comida da
geladeira. E mais tarde, a fizeram cozinhar para eles. E não era só com
ela. Eu acho que isso, por exemplo, se não acabou, diminui. Não só aqui,
acredito que várias outras UPP tiveram um resultado semelhante quanto à
melhoria da convivência, de certa forma ainda problemática, contudo
menos tensa do que era antes. Afinal, essa coisa de pobre contra pobre é
uma coisa horrorosa. Pobre armado contra pobre é algo insuportável.
Os policiais também são pobres.
Policial
é pobre, tem a mesma origem social, econômica, ou pelo menos muito
próxima. É uma coisa muito violenta, covarde, revoltante. Por essa razão
é que a iniciativa da UPP é boa, mas há muito o que fazer para que ela
produza bons resultados. Pode não ser o esperado, mas pelo menos
melhor.
A UPP sofre por causa da origem da formação profissional
do policial, que continua sendo difícil, viciada. A UPP sofre os
efeitos da sociedade de que ela faz parte. Esse caso do Amarildo... Nós
sabemos que há, desde o começo da UPP, um esforço gigantesco para
selecionar policiais não viciados pela ação nas ruas. E no entanto, veja
o caso do Amarildo, tem até major envolvido, tem capitão, tenente,
sargento. É a própria sociedade representada.
O senhor é a favor da desmilitarização da polícia?
Eu
acho que é uma fantasia imaginar que isso vai terminar com o fim da
Polícia Militar. Não é por aí. Pura e simplesmente a nova polícia – tenha o nome que tiver, com as armas que já estão aí, com os chefes, capitães, comandantes, com esses delegados – vai continuar praticando a mesma violência.
Como se rompe com essa violência policial?
Rompe-se
com o rigor penal sobre os praticantes de deslizes policiais. Falta
perícia? A solução é fazer a perícia. Tá faltando punir? Tem de punir.
Não adianta apenas substituir a farda por uma camisa esporte, vai
continuar a mesma coisa. O que aconteceu é que a educação não acompanhou
o aumento da população. Então, temos toda uma deterioração educacional
na população de uma geração que cresceu muito mais que o processo
educativo e civilizatório. Daí vem toda essa polícia comprometida, ela
própria, com o crime.
O
ex-governador Sergio Cabral se reelegeu em cima do sucesso das UPP, e
colocou a segurança pública no centro do debate eleitoral. Há uma
politização da segurança pública?
Não foi o Cabral
quem trouxe essa discussão. Foi o Moreira Franco, do PMDB. Ele se elegeu
em 1986 com o seguinte tema de campanha: “Em seis meses eu acabo com a violência no Rio de Janeiro”.
Ele foi eleito com base nessa campanha. Até a "Globo", os jornais "O
Globo" e "Jornal do Brasil" apoiaram intensamente sua candidatura que
iria acabar com a violência, que estava começando no Rio. E o Brizola
tinha feito algo que irritou profundamente os jornais e TV. A polícia,
antes do governo dele, entrava nas favelas matando gente, cometendo
violências. E por se opor a isso Brizola foi acusado de ter provocado o
aumento da violência. O Moreira fez a campanha em cima disso para
derrotar o Darcy Ribeiro, candidato do Brizola. Derrotou, e trouxe um
advogado chamado Marcos Heuzi, que seria o homem do milagre da segurança
pública. Em seis meses, ele iria acabar com tudo. Mas a violência
cresceu brutalmente, e o Moreira teve que despachar o Marcos Heuzi. E aí
foi a degringolada total, ele entregou a segurança pública ao Hélio
Saboya, que era um advogado criminalista. Saboya não conseguiu resolveu
coisíssima nenhuma.
Qual era o plano dele?
Nenhum.
O plano dele era ganhar a eleição e fazer negócio. E ele se dedicou
muito a fazer negócios, e ganhou muito dinheiro. Eu mesmo denunciei
resultados prévios de várias obras dele. Só do Metrô eu anulei cinco ou
seis concorrências, além do complexo Tabajaras. Enquanto ele ganhava
dinheiro, e a violência ficou comendo solta. E claro que, a partir daí,
ela tomou um embalo que dificilmente alguém seguraria.
