Marcelo
Miterhof
Folha de
S.Paulo
A coluna passada mostrou –a partir do livro “Conta
de Juros Grande & Favela”, de Matías Vernengo e Alcino Camara (Editora
COM2B)– que no pós-Guerra a imposição generalizada de estritos controles, como
tributos e prazos mínimos de permanência, sobre a movimentação de capitais limitou
as chances do capital financeiro de buscar taxas mais atrativas mundo afora e,
assim, permitiu manter juros baixos (a “eutanásia do rentismo”), favorecendo a
produção, os salários e o crescimento.
Nos anos 1970, os problemas advindos da
elevação do preço do petróleo e da depreciação do dólar fizeram ganhar apoio a
volta da liberalização financeira, algo que vigorara até a crise de 1929. Ao
lado da brutal elevação do juro americano no fim da década, isso tornou a
economia global novamente favorável aos credores, reduzindo a expansão da
demanda, ampliando o desemprego e a concentração de renda.
Hoje, uso o livro para tratar dessa “revanche
do rentismo” nos países periféricos.
No Brasil e nos seus pares, no pós-Guerra
ocorreu a industrialização por substituição de importações (ISI), período em
que foi possível reduzir a distância para o mundo desenvolvido em termos de
renda e estrutura produtiva.
A ortodoxia condena a ISI por ter usado de
protecionismo, intervenção estatal e deficit fiscais para estimular o mercado
interno. Ao deprimir a poupança interna, o crescimento exigiria financiamento
externo. O resultado teriam sido ineficiências produtivas, deficit comerciais e
endividamento. Os choques do petróleo teriam evidenciado a insustentabilidade
da estratégia, levando à fuga de capitais que causou a crise da dívida no
início dos anos 1980.
Porém os anos 1950/60 foram marcados por
grandes ganhos de produtividade (sinal de eficiência) e por uma acumulação só
moderada de dívida externa. Nos 1970 é que o endividamento, em boa parte
dispensável e ocorrido em meio a uma abertura financeira, deixou o Brasil e
outros países da região vulneráveis ao choque dos juros americanos, além dos
impactos do petróleo.
Ainda assim, é preciso notar que a fuga de
capitais foi em grande parte promovida pelas elites locais, que tiveram
liberdade para mover seus recursos para os EUA.
Com a crise, a ortodoxia recomendava, entre
outras coisas, a abertura financeira para intensificar a competição e reduzir
os juros. Como ironiza o livro, para a hemorragia causada pela liberdade de
movimentação de capitais, prescreveu-se um sangramento.
As severas restrições de balanço de
pagamentos, associadas à indexação, levaram à hiperinflação nos anos 1980.
Quando os fluxos de divisas voltaram a ser favoráveis, o câmbio foi o principal
instrumento para debelar a inflação, tanto como âncora declarada num regime
fixo quanto sob metas de inflação em um sistema flutuante, sendo preciso atrair
capitais para mantê-lo valorizado. Sob ampla mobilidade de divisas, isso exige
juros muito altos.
Novamente, essa interpretação contrasta com a
convencional, que vê os juros altos como consequência da ausência de um
ajustamento fiscal efetivo. Mas na América Latina a regra tem sido manter
significativos superavit primários (receitas menos despesas correntes). Os
deficit surgem apenas ao incluir os juros. A relação é inversa: são os juros
elevados que provocam os deficit fiscais.
Gerar superavit primário é o que sobra para
tentar dar sustentabilidade à dívida, resultando num ajuste fiscal permanente e
pouco efetivo, em que os investimentos públicos, o principal instrumento de
ativismo do Estado, tendem a ser deprimidos.
A “vingança do rentismo” é mais doída na
periferia.
Além disso, apesar da inflexão da política
econômica no segundo governo Lula (PAC, Bolsa Família, valorização do salário
mínimo, alta dos gastos em educação e saúde etc.) e da queda do patamar de
juros, um quinto do gasto federal em 2013 foi com amortizações e juros da
dívida.
Para mudar, os autores propõem retomar a “eutanásia
do rentismo”, controlando os fluxos de capitais para reduzir os juros e manter
a taxa cambial mais depreciada, além de política industrial. Isso precisa ser
feito pragmaticamente, equilibrando os papéis do câmbio de elevar a
competitividade da indústria e de controlar a inflação.
Em vez de arrocho, esse desafio é um caminho
bem mais interessante de ser avaliado pelo próximo governo.
Marcelo
Miterhof é economista do BNDES. O artigo não reflete
necessariamente a opinião do banco.
[Extraído de http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelomiterhof/2014/05/1451053-ajuste-fiscal-permanente.shtml
em 11/05/2014]
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