O
Renato Meirelles, do "Data Popular", diz que as eleições deste ano
serão definidas pela classes C, D e E. As favelas irão definir as
eleições no Rio de Janeiro?
Eu acredito que os
analistas que moram na cidade do Rio de Janeiro só olham para o Rio,
como os paulistanos só olham para São Paulo. A eleição é no estado, e a
gente não sabe como é que estão as coisas no interior. O PMDB, por
exemplo, que é um partido forte no Rio, tem agora uma divisão, algo que
não houve na eleição anterior. Tem a corrente Picciani, a ex-corrente
Cabral da qual sabemos ainda muito pouco, se ela ainda existe, se deixou
de ser, e ainda se ela irá se transformar na corrente Pezão. Até agora,
não vi nenhum dado que indique a sua dimensão. O Garotinho tem muito
eleitor no interior, o quanto essa corrente Garotinho vai influir nessa
eleição, eu não sei. O Crivella é muito vivo, não é bobo não, e está
trabalhando muito, e com muito dinheiro inclusive. As igrejas
evangélicas vão influir mais ainda agora do que nas eleições anteriores.
O quanto, e de que maneira, até agora eu não sei. Mas quem quiser
analisar a eleição no estado tem que parar de olhar apenas para a cidade
do Rio de Janeiro. As favelas vão decidir? Que favela? E o interior
ninguém leva em conta?
O que o senhor acha da candidatura do Lindberg?
O
PT fluminense pode ter com o Lindbergh uma oportunidade de aparecer
nessa eleição disputando o governo estadual, caso haja um empenho do
Lula, particularmente do Lula e, subsidiariamente, da Dilma.
A Dilma prefere o Pezão?
Eu
não sei. Com franqueza eu acho que ela não pode falar e não pode agir
contra o Pezão, porque ela é candidata. Vai chutar o PMDB para a lua e
ficar com o risco do PT que, no Rio, tem sido um sucessivo insucesso?
O que houve com o PT carioca?
Ele
se desmontou todo. Teve a oportunidade com a Benedita e chutou para o
alto, fez milhões de besteiras. O partido dividiu-se todo,
desarticulou-se e focou em pequenas disputas: a corrente Vladimir contra
a corrente Gabeira, e foi se desestruturando e caindo aos pedaços.
Nunca chegou a se estruturar propriamente no Rio de Janeiro.
O senhor acredita nessa definição de nova classe média?
Eu não acredito nos índices que determinam essa divisão entre classes: classe C1, C3, média-média.
Isso é absolutamente fajuto. Coisa de economista, e economista está em
outra, não está pensando na sociedade. Nessas denominações, eu não
acredito, não adoto e não pratico. Mas é evidente que houve um ganho de
salário, um ganho de oportunidade de emprego, um ganho de pequenas
iniciativas, e isso resultou numa melhoria econômica de uma grande parte
da população. E não só do Rio, mas da população brasileira. No
Nordeste, por exemplo, há modificações sensíveis.
Quando essas mudanças se deram?
Foi
durante o governo Lula. O governo Fernando Henrique/PSDB foi um arrocho
desgraçado. Arrocho salarial pesado, sem obra social, apenas
propaganda. A política econômica foi inspirada por americanos, pelo
"Consenso de Washington" e pelo neoliberalismo. Nas sociedades
latino-americanas onde o neoliberalismo penetrou, ele penetrou
cruelmente, de maneira perversa. E o FHC e o Malan são ainda
representantes políticos do neoliberalismo.
Já
que estamos falando em governo FHC/PSDB, me lembrei da privatização das
telecomunicações. O que o senhor achou da ocupação e reintegração do
prédio da antiga Telerj?
Eu acho muito triste
despertar esperanças em pessoas pouco ou nada informadas,
incentivando-as a ocupar uma área que você já sabe que vai ser
desocupada, e na raça. Porque quando a Justiça diz “desocupa”, a polícia
vai para desocupar mesmo. Alguns grupos ficam explorando essa
ingenuidade alheia ao invés de definir um programa de trabalho, de ação
permanente, de propaganda e de luta política. Falta trabalho de base,
eles ficam fazendo esses espetáculos em que se satisfazem muito. A
Sininho, por exemplo, vai lá e agita. Mas quem apanha não é ela. Se
apanhasse, saberia o que os outros sofrem por conta da agitação que ela
faz. Depois, ela vai para o apartamento dela, toda elegante quando não
está agitando, mantida pelos papais. Aí bota os outros na frente,
levando porrada da polícia, para uma coisa que não tem futuro. Qual era o
futuro daquela ocupação? Os caras chegam lá e dizem: “Vai ser aqui, vai
ser ali”. Você acha que a Justiça iria permitir? Que a polícia iria
deixar de ir lá? Para conseguir aluguel social ou inscrição no "Minha
Casa Minha Vida" não precisa disso. É só ir um grupo para a frente da
prefeitura e fazer uma fila. No terceiro dia, eles descem e inscrevem
todo mundo.
O senhor é contra a ocupação de prédios desocupados por movimentos sem-teto?
Olhe
para experiência do Stédile. Ele deve ser ouvido a respeito de tudo
isso, um dos caras que mais devem ser ouvidos no Brasil, e que menos o
é. O Stédile parou de fazer invasão de fazenda à toa e mudou o discurso:
“Olha, vamos partir para outra, a briga tem que ser outra. Não é por esse caminho”. E ele está certo porque, as invasões fazem surgir novos Zé Rainhas - que é a Sininho com calça de homem.
O que aconteceu no pontal do Paranapanema, que era área comandada pelo
Rainha? Nada. Houve gente que sofreu 'pra burro' ali, perdeu o lugar
onde morava, o trabalho que tinha, para ir ocupar a fazenda de não sei
quem, e que a Justiça devolveu. A polícia de São Paulo, que é muito mais
violenta que a do Rio, foi lá e baixou o cacete para valer. Morreu
gente, aconteceu o diabo. Morreu até criança nas invasões que o Rainha
inventava no Pontal do Paranapanema. Até que ele mesmo se picou e foi
para o Espírito Santo, e largou o pessoal lá no pepino. E não deu em
nada, ninguém ali ganhou nada. Agora veja, o trabalho do Stédile é
absolutamente sensacional. Não é à toa que não fazem propaganda do
trabalho dele.
Dizem que a ocupação do prédio da Oi/Telemar não foi organizada pelo movimento sem-teto, e muito menos pela Sininho.
Eu
não disse que foi organizada por ela. Eu não sei quem foi, não estive
lá. Mas de qualquer modo, naquelas coisas lá mais para trás, como no ato
na Central, ela estava envolvida, e acabou muito mal. Um besteirol
total. Invadir a Central do Brasil é ir contra o operário que saiu do
trabalho e quer ir para casa.
Organizaram um “catracasso” para a população não pagar a tarifa.
Sim,
e com que resultado? Deu no quê? Quando você age politicamente, tem
que olhar antes de tudo o resultado que você quer, definir perfeitamente
o resultado que se pretende atingir, e ver se esse resultado justifica a
ação que você vai fazer. Isso que é ação política e isso que é ação
social. Ação física social. Agora, se você não parte dessa premissa, vai
dar em besteira. Ou pelo menos a margem que dê em besteira é enorme.
Nesse ato específico morreram duas pessoas.
Morreu
o cinegrafista, um senhor foi atropelado, e houve gente que apanhou
'pra burro' na Central do Brasil. Um monte de mulher grávida inalando
gás lacrimogênio dentro da Central sem poder sair, porque não deixavam
sair, e sem pular catraca, porque grávida não vai pular catraca. Idosa
vai pular catraca? Essa coisa é muito primária, e é esse primarismo que
me incomoda. Me dá uma imensa tristeza ver que a gente não evoluiu em
termos de luta política e social no Brasil.
A esquerda brasileira esqueceu suas tecnologias políticas?
Já
se sabia pouco, e aí perdeu-se aquele pouco que se sabia. Eu acho, num
certo sentido, natural. Não houve uma transmissão de conhecimento. A
ditadura interrompeu tudo. Foi uma coisa devastadora, muito maior do que
esses artigos, documentários e os poucos livros sobre a ditadura têm
dito. Foi algo gigantesco. Acabou com a Universidade, com o Instituto
Oswaldo Cruz... Nesse período de 20 anos, a pesquisa científica foi 'pro
brejo', atrasou 50 anos. Um horror. E com a imprensa? O pessoal que
vinha fazendo um jornalismo mais avançado, melhorado, inteligente,
técnico. De repente, ficou um buraco. As pessoas que foram chegando não
puderam recolher o conhecimento, não o receberam dos anteriores. A mesma
coisa na luta sindical.
Por quê?
Porque
ficou um buraco. Foram afastados. Eu fiquei anos e anos sem poder
trabalhar em jornal. E fui me virando. Por dez anos, trabalhei com
produção de livros, gráfica.
O que o senhor acha da mídia independente que está surgindo nas favelas?
Acho
muito bom. Despertar interesse por informação é mais importante do que
supor que já está informando. Isso porque, até você chegar a produzir a
informação que leva à melhoria de nível cultural, de reflexão, de
convívio e de aprendizado social, demora. Não é de um dia para o outro. E
não é que demore só para o leitor não. Demora também para quem produz
jornalismo, leva tempo até entender qual é seu público, como é que esse
público elabora uma notícia. Isso tudo se perdeu no jornalismo
brasileiro. E os que estão fazendo esse jornalismo independente, não
comercial, também sentem falta disso. Mas não falta algo importante: o
interesse do leitor por obter informação, o gosto de saber as coisas, o
gosto de ser informado. E isso é fundamental.
O
senhor acredita que essa mídia independente das favelas pode alterar a
visão estereotipada que a imprensa tem dos territórios populares?
Ela
pode começar a pautar a imprensa, mudar a relação de poder. Em certo
sentido, ela já tem alguma influência. Mas o que se passa nos meios de
comunicação brasileiros – televisão, radio, jornal e revista –,
não é só em relação à favela. Veja "O Globo", que é esse poderosíssimo
jornal do Rio de Janeiro. Se você assistir a um jogo de futebol, e no
dia seguinte você for ver as notas que o repórter do "Globo" dá aos
jogadores, você fica besta. Como ele pode dar nota sete para um cara que
errou todos os passes? Ele é apenas um garoto que está sentado lá - na redação ou na frente das câmeras da TV-
falando como se fosse doutor em futebol há 30 anos, uma experiência
fantástica! Começou anteontem, tem de dois a quatro anos de jornal, e de
futebol não tem nada. É a mesma coisa que se passa com o assunto
favela, com o assunto violência urbana ou com economia. Se você parar
para pensar nesse caso da compra de Pasadena pela Petrobrás, o besteirol
que sai a respeito disso é uma coisa inacreditável. E a Polícia Federal
deita e rola explorando essa garotada. Essa turma que não estuda nada,
não lê nada. Hoje em dia, há esse fenômeno formidável no jornalismo: o jornalista que não lê jornal.
É uma coisa inacreditável como eles se repetem. Quantas vezes você não
vê n’"O Globo" de hoje uma noticia que já saiu ontem, como se fosse algo
novo? E vira manchete de página interna!
O jornal impresso está acabando?
Não
acredito nisso. Quem acreditou nos EUA, está caindo do cavalo. A
tiragem lá aumentou 3% no ano passado. Se você pensar que em uma grande
quantidade de jornais estaduais americanos seus donos deixaram de
investir, embarcados nessa onda de que o jornal impresso vai acabar, e
ainda assim a média de crescimento foi de 3%, você pode deduzir com
facilidade que há um grupo de jornais e uma linha de jornalismo que
cresceu expressivamente.
Mas dá para comparar a credibilidade do 'The New Tork Times' com a do 'O Globo'?
Dá,
porque o nível do leitor também acompanha essa diferença. Para comparar
o 'New York Times' com 'O Globo', temos que comparar os leitores dos
dois em relação de confiabilidade. É a classe média brasileira. Vá ao
Grajaú e fale mal d’'O Globo' pra ver se você sai de lá incólume.
Qual dica o senhor dá para um jovem jornalista de favela?
Eu
só diria a ele: Vá em frente. Descubra o seu mundo e descubra o seu
jornalismo. Leia criticamente jornais. E ler livro é fundamental. Ter
noção de história é muito enriquecedor. Ler autores críticos é muito
importante. Leia, leia, leia e leia. O que pintar na frente, leia. E
depois você faz a seleção do tipo de coisa que mais lhe interessa, e vá
em frente. Faça o seu jornalismo. E veja o que nele tem melhorado, o que
não tem melhorado. O autoaprendizado em jornalismo é muito importante.
Reler e analisar o que você fez. Ouvir o que alguém possa dizer a
respeito do que você escreveu. Isso nos orienta.
O senhor é a favor da descriminalização e regulamentação da venda de drogas?.
Eu
acho esse tema dificílimo, e não tenho uma posição definida. Eu vejo
vantagens possíveis e prováveis desvantagens em proporções pelo menos
iguais. Então, eu não sei que tipo de projeto pode sair disso.
Muitos pesquisadores dizem que o ônus da guerra às drogas é maior que o ônus do consumo de drogas em si.
Ninguém
sabe calcular esse ônus, é um chute, ninguém tem como avaliar. Como
alguém vai saber a quantidade de usuários de drogas no Brasil, um país
com 200 milhões de habitantes? Pesquisa científica é igual pesquisa
eleitoral, ouve duas mil pessoas... E o consumidor vai responder com
honestidade a esse tipo de pergunta?
O senhor teme que com a descriminalização aumente o número de pessoas viciadas?
Não,
não é isso. É que você vai criar mais um mercado capitalista,
propriamente instituído capitalistamente. E não vai acabar com o outro
mercado não, o outro simplesmente vai baixar o preço, na medida que
precisar baixar o preço. Como a margem para os intermediários e
produtores é muito grande, e a quantidade de pessoas que não querem
entrar no mercado formal de trabalho porque acham que podem viver,
pobremente, mas viver sem se aporrinhar com trabalho, carteira e horário
é gigantesca num país de 200 milhões de habitantes, e com as condições
sociais do Brasil, no meu ponto de vista, o mercado paralelo vai
continuar. Pode resolver um problema aqui, outro ali. Um problema de
maior conflito com traficante em algum lugar, mas no geral vai
continuar, porque os intermediários e os produtores vão continuar.
No Uruguai, o Mujica quer que o Estado tenha o controle da produção e venda de maconha.
Ele
acha que vai ter controle. Até agora não se sabe se vai ter. E eu
pessoalmente não acredito que vá. O traficante de repente vai dizer: “Olha, aqui eu paro porque o Mujica resolveu agora que o Estado é o dono da maconha?”. O intermediário vai dizer: “agora perdemos a boca do Uruguai, vamos para Taiwan?”. É não conhecer o animal humano.
O senhor é otimista em relação ao futuro do Brasil?
Eu sou cético em relação à tudo, não só ao Brasil, mas ao animal humano.
Eu
tenho uma impressão, pode ser romântica, de que a geração que virá
depois da inclusão social do governo Lula, das cotas raciais e sociais e
do PROUNI já vai nascer com livros em casa. E essa geração, que
receberá o dinheiro do Pré-Sal para educação, será incrível, e que
talvez ela consiga transformar até o Congresso. O senhor não divide essa
visão otimista?
Não. Tomara que você a mantenha, e
sobretudo tomara que a realidade justifique o seu otimismo e não o meu
ceticismo. Mas eu acho que o Brasil, ao mesmo tempo que evolui em vários
sentidos, se degrada em outros. A corrupção, por exemplo. Hoje fala-se
sempre dos governos. As oposições falam muito dos governos. E os meios
de comunicação, se esses governos não são "conservadores" - sejam estaduais, municipais ou federais –
se encarregam de depositar nesses governos todas as responsabilidades
por tudo que seja de errado e de ruim. Mas a verdade é que a corrupção
varre esse país de cima a baixo. O Brasil está completamente minado pela
corrupção. Ninguém sabe a dimensão que isso tem, nem a que isso vai
levar, mas certamente essa corrupção não leva a nada que preste.
Essa corrupção me parece estrutural, como se muda esse quadro?
É uma boa pergunta, para a qual seu otimismo deve dar a resposta. Porque meu ceticismo não responde não"
FONTE: entrevista realizada por Artur Voltolini, para o "Favela 247". Transcrita no jornal on line "Brasil 247" (http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/140508/Exclusivo-Favela-247-Janio-de-Freitas-fala-sobre-UPPs-elei%C3%A7%C3%B5es-e-(mau)-jornalismo.htm)
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